Tudo sobre Belo Monte
Empreiteira corre para remover moradores
Apenas 1/3 das 2.600 famílias cadastradas para relocação foram reinstaladas; população se queixa de indenização
Saneamento e pontes têm que estar prontos antes de reservatório de Belo Monte começar a encher, em agosto
Às oito horas da manhã, o bar e restaurante Bom Paladar, no limite dos "baixões" (áreas inundáveis) de Altamira, já está fervilhando.
Pelo menos seis caminhões de mudança de franqueados da Granero estão estacionados na frente do bar. Cerca de 40 carregadores, capatazes e uma dezena de assistentes sociais da empresa CNEC Worley Parsons discutem a organização das 62 mudanças agendadas para o dia.
Meia hora depois, cessa o vaivém. Os operários formam um semicírculo na rua de terra, e um puxa a reza: "Vamos remover essas pessoas de lugares perigosos para o que Deus reservou a elas". Segue-se um pai-nosso. E palmas.
A coordenadora Maria Aparecida enfim consegue contato com uma moradora que aceita mudar sob os olhos e lentes da reportagem: Fabiana Teixeira da Veiga.
A empregada doméstica vivia desde 2011 com o marido, três filhos e o vira-latas Shrek num barraco que custou R$ 7.000 em madeira (ela ganha R$ 1.200 por mês).
Fabiana, 34, está na terceira casa e no terceiro marido. Vai para o número 840 da rua Q da quadra 24 da gleba Jatobá, que recebeu da Norte Energia, concessionária de Belo Monte. "Essa não dou para homem nenhum, não."
Os carregadores esvaziam o barraco rápido. "Estou achando bom, não aguento mais essa sujeira", diz.
Debaixo das palafitas sempre há lixo, muito. A cada enchente, os detritos boiam e se espalham. Fabiana diz que os ratos assistiam TV com ela.
Cerca de 1.500 famílias já foram removidas para os novos bairros construídos pela Nesa, batizados pela concessionária como "Reassentamentos Urbanos Coletivos".
Em dezembro faltava relocar pelo menos 2.600 famílias, 64% do total cadastrado. Em contraste, restavam só 33% das obras civis da usina por concluir. Quase 30 mudanças são feitas por dia.
Em teoria, o reassentamento teria de terminar no final de março, mas deve atrasar. Até julho a Norte Energia precisaria concluir o saneamento dos igarapés Altamira, Ambé e Panelas e construir pontes sobre áreas que permanecerão inundadas quando o reservatório principal começar a encher, em agosto.
Até agora, com o "inverno" amazônico engrossando as chuvas em janeiro, mesmo casas construídas sobre postes de madeira terminavam alagadas, e os moradores tinham de ser abrigados no pavilhão de exposição agrícola.
Com o barramento do rio, essa seria a condição definitiva. Daí a pressa na remoção.
SEM DIREITOS
A cozinheira Ritna Almeida Vitalino, 40, não teve a mesma sorte de Fabiana. Ela tem de deixar a rua em que mora há 34 anos, mas vai para uma casa que comprou "no Bacana" (bairro altamirense).
"É injusto", se queixa. Recebeu indenização pelas benfeitorias, R$ 22 mil, e nada pelo terreno, que não é seu.
Ritna e o marido ergueram a casa no terreno do irmão dele. Pregaram tábua por tábua, que agora despregam e levam para um caminhão alugado.
A madeira será usada para um puxadinho no Bacana. A moradia foi comprada por R$ 40 mil, com ajuda da família da mãe, que morava numa casa de alvenaria e teve indenização de R$ 118 mil.
A cozinheira ganha R$ 1.275 no Hospital Regional e tem três filhos. Afirma que se sente feliz por mudar, mas se diz revoltada com a Nesa. "Estão expulsando a gente."
Um ano atrás, os altamirenses que se consideram prejudicados contavam com o apoio da defensora pública Andreia Barreto. Em 2014, porém, ela deixou a cidade.
Hoje, só há a procuradora da República Thais Santi. Ela organizou em novembro uma audiência sobre as remoções.
"É incompreensível que, em uma obra que cause um impacto socioambiental como Belo Monte, a população esteja desassistida", disse Santi ao jornal "El País", qualificando a usina como "etnocídio" em referência aos povos indígenas afetados.
Para Luiz Antonio Zoccal Garcia, superintendente de Assuntos Fundiários e Relocações da Nesa, a procuradora "exacerbou" e emitiu opiniões pessoais. Ele informa que mais de 4.200 imóveis já foram negociados, restando pouco mais de mil pendentes pelas empresas subcontratadas Diagonal e Engemab.
Zoccal diz que em menos de 3% dos casos o acordo que a Nesa propôs foi recusado.
POLÍTICA EMPRESARIAL
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) afirma que só metade das 7.790 famílias afetadas são atendidas com as casas dos novos bairros e que o cadastramento deveria ser reaberto.
"Não há política para atingidos no Brasil", diz Elisa Estronioli, do MAB. "Defendemos que deve ser o Estado, mas fica a cargos das empresas", aponta. "As indenizações são irrisórias e eles não têm condições de negociar."
Com a pressa para não atrasar a usina, a relocação não estaria cumprindo o objetivo de permitir que os atingidos recomponham suas vidas. "[Os reassentamentos] não têm escolas nem creches", aponta o professor Fabiano Vitoriano, do MAB.
Para eles, a Nesa teria reconhecido as falhas e reaberto o cadastramento.
Zoccal, da Norte Energia, nega a reaberutura e diz que a empresa está apenas efetuando "estudos de caso".
O superintendente prevê que 4.140 casas devem ser suficientes, mas não descarta ampliar a oferta.
SONHO E REALIDADE
Em dia de pagamento dos trabalhadores da obra de Belo Monte, Altamira continua virando um caos, conta Antonia Pereira Martins, a Toinha, da ONG Fundação Viver, Produzir e Preservar.
"Muita gente bebendo, brigas, acidentes", reclama.
A rede de saneamento básico está quase pronta. Antes, inexistia. Não há definição, porém, sobre quem vai pagar a ligação de cada imóvel às tubulações --a Nesa diz que é atribuição da prefeitura.
A prostituição, inclusive de adolescentes, sumiu das ruas, mas Toinha diz que ainda campeia nas boates. Em reuniões na Delegacia da Mulher, constata que estão em alta crimes como o estupro.
Reconhece, porém, melhoras --as casas, por exemplo.
"Serão 8.000 a 9.000 pessoas livres da enchente no inverno", afirma o engenheiro elétrico sergipano Duílio Diniz de Figueiredo, 66, diretor-presidente da Nesa. "Belo Monte foi além, [fez] ações que seriam do Estado."
Figueiredo diz que toda construção de hidrelétrica tem quatro fases. Na primeira, o "pessoal do contra cria um ambiente de que tudo é só promessa".
Num segundo momento, o atual, tudo é desconforto: o trânsito, os aluguéis, a violência. No terceiro, as compensações começam a se tornar evidentes.
Na quarta fase, afirma, "[a usina] passa a fazer parte da paisagem".