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Cifras & Letras Crítica / Capitalismo Filósofo põe em xeque limites morais das leis de mercado Livro debate como o dinheiro redefine valores, condutas e relações humanas SE DINHEIRO É FATOR DECISIVO PARA A COMPRA DE UM BEM SUPÉRFLUO, A HISTÓRIA MUDA QUANDO BEBÊS OU ÓRGÃOS VITAIS SÃO OBJETOS DE UMA TROCA NATÁLIA PAIVAEM MADRI O filósofo Michael Sandel, que ministra uma das aulas mais concorridas em Harvard, abre seu novo livro com uma questão: o que o dinheiro não pode comprar. Um filho? Um lugar na fila para audiência pública? O direito de matar um animal em extinção? Afeto? Cultura? Ao contrário do que dizia uma antiga propaganda de cartão de crédito, tudo isso hoje, sim, já tem o seu preço. Uma americana já pode, por exemplo, terceirizar os incômodos da gravidez a uma indiana, pagando US$ 6.250. Por US$ 20 a hora, moradores de rua dormem na fila do Capitólio, o prédio do Congresso americano, em véspera de audiências importantes, contratados por empresas especializadas que depois vendem o lugar para lobistas. Na África do Sul, por US$ 150 mil, um caçador compra o direito de matar um rinoceronte-negro. E assim segue... Em "What Money Can't Buy (O que o Dinheiro Não Pode Comprar)", Sandel lista dezenas de exemplos para afirmar que a economia de mercado deixou de ser somente ferramenta útil para organizar a atividade produtiva: passou a definir relações sociais e valores morais. De sutilezas como a compra do direito de nomear locais públicos, como a que o Barclays fez de uma estação de metrô de Nova York, a debates globais como o mercado de créditos de carbono. DILEMAS Os exemplos são agrupados por temas amplos. Aborda a substituição da ética da fila -"o primeiro a chegar será servido antes"- pela orientação do maior preço. Trata ainda do aumento de incentivos, como pagar para um estudante ler livros; do esvaziamento das relações afetivas, com empresas especializadas em vender pedidos de desculpas -e da "indústria da morte", reflexão sobre o mercado secundário de apólices de seguros de vida de idosos. Aos exemplos de que tudo hoje tem seu preço segue a pergunta: há algo que o dinheiro não deveria comprar? O método de análise é semelhante ao de seu livro anterior -"Justiça: Qual é a Coisa Certa a Fazer?". Sandel alia teoria filosófica, de Aristóteles a Kant, a dilemas morais atuais, como políticas públicas que adotam ações afirmativas de inclusão. Para analisar, por exemplo, o mercado de órgãos vitais ou um eventual mercado de bebês para adoção, o autor usa dois parâmetros: justiça e "corrupção" do bem. Aqui cabe um aparte: esse eventual mercado de bebês para adoção foi proposto por um juiz americano e previa que crianças fossem destinadas a pais/consumidores dispostos a pagar de acordo com a lei de oferta e procura. A proposta não vingou. A premissa do autor para a análise dos limites morais é a da eficiência do mercado. Com um preço-equilíbrio, haveria mais incentivo para doação de rins, por exemplo, e mais gente em necessidade poderia garantir um transplante. Do mesmo modo, agências de adoção seriam mais eficientes. Como ocorre numa transação livre, tanto o vendedor como o comprador se beneficiariam. Mas, pondera o filósofo, os mercados nem sempre são eficientes e justos. Se dinheiro é fator decisivo para a compra de um bem supérfluo, tal qual um smartphone, a história muda quando filhos ou rins são objeto de uma troca. Se as pessoas compram e vendem em condições desiguais ou de extrema necessidade, poderia ocorrer que só ricos fariam transplantes ou adotariam os bebês mais "desejáveis", assim como os mais pobres se veriam obrigados a vender um rim ou um filho. Além disso, afirma Sandel, mercados deixam marcas, "expressam e promovem certas atitudes em relação aos bens trocados". Nesse sentido, um filho ou uma maternidade seriam "corrompidos" em significado e propósito, com efeito degradante. ALÉM DA COBIÇA Para deliberar se um bem deve ir ao mercado ou não, escreve o autor, é preciso definir claramente seu significado e seu propósito -e quais valores devem governá-lo. Apesar de ter narrativa fluida, Sandel frequentemente pula de um exemplo a outro sem completar o raciocínio. O traço filosófico do livro, entretanto, tem o mérito de levar o debate sobre moral e economia para além da ideia de "cobiça" associada a Wall Street e bandeira principal dos movimentos "Occupy" que se rebelaram contra os mercados pós-crise de 2008. A mudança em curso na ideia de mercado, destaca o autor, não está atrelada à cobiça-alvo dos atuais protestos, mas sim à expansão dos valores de mercado para esferas tradicionalmente governadas por outras normas. Se existem alguns bens que o dinheiro nunca deveria comprar, a obra deixa no ar questões sobre quais seriam. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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