São Paulo, sábado, 16 de julho de 2011

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ROBERTO RODRIGUES

Frio


A gente se casa com o cafezal, fica ligado a ele por laços emocionais, e não apenas materiais

FAZIA MUITO frio naquele fim de tarde de julho, completamente fora dos padrões da região. Muito frio.
Ele tinha ouvido no rádio que poderia gear na madrugada seguinte e estava preocupado.
Depois de anos de preços baixos, contas que não fechavam, uma dureza sem tamanho, finalmente as coisas estavam melhorando.
Os preços do café tinham reagido, tomara coragem e recepara todo o cafezal em setembro. A plantação já tinha passado dos dez anos, mas era bem instalada, variedade adequada, sempre bem tratada, embora com sacrifícios.
Fizera a poda com orientação do bom engenheiro agrônomo da cooperativa e a brotação fora um sucesso, as árvores estavam esbanjando vigor. Andava muito feliz com a expectativa de safra boa no próximo ano, promessa certa com as plantas tão bem preparadas.
Mas agora, ante a possibilidade de uma geada, estava ansioso.
Percorrera toda a fazenda preparando as defesas possíveis, colocando pneus velhos para queimar em pontos estratégicos, além de tambores cheios de serragem: a fumaça ajudaria a minimizar os efeitos do frio intenso.
Era uma prática usual nos locais onde as geadas eram mais comuns.
Ficou um tempo ali no terraço da casa da sede, crepúsculo magnífico, o horizonte vermelho contra o qual se recortavam as imagens das árvores que ele conhecia tão bem.
"Rosso di sera, bel tempo si spera", dizia a mãe, filha de imigrantes italianos, "vermelho de tarde, bom tempo virá". Que tempo bom, pensava, se poderia gear?
Os anos de penúria haviam acabado com tudo. Até a mulher o deixara, não suportando mais as dificuldades financeiras por tanto tempo. "Em casa que falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão", pensava, sofrendo, mas entendendo a mulher.
Ficou ali, matutando, os três fox paulistinhas tiritando de frio aos seus pés, olhando para ele com aquele olhar de pedintes, suplicando por calor.
E pensou nos últimos anos em que penara sem calor, só, sobrevivendo no limite das próprias forças, sem sair da fazenda, a não ser para negociar as dívidas.
Quando a mulher o deixara, dissera uma frase dura: "Você se casou com a agricultura, não pos- so competir com ela, é uma rival muito poderosa; você a adora, só pensa nela, só cuida dela, vive para ela, não tem lugar para mim nos seus sentimentos".
De fato, pensava agora, a gente se casa com um pé de café quando o planta. Não é como uma cultura anual, também maravilhosa, como a soja, o milho, o algodão, que a gente planta, trata, colhe e vende em seis ou oito meses; a gente se casa com o cafezal por 20, 25 anos, fica ligado a ele por laços emocionais, e não apenas materiais.
Cada safra, exagerava, era um novo filho dele com a plantação. E, dali do terraço, coração acelerado enquanto a noite caía devagar, ficou olhando com carinho o cafe- zal brotado, verde, sumindo aos poucos na escuridão... Nem uma brisa soprava, o ar parado, um silêncio monumental assombrando a natureza.
Foi deitar bem tarde; sabia, porque assim diziam os antigos, que é preciso ficar de olho no termômetro: se a temperatura cair 1ºC por hora, é geada na certa. Fazia 12ºC às 19h. E à meia-noite já estava em 6ºC: caiu mais de 1ºC por hora.
Entrou na cama gelada, depois de deixar os cachorros dormirem na cozinha, com o restinho do calor do fogão de lenha, e não pregou o olho.
Lembrou-se da tragédia narrada por Monteiro Lobato em "Negrinha", no conto "O Drama da Geada". Pulou da cama às 3h, fazia 4ºC, saiu a pé e foi acender todas as preparações dos pneus e dos barris, pela roça inteirinha.
Feito isso, voltou para a cama, enregelado, pressentindo uma desgraça. O frio queimava suas esperanças. O breu da noite, mau conselheiro, o atormentava. Aguentou firme o que pôde, mas logo se levantou, tomou um café quente...
Quando as primeiras luzes da madrugada permitiram, viu o véu branco da morte cobrindo toda a plantação...
E morreu também, um pouco, por dentro...

ROBERTO RODRIGUES, 68, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Depto. de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula). Escreve aos sábados, a cada 14 dias, nesta coluna.
rr.ceres@uol.com.br


AMANHÃ EM MERCADO:
Fábio Barbosa


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