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Depoimento Guerra do Iraque

'Íamos na contramão do bom-senso, para uma cobertura incerta'

Repórter-fotográfico relembra a sua chegada a Bagdá para acompanhar o início dos bombardeios em 2003

JUCA VARELLA
DE SÃO PAULO

Tive a oportunidade e o privilégio de conhecer, mesmo que por algumas poucas horas, um Iraque ainda livre da ocupação americana.

Era o dia 19 de março de 2003. Por volta das 16h, cruzávamos a fronteira iraquiana rumo a Bagdá eu, repórter-fotográfico da Folha, e Sérgio Dávila, atual editor-executivo do jornal.

Íamos na contramão do bom-senso, viajando por uma estrada deserta no sentido de Bagdá, que nos levava a uma cobertura de incertezas.

Na pista contrária, um congestionamento de carros militares, diplomáticos, de organizações humanitárias e da população que começava a fugir da guerra que estava por vir, indo se refugiar na vizinha Jordânia.

Carregavam tudo o que podiam: gente, móveis e animais, transformando seus velhos carros em arcas de Noé.

Por volta das 22h nos instalamos equivocadamente no famoso e sepulcral Al-Rasheed, hotel de onde Peter Arnett reportou a Guerra do Golfo, ao vivo, em 1991, pela CNN.

Não sabíamos, mas de hotel-referência o Al-Rasheed havia se transformado naquela noite em hotel-alvo.

Rapidamente nos deslocamos, com muita dificuldade, para o Hotel Palestine, onde estavam concentrados os últimos 180 jornalistas -antes, havia mais de 2.000- que ficaram para cobrir os bombardeios que viriam em seguida, sem saber, ainda, que éramos os únicos brasileiros no front.

Por volta das 5h, as sirenes de alerta de ataque aéreo soaram. A artilharia antiaérea disparou. Os cães começaram a latir freneticamente. Foram os primeiros sons que confirmavam que a guerra era real, e eu estava no meio dela.

Nos dias que se seguiram presenciamos e reportamos os efeitos daqueles bombardeios, suas vítimas e seus sobreviventes, por meio do Diário de Bagdá, nas páginas da Folha.

De certa forma fomos sobreviventes também. Numa única noite, mais de 300 mísseis Tomahawk foram despejados sobre Bagdá sob o nome de "bomb carpet", ou tapete de bombas, em uma terra onde se costumava falar em "flying-carpet", ou tapete voador.

Muitos dos prédios do governo que havíamos visto de pé naquelas poucas horas que antecederam o início da guerra agora estavam no chão ou seriamente afetados. O Al-Rasheed era um deles.

No dia 9 de abril a ocupação americana se consolidou com a derrubada da estátua de Saddam na praça Al-Firdos, em frente ao Palestine.

O que presenciamos nos dias seguintes foram saques e desordem generalizados. Os americanos tomaram o país, não cumpriram um dos acordos fundamentais da Convenção de Genebra (cuidar da segurança e da ordem do país ocupado), e as consequências foram desastrosas.

Estive mais duas vezes no Iraque, em 2005 e no ano passado, cobrindo eleições. Pude ver, de forma gradativa, a reconstrução de Bagdá e os soldados americanos saindo das ruas, deixando a difícil tarefa de manter a segurança pública nas mãos dos iraquianos. Agora, com a retirada definitiva, sobram as marcas e um sonho.

Marcas de uma ocupação que mudará para sempre os hábitos e os valores daquele povo e o sonho de uma democracia.

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