São Paulo, quarta-feira, 01 de janeiro de 2003

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ARTIGO

Uma guerra complicada demais

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentre as marcas que a administração Bush júnior irá legar para a história, uma pelo menos já se configurou. Segundo pesquisa realizada pelo Pew Research Center for the People and the Press em 44 países, a imagem internacional dos Estados Unidos se deteriorou acentuadamente nos últimos dois anos.
De acordo com a maioria dos entrevistados, o governo norte-americano ignora os interesses e as necessidades dos outros países, contribui para ampliar a distância entre ricos e pobres e não colabora para a resolução dos grandes problemas mundiais.
É interessante notar que as consultas não revelaram, no geral, ressentimentos quanto ao fato de o país ter se tornado a superpotência preponderante nem indicaram qualquer abalo no prestígio de que gozam a tecnologia e a cultura popular americanas. É precisamente na área das relações internacionais que todo o problema se concentra.
Como seria de esperar, se a questão se manifesta no setor das tensões no âmbito global, seu foco mais explosivo é o Oriente Médio. Nesse sentido o mesmo instituto conduziu outra pesquisa, restrita aos Estados Unidos e a cinco de seus principais aliados, Reino Unido, França, Alemanha, Rússia e Turquia. A grande maioria dos consultados concordou que a política agressiva de Saddam Hussein é um risco para toda a região e, por extensão, para o mundo. Admitiram também que não só seu arsenal de armas de grande potencial deveria ser desativado, mas até que seu regime ditatorial deveria ser condicionado a algumas mudanças estruturais.
O consenso porém só foi até aí. Quando questionados se apoiariam o uso de força para implementar essas medidas, a ampla maioria respondeu que não em todos os países, exceto nos Estados Unidos. No Reino Unido deu empate.
De novo o desacordo entre as partes ficou evidente quando a questão formulada foi se consideravam o risco representado pela beligerância de Saddam Hussein como a maior ameaça que pesava sobre o mundo atual. A maioria disse que sim nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas todos os demais apontaram, majoritariamente, o conflito árabe-israelense na Palestina como o mais perigoso foco de tensões internacionais. O que levou a enquete à questão decisiva, se os entrevistados achavam que o grande objetivo dos americanos era conseguir a estabilidade da região ou o controle das fontes de petróleo. Só os americanos acharam que a meta principal é a estabilização política do Oriente Médio.
Como se vê, e por paradoxal que pareça, quanto mais expressivamente os Estados Unidos se tornam uma potência mundial, mais tendem a alienar seus parceiros globais e mais tendem a se isolar em visões unilaterais de problemas que dizem respeito a todos.
Essa não era a percepção que prevalecia na administração Clinton. Como informa a pesquisa acima, ela começou a se consolidar a partir da posse de Bush filho. Não é difícil inferir, e até a própria Academia de Ciências de Estocolmo o confirmou, que foi o desconforto gerado por essa nova orientação política, sentido por toda parte, que acabou dirigindo o Prêmio Nobel para as mãos cordiais do ex-presidente Jimmy Carter.
A rapidez com que a cena internacional muda, especialmente após os eventos de 11 de setembro de 2001, ficou patente nos debates transcorridos durante a reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte em meados de novembro. Alguns ilustres representantes da imprensa americana consideraram a reunião, a despeito de toda a euforia com a expansão para o leste e planos ambiciosos para o futuro, como o autêntico canto do cisne da Otan.
Para eles, ela foi o símbolo da Guerra Fria, cujo principal teatro de tensões foi o continente europeu. Agora o quadro é outro. O foco do atrito se transferiu para a ampla região que vai do Oriente Médio à Indonésia.
Nessa nova situação, a Europa se torna numa mera força auxiliar. Militarmente acessória, ela pode no entanto se tornar diplomaticamente decisiva, desde que abandone seus compromissos históricos e suas relutâncias éticas. Segundo essa nova visão americana, justamente por seu longo convívio, suas relações comerciais e culturais com o Oriente Próximo e as civilizações islâmicas, os europeus têm um perfil mais apropriado para operações humanitárias, tarefas de pacificação, de apoio econômico, consultorias técnicas e políticas sociais. Nessas condições, a parceria ideal levaria os Estados Unidos a se encarregar das iniciativas militares, valendo-se de sua superioridade tecnológica e estratégica, cabendo aos europeus os esforços de reconstrução econômica, reestruturação social e reconciliação política entre os povos e as regiões atingidos. Nem é preciso dizer, poucos na Europa aceitam esse papel ou essa concepção.
Como se sabe, mesmo no interior do governo Bush há divisões quanto a essa nova doutrina. A mais conhecida e evidente é aquela que opõe a diplomacia do Departamento de Estado, representada por Colin Powell, à linha militarista do Pentágono, encabeçada pelo vice-presidente Dick Cheney e pelo secretário da Defesa, Donald Rumsfeld. Em reuniões com o presidente e com membros do Congresso, Powell conseguiu fazer prevalecer a opção pelo encaminhamento do conflito com o Iraque através da ONU, das resoluções coletivas, do retorno das inspeções e da eliminação do arsenal de armas de grande potência. Bush consentiu, apostando na inevitabilidade de Saddam Hussein romper as normas draconianas impostas via ONU. Daí a concentração de enormes forças terrestres, aéreas e navais na região. Na retórica era o efeito dissuasivo, na prática, a política de tornar a guerra irreversível.
Novas contingências, porém, complicaram esse quadro além da conta. Saddam Hussein vem satisfazendo as mais aguerridas demandas do processo de inspeção, transferindo assim o ônus da prova para os Estados Unidos. Da forma como as coisas foram postas, se não se demonstrar a existência do dito arsenal, a opinião pública internacional não apoiará a guerra. Ao mesmo tempo a Coréia do Norte retoma seu programa nuclear, o Irã se realinha com a Rússia, e o Paquistão e a Venezuela submergem na turbulência política. Num breve intervalo, Saddam parece ter-se tornado um problema menor. O mercado do petróleo ameaça disparar. A Turquia e a Arábia Saudita se recusam a deixar suas bases serem usadas para as operações militares, uma temendo que a ruptura do regime iraquiano dê origem a um Estado curdo autônomo, e a outra, que surja no sul uma federação xiita aliada ao Irã.
Essa reconfiguração de potencial caótico evidencia algumas das muitas conseqüências não previstas da guerra. Ela também lança luzes sobre outra divisão, menos fácil de perceber, na própria ala direita do governo Bush. É aquela que opõe os chamados "imperialistas democráticos" e os "nacionalistas convictos".
Os primeiros são representados por Paul Wolfowitz e os segundos pela dupla Cheney-Rumsfeld. Os imperialistas alimentam o projeto de depor Saddam e reconstruir no lugar uma democracia de tipo americano, que se tornaria o modelo para uma transformação de toda a região. Os nacionalistas propõem destituir o ditador e deixar que os iraquianos decidam o que fazer com o país, desde que não ameacem mais a região e seus recursos.
Bush oscila entre essas várias pressões e opções como numa roda de loteria. Leva US$ 1 milhão quem acertar a sequência. A questão, é claro, não é se ele vai ou não desencadear a guerra, mas, uma vez desencadeada, no que ela haveria de dar? Esperemos que prevaleça a vontade da maioria da população mundial, aquietando as ansiedades da administração Bush e nos dando a paz e a concórdia que todos desejamos para o Ano Novo.


Nicolau Sevcenko, 50, é professor de história da cultura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo)


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