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ARTIGO
Uma guerra complicada demais
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dentre as marcas que a administração Bush júnior irá legar para a história, uma pelo menos já se
configurou. Segundo pesquisa
realizada pelo Pew Research Center for the People and the Press
em 44 países, a imagem internacional dos Estados Unidos se deteriorou acentuadamente nos últimos dois anos.
De acordo com a maioria dos
entrevistados, o governo norte-americano ignora os interesses e
as necessidades dos outros países,
contribui para ampliar a distância
entre ricos e pobres e não colabora para a resolução dos grandes
problemas mundiais.
É interessante notar que as consultas não revelaram, no geral,
ressentimentos quanto ao fato de
o país ter se tornado a superpotência preponderante nem indicaram qualquer abalo no prestígio de que gozam a tecnologia e a
cultura popular americanas. É
precisamente na área das relações
internacionais que todo o problema se concentra.
Como seria de esperar, se a
questão se manifesta no setor das
tensões no âmbito global, seu foco
mais explosivo é o Oriente Médio.
Nesse sentido o mesmo instituto
conduziu outra pesquisa, restrita
aos Estados Unidos e a cinco de
seus principais aliados, Reino
Unido, França, Alemanha, Rússia
e Turquia. A grande maioria dos
consultados concordou que a política agressiva de Saddam Hussein é um risco para toda a região
e, por extensão, para o mundo.
Admitiram também que não só
seu arsenal de armas de grande
potencial deveria ser desativado,
mas até que seu regime ditatorial
deveria ser condicionado a algumas mudanças estruturais.
O consenso porém só foi até aí.
Quando questionados se apoiariam o uso de força para implementar essas medidas, a ampla
maioria respondeu que não em
todos os países, exceto nos Estados Unidos. No Reino Unido deu
empate.
De novo o desacordo entre as
partes ficou evidente quando a
questão formulada foi se consideravam o risco representado pela
beligerância de Saddam Hussein
como a maior ameaça que pesava
sobre o mundo atual. A maioria
disse que sim nos Estados Unidos
e no Reino Unido, mas todos os
demais apontaram, majoritariamente, o conflito árabe-israelense
na Palestina como o mais perigoso foco de tensões internacionais.
O que levou a enquete à questão
decisiva, se os entrevistados achavam que o grande objetivo dos
americanos era conseguir a estabilidade da região ou o controle
das fontes de petróleo. Só os americanos acharam que a meta principal é a estabilização política do
Oriente Médio.
Como se vê, e por paradoxal que
pareça, quanto mais expressivamente os Estados Unidos se tornam uma potência mundial, mais
tendem a alienar seus parceiros
globais e mais tendem a se isolar
em visões unilaterais de problemas que dizem respeito a todos.
Essa não era a percepção que
prevalecia na administração Clinton. Como informa a pesquisa
acima, ela começou a se consolidar a partir da posse de Bush filho.
Não é difícil inferir, e até a própria
Academia de Ciências de Estocolmo o confirmou, que foi o desconforto gerado por essa nova
orientação política, sentido por
toda parte, que acabou dirigindo
o Prêmio Nobel para as mãos cordiais do ex-presidente Jimmy
Carter.
A rapidez com que a cena internacional muda, especialmente
após os eventos de 11 de setembro
de 2001, ficou patente nos debates
transcorridos durante a reunião
da Organização do Tratado do
Atlântico Norte em meados de
novembro. Alguns ilustres representantes da imprensa americana
consideraram a reunião, a despeito de toda a euforia com a expansão para o leste e planos ambiciosos para o futuro, como o autêntico canto do cisne da Otan.
Para eles, ela foi o símbolo da
Guerra Fria, cujo principal teatro
de tensões foi o continente europeu. Agora o quadro é outro. O
foco do atrito se transferiu para a
ampla região que vai do Oriente
Médio à Indonésia.
Nessa nova situação, a Europa
se torna numa mera força auxiliar. Militarmente acessória, ela
pode no entanto se tornar diplomaticamente decisiva, desde que
abandone seus compromissos
históricos e suas relutâncias éticas. Segundo essa nova visão
americana, justamente por seu
longo convívio, suas relações comerciais e culturais com o Oriente
Próximo e as civilizações islâmicas, os europeus têm um perfil
mais apropriado para operações
humanitárias, tarefas de pacificação, de apoio econômico, consultorias técnicas e políticas sociais.
Nessas condições, a parceria ideal
levaria os Estados Unidos a se encarregar das iniciativas militares,
valendo-se de sua superioridade
tecnológica e estratégica, cabendo
aos europeus os esforços de reconstrução econômica, reestruturação social e reconciliação política entre os povos e as regiões atingidos. Nem é preciso dizer, poucos na Europa aceitam esse papel
ou essa concepção.
Como se sabe, mesmo no interior do governo Bush há divisões
quanto a essa nova doutrina. A
mais conhecida e evidente é aquela que opõe a diplomacia do Departamento de Estado, representada por Colin Powell, à linha militarista do Pentágono, encabeçada pelo vice-presidente Dick Cheney e pelo secretário da Defesa,
Donald Rumsfeld. Em reuniões
com o presidente e com membros
do Congresso, Powell conseguiu
fazer prevalecer a opção pelo encaminhamento do conflito com o
Iraque através da ONU, das resoluções coletivas, do retorno das
inspeções e da eliminação do arsenal de armas de grande potência. Bush consentiu, apostando na
inevitabilidade de Saddam Hussein romper as normas draconianas impostas via ONU. Daí a concentração de enormes forças terrestres, aéreas e navais na região.
Na retórica era o efeito dissuasivo,
na prática, a política de tornar a
guerra irreversível.
Novas contingências, porém,
complicaram esse quadro além
da conta. Saddam Hussein vem
satisfazendo as mais aguerridas
demandas do processo de inspeção, transferindo assim o ônus da
prova para os Estados Unidos. Da
forma como as coisas foram postas, se não se demonstrar a existência do dito arsenal, a opinião
pública internacional não apoiará
a guerra. Ao mesmo tempo a Coréia do Norte retoma seu programa nuclear, o Irã se realinha com
a Rússia, e o Paquistão e a Venezuela submergem na turbulência
política. Num breve intervalo,
Saddam parece ter-se tornado um
problema menor. O mercado do
petróleo ameaça disparar. A Turquia e a Arábia Saudita se recusam a deixar suas bases serem
usadas para as operações militares, uma temendo que a ruptura
do regime iraquiano dê origem a
um Estado curdo autônomo, e a
outra, que surja no sul uma federação xiita aliada ao Irã.
Essa reconfiguração de potencial caótico evidencia algumas das
muitas conseqüências não previstas da guerra. Ela também lança
luzes sobre outra divisão, menos
fácil de perceber, na própria ala
direita do governo Bush. É aquela
que opõe os chamados "imperialistas democráticos" e os "nacionalistas convictos".
Os primeiros são representados
por Paul Wolfowitz e os segundos
pela dupla Cheney-Rumsfeld. Os
imperialistas alimentam o projeto
de depor Saddam e reconstruir no
lugar uma democracia de tipo
americano, que se tornaria o modelo para uma transformação de
toda a região. Os nacionalistas
propõem destituir o ditador e deixar que os iraquianos decidam o
que fazer com o país, desde que
não ameacem mais a região e seus
recursos.
Bush oscila entre essas várias
pressões e opções como numa roda de loteria. Leva US$ 1 milhão
quem acertar a sequência. A questão, é claro, não é se ele vai ou não
desencadear a guerra, mas, uma
vez desencadeada, no que ela haveria de dar? Esperemos que prevaleça a vontade da maioria da
população mundial, aquietando
as ansiedades da administração
Bush e nos dando a paz e a concórdia que todos desejamos para
o Ano Novo.
Nicolau Sevcenko, 50, é professor de
história da cultura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
(Universidade de São Paulo)
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