São Paulo, domingo, 01 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BÁLCÃS

Dez anos após o fim do conflito civil, país constrói lentamente o seu futuro, com a ajuda de forças internacionais

Pobre, Bósnia enfrenta herança da guerra

ANA MARÍA MARTIN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DA BÓSNIA

"Essa área não fica próxima do centro. De noite, é melhor que você não se afaste do hotel. Não existe grande perigo, mas assim é mais seguro. Se continuamos aqui de vigia, é por algum motivo." Essas advertências nos servem de boas-vindas da parte dos militares da Eufor (Força da União Européia) que continuam a garantir a segurança de Sarajevo. Entramos na cidade pela grande avenida, anos atrás amargamente conhecida como "avenida dos atiradores" e que hoje recebe os poucos estrangeiros que se atrevem a pisar na cidade.
Uma cor predomina em Sarajevo: o verde militar, que é visível nas ruas, nos restaurantes e nas patrulhas. Há cerca de 6.500 soldados estacionados no país, e os objetivos que lhes foram prescritos ainda não foram realizados. Além da dificuldade de manter a segurança, a corrupção e o crime organizado são fantasmas que ameaçam a estabilidade, já em si difícil de alcançar em um território dividido em duas entidades, a Federação da Bósnia-Herzegóvina e a República Srpska, com três nacionalidades e quatro religiões.
O país está avaliando o passado, no aniversário de uma década dos acordos de Dayton, assinados em 14 de dezembro de 1995. Do quebra-cabeças étnico que formava a Bósnia até os anos 90 (bósnios muçulmanos, croatas católicos e sérvios ortodoxos), só restam os símbolos: catedrais, mesquitas e sinagogas.
Dez anos podem ser tempo suficiente para curar feridas, mas não bastam para cicatrizar as de um país que passou por uma das maiores limpezas étnicas da história. Durante mais de três anos (entre abril de 1992 e dezembro de 1995), a Bósnia foi cenário de um brutal genocídio contra os muçulmanos que habitavam esse território balcânico. À primeira vista, a normalidade parece ter se instalado às margens do rio Miljacka, mas basta observar com atenção para descobrir a realidade: escombros ainda por recolher tornam impossível esquecer que ali, dez anos atrás, morreram cerca de 250 mil pessoas, e mais de 1,8 milhão teve de fugir.

Pobreza
Jusuf Husoviae é bósnio e completará 50 anos em seu próximo aniversário. Uma bomba custou-lhe a perda quase total da visão em um olho e cobriu-lhe o rosto de cicatrizes. "Resta muito a fazer para que tudo volte a ser como antes, mas temos esperança", diz. Como a maioria dos habitantes de mais de 40 anos, ele voltou para ficar e, ao contrário de muitos de seus companheiros, não teme as lentes das câmeras.
Husoviae foi militar na época em que "valia a pena lutar"; agora, reformado, sua vida se resume a jogar xadrez com um grupo de amigos na movimentada avenida Marsala Tita. "Não posso fazer muito mais, com o que ganho", lamenta, ainda que possa ser visto como privilegiado. Recebe uma pensão mensal de 300, que divide apenas com sua mulher.
"Conheço situações piores", diz. "É que não existe classe média. Mais ou menos 97% das pessoas são pobres, e os 3% restantes se tornaram ricos à nossa custa." E quem são esses magnatas? "Ora, quem poderiam ser? Aqueles que cuidam de nós", disse Husoviae, em alusão aos políticos.

Soldados da reconstrução
Zaim é muçulmano como Husoviae, mas não praticante. É algo cada vez mais comum em um país no qual a religião, desde a era do marechal Tito (1945-80), tornou-se forma de definir a nacionalidade. Passa as horas em sua barraca de quinquilharias de não mais de 3 m2. "Está vendo os jovens? Contentes com suas roupas da moda e seus móveis de última geração? Olhando para eles, parece que tudo avança, prospera, mas isso é só aparência. Eles não têm condições de arcar com essas coisas. Não são ricos, não têm dinheiro."
Custa a Zaim compreender, depois de ver o sofrimento que sua geração enfrentou antes de recomeçar a vida, a forma pela qual os jovens agora caminham pelas ruas como se nada houvesse acontecido. "Deveriam procurar empregos", diz. No entanto o país tem cerca de 40% de desemprego.
Apesar dos planos para eleições, uma nova Constituição e eventual admissão à União Européia, é a ajuda internacional que garante o futuro imediato na Bósnia.

Mostar
Benito Raggio, general espanhol que comanda parte das forças estacionadas no país, demonstra certeza: "Não abandonaremos a tarefa até que a Bósnia possa cuidar de si. Mas, a partir de janeiro, é preciso que os bósnios comecem a tomar a iniciativa". Raggio comanda as operações na zona sudeste, de seu quartel em Mostar, o retrato vivo do confronto.
A cidade é o símbolo mais claro da guerra. Sempre foi uma região mista, e continua sendo, ainda que agora dividida ao longo da avenida que serviu de frente de batalha por três anos. De um lado fica a zona croata, na margem direita do rio Neretva.
Às 18h30, a outra metade da cidade escuta um cântico familiar e imediatamente abandona as atividades e se entrega à oração, seja em casa, no trabalho ou na mesquita. Até o ano passado, a face mais conhecida da cidade estava ausente do panorama -a Stari Most, ou ponte velha, que só foi reconstruída em 2004. Era a imagem mais expressiva do ódio entre os muçulmanos e os sérvios, quando estes últimos a bombardearam, em 1993.
A pessoa que mais conhece a ponte é Emir Baliae, o mais famoso dos mergulhadores da competição anual de saltos ornamentais que a cidade organiza. "Deixemos que o tempo reconcilie ambas as partes. Se a ponte foi reerguida, a cidade também o será."
Como a Stari Most, muitos outros monumentos e edifícios foram reconstruídos, sobretudo na capital. Outras edificações ainda esperam as mãos de um arquiteto benévolo e os investimentos necessários à reconstrução.
Os trâmites para a reconstrução da Biblioteca Nacional de Sarajevo, que, no centenário de sua construção, em 1992, foi queimada com mais de 2 milhões de documentos em seu interior, também foram iniciados, ainda que, por enquanto, o edifício continue tão arruinado quanto estava logo após a conflagração. A espera promete ser tão longa quanto o pós-guerra.


Tradução de Paulo Migliacci


Texto Anterior: Mão de ferro: Putin ameaça fechar gasoduto que alimenta aquecedores da Ucrânia
Próximo Texto: Saiba mais: Conflito começou após a crise do pacto federativo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.