|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BÁLCÃS
Dez anos após o fim do conflito civil, país constrói lentamente o seu futuro, com a ajuda de forças internacionais
Pobre, Bósnia enfrenta herança da guerra
ANA MARÍA MARTIN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DA BÓSNIA
"Essa área não fica próxima do
centro. De noite, é melhor que você não se afaste do hotel. Não existe grande perigo, mas assim é
mais seguro. Se continuamos
aqui de vigia, é por algum motivo." Essas advertências nos servem de boas-vindas da parte dos
militares da Eufor (Força da
União Européia) que continuam
a garantir a segurança de Sarajevo. Entramos na cidade pela grande avenida, anos atrás amargamente conhecida como "avenida
dos atiradores" e que hoje recebe
os poucos estrangeiros que se
atrevem a pisar na cidade.
Uma cor predomina em Sarajevo: o verde militar, que é visível
nas ruas, nos restaurantes e nas
patrulhas. Há cerca de 6.500 soldados estacionados no país, e os
objetivos que lhes foram prescritos ainda não foram realizados.
Além da dificuldade de manter a
segurança, a corrupção e o crime
organizado são fantasmas que
ameaçam a estabilidade, já em si
difícil de alcançar em um território dividido em duas entidades, a
Federação da Bósnia-Herzegóvina e a República Srpska, com três
nacionalidades e quatro religiões.
O país está avaliando o passado,
no aniversário de uma década dos
acordos de Dayton, assinados em
14 de dezembro de 1995. Do quebra-cabeças étnico que formava a
Bósnia até os anos 90 (bósnios
muçulmanos, croatas católicos e
sérvios ortodoxos), só restam os
símbolos: catedrais, mesquitas e
sinagogas.
Dez anos podem ser tempo suficiente para curar feridas, mas não
bastam para cicatrizar as de um
país que passou por uma das
maiores limpezas étnicas da história. Durante mais de três anos
(entre abril de 1992 e dezembro de
1995), a Bósnia foi cenário de um
brutal genocídio contra os muçulmanos que habitavam esse território balcânico. À primeira vista,
a normalidade parece ter se instalado às margens do rio Miljacka,
mas basta observar com atenção
para descobrir a realidade: escombros ainda por recolher tornam impossível esquecer que ali,
dez anos atrás, morreram cerca
de 250 mil pessoas, e mais de 1,8
milhão teve de fugir.
Pobreza
Jusuf Husoviae é bósnio e completará 50 anos em seu próximo
aniversário. Uma bomba custou-lhe a perda quase total da visão
em um olho e cobriu-lhe o rosto
de cicatrizes. "Resta muito a fazer
para que tudo volte a ser como
antes, mas temos esperança", diz.
Como a maioria dos habitantes de
mais de 40 anos, ele voltou para ficar e, ao contrário de muitos de
seus companheiros, não teme as
lentes das câmeras.
Husoviae foi militar na época
em que "valia a pena lutar"; agora,
reformado, sua vida se resume a
jogar xadrez com um grupo de
amigos na movimentada avenida
Marsala Tita. "Não posso fazer
muito mais, com o que ganho",
lamenta, ainda que possa ser visto
como privilegiado. Recebe uma
pensão mensal de 300, que divide apenas com sua mulher.
"Conheço situações piores",
diz. "É que não existe classe média. Mais ou menos 97% das pessoas são pobres, e os 3% restantes
se tornaram ricos à nossa custa."
E quem são esses magnatas? "Ora,
quem poderiam ser? Aqueles que
cuidam de nós", disse Husoviae,
em alusão aos políticos.
Soldados da reconstrução
Zaim é muçulmano como Husoviae, mas não praticante. É algo
cada vez mais comum em um país
no qual a religião, desde a era do
marechal Tito (1945-80), tornou-se forma de definir a nacionalidade. Passa as horas em sua barraca
de quinquilharias de não mais de
3 m2. "Está vendo os jovens? Contentes com suas roupas da moda e
seus móveis de última geração?
Olhando para eles, parece que tudo avança, prospera, mas isso é só
aparência. Eles não têm condições de arcar com essas coisas.
Não são ricos, não têm dinheiro."
Custa a Zaim compreender, depois de ver o sofrimento que sua
geração enfrentou antes de recomeçar a vida, a forma pela qual os
jovens agora caminham pelas
ruas como se nada houvesse
acontecido. "Deveriam procurar
empregos", diz. No entanto o país
tem cerca de 40% de desemprego.
Apesar dos planos para eleições,
uma nova Constituição e eventual
admissão à União Européia, é a
ajuda internacional que garante o
futuro imediato na Bósnia.
Mostar
Benito Raggio, general espanhol
que comanda parte das forças estacionadas no país, demonstra
certeza: "Não abandonaremos a
tarefa até que a Bósnia possa cuidar de si. Mas, a partir de janeiro,
é preciso que os bósnios comecem a tomar a iniciativa". Raggio
comanda as operações na zona
sudeste, de seu quartel em Mostar, o retrato vivo do confronto.
A cidade é o símbolo mais claro
da guerra. Sempre foi uma região
mista, e continua sendo, ainda
que agora dividida ao longo da
avenida que serviu de frente de
batalha por três anos. De um lado
fica a zona croata, na margem direita do rio Neretva.
Às 18h30, a outra metade da cidade escuta um cântico familiar e
imediatamente abandona as atividades e se entrega à oração, seja
em casa, no trabalho ou na mesquita. Até o ano passado, a face
mais conhecida da cidade estava
ausente do panorama -a Stari
Most, ou ponte velha, que só foi
reconstruída em 2004. Era a imagem mais expressiva do ódio entre os muçulmanos e os sérvios,
quando estes últimos a bombardearam, em 1993.
A pessoa que mais conhece a
ponte é Emir Baliae, o mais famoso dos mergulhadores da competição anual de saltos ornamentais
que a cidade organiza. "Deixemos
que o tempo reconcilie ambas as
partes. Se a ponte foi reerguida, a
cidade também o será."
Como a Stari Most, muitos outros monumentos e edifícios foram reconstruídos, sobretudo na
capital. Outras edificações ainda
esperam as mãos de um arquiteto
benévolo e os investimentos necessários à reconstrução.
Os trâmites para a reconstrução
da Biblioteca Nacional de Sarajevo, que, no centenário de sua
construção, em 1992, foi queimada com mais de 2 milhões de documentos em seu interior, também foram iniciados, ainda que,
por enquanto, o edifício continue
tão arruinado quanto estava logo
após a conflagração. A espera
promete ser tão longa quanto o
pós-guerra.
Tradução de Paulo Migliacci
Texto Anterior: Mão de ferro: Putin ameaça fechar gasoduto que alimenta aquecedores da Ucrânia Próximo Texto: Saiba mais: Conflito começou após a crise do pacto federativo Índice
|