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Análise
As relações Brasil-EUA e os novos desafios no Haiti
MONICA HIRST
ESPECIAL PARA A FOLHA
Historicamente, são infrequentes os momentos em que a
presença militar do Brasil e dos
EUA tenha coincidido num
mesmo teatro de operações. Os
dois precedentes que vêm à
memória -Itália, em 1944, e
Santo Domingo [República Dominicana], em 1965-revelam
situações marcadamente diferentes da que se observa no
Haiti nos dias que correm.
Em ambas ocasiões, as Forças Armadas brasileiras se somaram a ações comandadas
militarmente pelos americanos, em nome de ideais que, na
época, justificavam uma opção
pelo alinhamento automático a
Washington. Definitivamente,
não é isso que se constata no caso haitiano.
De fato, o distanciamento
militar brasileiro-americano
teve lugar bem antes do fim da
Guerra Fria, mais precisamente em 1977, quando -sob as
premissas do pragmatismo responsável- o governo brasileiro
denunciou o Acordo Militar de
1952. Desde então, o elo bilateral também esfriou em termos
políticos e econômicos, e, se
bem houve momentos de reaproximação, nunca mais foi observado um período prolongado de convergência bilateral.
Reaproximação
Contra as expectativas iniciais, as relações entre o Brasil
de Lula e os EUA de George W.
Bush ganharam mais substância, com implicações positivas
para os dois lados. Afirmava-se
em Brasília que o relacionamento com Washington passava por etapa de amadurecimento, selado com a inauguração de
um diálogo estratégico.
No topo da lista de temas positivos, destacava-se a atuação
brasileira em operações de paz,
muito especialmente as responsabilidades assumidas com
o comando militar do Haiti, a
partir de 2004.
Do ponto de vista da política
externa brasileira, foi sempre
importante que este reconhecimento não fora confundido
com uma forma de "terceirização" funcional aos EUA. Argumentou-se justamente que a
presença no Haiti visava evitar
experiências de ocupação já sofridas por este país reiteradamente no passado.
No empenho por esta diferenciação, procurou-se reforçar na Minustah [a força de paz
da ONU] uma coordenação
com outros países latino-americanos -especialmente a Argentina e o Chile- e somar à
presença militar um programa
de cooperação para o desenvolvimento com ênfase em áreas
como agricultura, saneamento
e serviços básicos.
Os riscos da duplicidade
As imediatas consequências
internacionais do terremoto
que assolou Porto Príncipe e
outras cidades haitianas fazem
com que, inevitavelmente, esse
cenário, relativamente harmonioso, seja coisa do passado.
A unilateralidade dos EUA,
colocando a sua capacidade de
resposta militar à frente de sua
vontade de coordenação política com a comunidade internacional, num contexto de total
desamparo haitiano, foi um
contundente sinal.
Para o Brasil, país que comandava militarmente a missão da ONU, isso passou a representar um desafio adicional
a uma tarefa que, no intervalo
de um minuto, adquiriu proporções desconhecidas.
Conhecer as razões estratégicas que explicam a reação
americana -nas quais se somam a concepção do Caribe como seu "mare nostrum", o temor de um êxodo migratório
haitiano e o princípio da responsabilidade de proteger em
contextos de desastres humanitários- não alivia o desafio
em questão.
A convivência no Haiti de
duas dinâmicas de ocupação
corresponde a um convite à
anarquia e/ou a sistemáticas
sobreposições de autoridade:
uma que obedece a uma única
cadeia de comando e outra que
depende de um amálgama multinacional. O governo haitiano
encontra-se duramente golpeado pelas perdas humanas e
materiais sofridas por seu país.
A total dependência da ajuda
externa num contexto de dualidade poderá enfraquecê-lo ainda mais.
A solução adotada foi a de divisão de tarefas; os militares
americanos responsáveis pela
logística da ajuda humanitária
e as forças da Minustah -sob o
comando brasileiro- pela segurança. Esta saída administra,
mas não resolve uma realidade
em que o que está em jogo é a
demarcação política da gestão a
cargo da reconstrução haitiana.
Por mais que o Brasil dobre o
seu contingente no Haiti, não
se superará a lógica imposta pela assimetria de forças. O território a ser valorizado, portanto,
só poderá ser o da política.
Um desafio entre tantos
A estreita coordenação brasileira com a ONU, a articulação
com grandes doadores como
França, Espanha e Canadá e
União Europeia, e o trabalho
em equipe com outros países
latino-americanos e organismos regionais -especialmente
a OEA, Unasul, Grupo do Rio e
Caricom- constituem o tecido
desse território.
O primeiro mas não definitivo teste foi a reunião de Montréal [no Canadá, no último dia
25]. Com virtude e fortuna, a
voz deste coletivo deverá domar Washington, para que
aceite somar-se ao mutirão em
formação para a reconstrução
do Haiti. Mas, como se sabe, a
disciplina interpares constitui
para os EUA uma opção raramente valorizada.
Parece quase supérfluo concluir que o tema Haiti merecerá
daqui para frente outro tipo de
atenção e preocupação nas relações Brasil-EUA.
MONICA HIRST é professora de política internacional na Universidade Torcuato di Tella, em
Buenos Aires, na Argentina.
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