São Paulo, quarta, 1 de abril de 1998

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ESTADO X RELIGIÃO
Projeto pode mudar também divisão do poder político no país, distribuído entre as religiões majoritárias
Casamento civil vira polêmica no Líbano

PAULO DANIEL FARAH
da Redação

A aprovação do projeto de lei que estabelece o casamento civil facultativo no Líbano por mais de dois terços do conselho de ministros está provocando reações de indignação no país.
Se entrar em vigor, a lei vai mudar uma tradição, a do casamento exclusivamente religioso, que até então ninguém ousou questionar. Junto com o projeto, o governo tenta mudar também o sistema de divisão do poder político no país.
Para se casar com muçulmanas, os cristãos devem se converter ao islamismo. Quando isso acontece, são quase sempre rejeitados pela família e deserdados.
Por outro lado, os muçulmanos podem se casar com cristãs sem a necessidade de conversão ao cristianismo. Nesse caso, as mulheres podem manter sua religião. Mesmo assim, a educação religiosa dos filhos normalmente provoca atrito entre o casal e os familiares.
A sociedade libanesa está dividida em dois grupos antagônicos. Mostraram-se receptivos ao projeto os presidentes da República e do Parlamento, muitos ministros, partidos laicos, organizações sindicais, intelectuais e grupos universitários. Há milhares de jovens que estiveram exilados na Europa durante a guerra civil e que são pressionados pelos pais para se casar com pessoas do mesmo credo.
Os partidos Socialista Progressista, Comunista e Sírio Nacional Social declararam que "o projeto é uma corajosa decisão nacional, consolida a coesão dos cidadãos e constitui uma fonte de enriquecimento cultural."
Os oposicionistas, chefiados pelo premiê Rafik Hariri, líderes muçulmanos e cristãos, alguns ministros, deputados e líderes políticos condenaram o projeto.
O Líbano reconhece 18 comunidades religiosas. Além dos que desejam se casar com pessoas de outras religiões, membros de outros grupos religiosos que vivem no país serão beneficiados.
Crise política
Para apoiar o casamento civil, o presidente do Parlamento, Nabih Berri, impôs ao presidente Elias Hrawi a vinculação do projeto à abolição do confessionalismo político (repartição dos três principais cargos políticos entre membros das religiões majoritárias).
O acordo de Taifa, firmado em 1989, no final da guerra civil, lançou as bases para o governo multiconfessional no Líbano, no qual o presidente cedeu poderes para o primeiro-ministro. O acordo prevê que o presidente deve ser um cristão maronita, o primeiro-ministro, um muçulmano sunita e o presidente do Parlamento, um muçulmano xiita.
O presidente da República designou Berri para a chefia de uma comissão nacional para abolir o confessionalismo político.
A tensão que caracteriza as relações entre os três pólos do poder, ou pelo menos entre dois deles, o presidente da República e o primeiro-ministro, aumentou consideravelmente.
Muitos questionam o verdadeiro objetivo político do projeto. Às vésperas das eleições, daqui a sete meses, o presidente é acusado de querer prorrogar seu mandato e de arquitetar uma jogada política para enfraquecer a influência de Hariri, contrário ao projeto, e forçá-lo a renunciar.
Reações
Milhares de muçulmanos viajaram do norte do Líbano para a capital, Beirute, para protestar contra a proposta do presidente.
O xeque Mohammad Rachid Qabbani, mufti da República e chefe espiritual da comunidade sunita, disse que todo muçulmano que se casar no civil estará cometendo apostasia (mudança de religião, proibida no islamismo).
"O casamento civil e o laicismo são dois micróbios que estão tentando semear no Líbano para que contaminem, em seguida, o mundo árabe. Nós somos os protetores da religião e dos árabes em geral."
O patriarca maronita, cardeal Nasrallah Sfeir, afirmou no sermão de domingo que o casamento civil contraria os ensinamentos da igreja e que aqueles que optarem por ele estarão negando os sacramentos. Em relação à abolição do confessionalismo político, afirmou que "é preciso removê-lo de nossos corações antes de sua abolição definitiva."
Muitos muçulmanos vêem o projeto como um primeiro passo para a eliminação dos tribunais religiosos. Os xeques Qabbani e Chamsdin publicaram um comunicado conjunto condenando o projeto de lei. Entretanto, pediram aos muçulmanos que evitem manifestações de rua, que poderiam gerar conflitos mais sérios.
Os discursos nas mesquitas adquiriram um tom de revolta. Os xeques consideram o projeto uma tentativa de dissolver as comunidades religiosas e de formar uma sociedade laica. Alguns xeques pedem a destituição do presidente.
O Hizbollah (Partido de Deus) condenou o projeto e disse que sua implementação é contra os interesses religiosos. O grupo extremista islâmico, apoiado pelo Irã, combate tropas israelenses que ocupam o sul do Líbano.
A discussão representa um fator de desestabilização interna num momento em que políticos procuram resolver a questão do sul do país.
"A religião pertence a Deus, e a pátria aos cidadãos. Queremos uma pátria onde a liberdade de crença seja absoluta. Estamos determinados a destruir o sectarismo em nossos corações e nos documentos ", disse o presidente.



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