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ENTREVISTA / EVO MORALES
Boliviano desconfia das multinacionais e vê entendimento difícil com Petrobras
"Lula deveria pensar na Bolívia, não só no Brasil"
Dado Galdieri - 08.jun.2007/France Presse
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Morales segura vicunha em visita à aldeia de Ulla Ulla; ele diz que, se país "continuar avançando", em 15 anos será como a Suíça
MERCEDES IBAIBARRIAGA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LA PAZ
O presidente da Bolívia, Evo Morales, desconfia das multinacionais porque acha que elas não têm interesse em investir no país e considera que o "entendimento é difícil" com essas empresas, "especialmente a Petrobras". Avalia que as relações com o Brasil seriam mais difíceis se não fosse sua amizade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas acha que Lula "deveria pensar também
na Bolívia, e não só no Brasil". Foi o que disse em entrevista no Palácio Quemado, em La Paz, na última segunda-feira: "Os brasileiros, e Lula, precisam compreender que o gás natural pertence aos
bolivianos e que nos cabia corrigir um mau negócio anterior".
Na entrevista, Morales avaliou seus 18 meses de governo
com uma mistura de otimismo
e preocupação. Os governadores da parte leste do país, mais
próspera, se opõem ao seu projeto-símbolo: a declaração de
um Estado plurinacional, com
autonomia para os povos indígenas, como parte da nova
Constituição, em elaboração
pela Assembléia Constituinte
-que acaba de adiar outra vez a
entrega do projeto de Carta.
Alguns governadores apelaram às Forças Armadas e à resistência civil em defesa de outro modelo de autonomia, a provincial. Morales garante
que as duas são compatíveis.
Ele reconheceu que o país sofrerá escassez interna de gás
natural e precisará importá-lo
da Venezuela. Terminou com a
garantia de que um dia a Bolívia
se igualará à Suíça. Abaixo, trechos da entrevista.
PERGUNTA - O presidente Lula criticou sua agressividade verbal em relação à Petrobras e ao comércio de
gás natural com seu país. As relações são tensas?
EVO MORALES - Não, sempre nos
comunicamos. Bem... talvez
Lula esteja chateado, mas não
fui agressivo com ele, nem com
a Petrobras e ainda menos com
o Brasil. Se tivéssemos sido
agressivos, isso significaria bloquear a saída de gás natural para o Brasil, e isso é algo que
nunca faremos. Garantimos
gás ao Brasil e cumpriremos os
novos contratos.
Mas os brasileiros, e Lula,
precisam compreender que o
gás natural pertence ao Estado
bolivianos e que nos cabia corrigir um mau negócio anterior.
Lula deveria pensar também na
Bolívia, e não só no Brasil. Não
confiscamos os bens da Petrobras, o que significa que não fomos agressivos. Mas estamos
procurando uma maneira de
trabalhar juntos, na indústria
petroquímica.
PERGUNTA - E em que ponto está o
diálogo a esse respeito?
EVO MORALES - Veja, tenho muito respeito e admiração pelo
presidente do Brasil. Lula intercede muitas vezes em nossa
defesa, da Bolívia e da América
Latina. Reconhecemos a liderança regional do Brasil.
Nas negociações com as empresas, especialmente a Petrobras, um entendimento é difícil, sinceramente. Se as negociações entre Bolívia e Petrobras avançam é porque as duas
partes precisam disso. Quanto
a esse tema, sempre serão importantes as decisões políticas
de presidente a presidente, de
governo a governo. Se não existisse a vantagem que nossa
amizade com o presidente Lula
representa, talvez houvesse um
distanciamento bem maior no
relacionamento com o Brasil.
Mas queremos fortalecê-lo.
PERGUNTA - A estatal petroleira
YFPB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos), responsável por
implementar a nova política de
energia, não está conseguindo decolar.
MORALES - O maior problema
que temos é recuperar a YPFB.
Não dispomos de especialistas
bolivianos patriotas dispostos a
trabalhar pelos salários que o
governo paga. Apostei com
muito carinho na política de
austeridade, reduzi meu salário
de 40 mil para 15 mil bolívares
[cerca de US$ 1.800], e a nova
lei dispõe que nenhum funcionário público ganhe mais do
que o presidente. Mas os especialistas querem cobrar o mesmo que pagam as multinacionais, salários astronômicos, e
isso não é possível.
PERGUNTA - Mas também existe
um problema de investimento. O
grupo hispano-argentino Repsol
YPF e a brasileira Petrobras ainda
não apresentaram seus planos de
investimentos.
MORALES - Precisam fazê-lo, estamos esperando seus números. Espero que esse assunto se
acelere porque elas têm o dever
de apresentar seus planos de
investimento, nos termos dos
novos contratos. Eu acreditava
que tivesse havido grande investimento sob os governos
neoliberais anteriores e sob a
lei de capitalização [que fez da
estatal YPFB uma empresa de
propriedade mista], mas não
foi isso que aconteceu.
De 1996 para cá, quase não
houve investimento em prospecção, e muito menos para
elevar o volume de produção no
mercado interno. As empresas
petroleiras extraíam gás de
áreas já prospectadas pela antiga estatal e descartaram qualquer esforço de descobrir novos campos, prospectar. Os investimentos da Petrobras e da
Repsol foram muito baixos e só
para exportar ao Brasil ou à Argentina, ou seja, para tirar o gás
de nossas fronteiras. E, agora,
por que não existe investimento? Que os neoliberais não o venham perguntar a mim.
PERGUNTA - O senhor confia nas
multinacionais petroleiras?
MORALES - A verdade é que confio mais em estatais do que em
empresas multinacionais privadas. Desconfio muito das
multinacionais porque não vejo nelas vontade política nem
interesse de investir muito.
Nossa política agora é, primeiro, que a Bolívia vai investir recursos próprios para prospectar, extrair e comercializar o
gás natural, sempre que possível. Nos casos em que isso não
seja viável, nossa preferência é
a associação com estatais.
A terceira opção são as multinacionais. Nós oferecemos garantias e segurança jurídica. No
passado, as empresas firmaram
contratos que o Congresso não
ratificou; algumas deixaram de
cumpri-los; não houve investimento; praticaram o contrabando. Por isso, que moral têm
para falar de segurança jurídica? A segurança é a primeira
coisa que vamos garantir na
Bolívia, mas esperamos que as
empresas retribuam.
PERGUNTA - Analistas acreditam
que a Bolívia possa sofrer desabastecimento interno de gás.
MORALES - Estamos cientes e
adotando medidas preventivas.
Necessitamos, para os três meses de inverno, de pelo menos
3.600 toneladas de gás natural
e já prevíamos adquiri-lo da Venezuela por precaução. Mas estou animado porque assinei um
decreto de luta contra o contrabando de gás, indiquei um novo
presidente para a Alfândega e já
não temos gente na fila para
comprar um botijão.
PERGUNTA - A Bolívia tem capacidade de suprir a demanda argentina
e a brasileira?
MORALES - Sim. No momento,
exportamos à Argentina cerca
de 5,7 milhões de metros cúbicos ao dia [o contrato entre a
YPFB e a Enasa prevê que as
exportações diárias sejam de
no mínimo 4,6 milhões e no
máximo 7,7 milhões de metros
cúbicos de gás natural ao dia] e
estamos cumprindo perfeitamente o contrato. No caso do
Brasil, nosso volume diário de
exportação é de 25 milhões de
metros cúbicos ao dia e nos pediram que o elevássemos a 27
milhões. Sempre declaramos
que atender à demanda máxima [30 milhões de metros cúbicos ao dia] era difícil. Mas um
aumento na cota é possível.
PERGUNTA - A ONU denunciou um
aumento "dramático" (de cerca de
8%) no cultivo de coca. Já aos EUA,
sua política de "revalorização" da
folha de coca causa "inquietação".
MORALES - Dois mil hectares a
mais de coca são um aumento
dramático? Querem que na Bolívia haja forças paramilitares,
fumigações, violações dos direitos humanos? Não consigo
ver por que a ONU e os Estados
Unidos não compreendem que,
do ponto de vista de luta coordenada contra o narcotráfico, o
melhor exemplo do mundo é a
Bolívia. Estamos instaurando o
controle social, a redução voluntária coordenada com o
Exército, a limitação do cultivo
de coca por família; não existe
erradicação forçada nem violação dos direitos humanos. Desenvolvemos um novo modelo
de luta contra o narcotráfico.
PERGUNTA - Por que o senhor mantém seu posto como presidente das
federações de produtores de coca do
Chapare? Não seria incompatível
com o cargo de chefe de Estado?
MORALES - O panorama mudou
na Bolívia. Quando a origem de
alguém são as lutas sociais, é
possível ser presidente e dirigente sindical. Em outras épocas, isso não teria acontecido.
PERGUNTA - O senhor visitou Fidel
Castro há alguns dias. Como foi o
encontro?
MORALES - Eu estava ansioso,
desesperado por entrar. Os colaboradores dele me pediram
para não abraçá-lo com força
porque ainda está frágil. Quando conversamos e o ouvi falar
de seus princípios de solidariedade, de seus preocupações
com o ambiente e a energia, de
suas críticas ao álcool e aos biocombustíveis, tive vontade de
chorar, eu me emocionei. Eu
lhe disse: "Comandante, o senhor não precisa convencer a
Chávez, a mim e a outros líderes. Basta nos dar instruções".
Na despedida, trocamos um
forte abraço, ninguém impediu.
Disse-me: "Evo, cuide de sua
segurança, e não se separe do
povo".
PERGUNTA - O senhor está distribuindo aos prefeitos de cidades bolivianas cheques em valores de milhares de dólares, assinados pela
Embaixada da Venezuela. Isso é ingerência de Hugo Chávez nos assuntos bolivianos?
MORALES - Não. Chávez jamais
tentou me influenciar. Uma
afirmação como essa deriva da
discriminação -insinuam que
Evo é incapaz e por isso Chávez
o ajuda a governar? Quanto aos
cheques, todos os países o fazem por meio de ONGs. Os Estados Unidos vêm sem respeitar governadores, prefeitos ou
o presidente e distribuem dinheiro. Mas, no caso da ajuda
de Chávez, coordenamos com
os prefeitos os projetos que
lhes interessam e assim não
existe malversação de fundos.
PERGUNTA - A Bolívia vai se aproximar do socialismo do século 21 de
que fala Chávez?
MORALES - Cada país tem suas
particularidades. Na Bolívia, os
povos indígenas são socialistas
por princípio e natureza. Em
certas comunidades não existe
propriedade privada. Socialismo é viver com certa igualdade.
Que alguns não morram de fome enquanto outros enriquecem roubando as riquezas do
Estado. Existem algumas famílias na Bolívia que só querem
esta terra para saqueá-la, este
povo para explorá-lo e este Estado para espoliá-lo. O que me
interessa é que exista paz com
justiça social. Se em Cuba dão a
isso o nome de comunismo,
bom; se na Venezuela é socialismo, bom. Eu usaria o termo
humanismo.
PERGUNTA - Mas como socialismo
é entendido na Bolívia?
MORALES - No sentido de uma
forma de reparar as desigualdades geradas por 500 anos de colonialismo. Aqui, apostamos
em pôr fim à exclusão e à pobreza. O capitalismo é o pior
inimigo do ser humano.
PERGUNTA - O senhor tem ambições de permanecer no poder para
garantir sua revolução?
MORALES - Pretendo me aposentar na hora certa. Assim,
não serei repudiado como outros presidentes. Mas isso não
depende de mim. A reeleição
depende do povo.
PERGUNTA - Mas o senhor pretende garantir sua reeleição e adotar
um sistema de Câmara única para o
Legislativo, na nova Constituição?
MORALES - A Câmara Alta e a
Câmara Baixa nos levam ao
atraso e ao conflito. Na Câmara
dos Deputados [onde o governo
tem maioria], as iniciativas são
aprovadas, mas, no Senado [onde o MAS, de Morales, é minoritário], elas são bloqueadas, o
que prejudica o país. O sistema
unicameral está em debate. E a
reeleição do presidente é uma
proposta das forças sociais.
Não só a ratificação mas também a revogação de mandato.
PERGUNTA - Que temas não admitem recuo, na nova Constituição?
MORALES - Medidas que proíbam firmemente a privatização
dos recursos naturais, garantam a luta contra a corrupção,
assegurem o fim da discriminação. Também é preciso garantir
a autonomia dos povos indígenas e dos departamentos e declarar o Estado plurinacional e
comunitário.
PERGUNTA - O termo plurinacional
não gera divisões?
MORALES - Pelo contrário. O
novo Estado plurinacional inclui todos. Essa é a melhor forma de nos integrarmos. O termo plurinacional reconhece todas as nações da Bolívia e não
significa autogoverno para cada comunidade, ayllu ou tenta
[organizações indígenas pré-coloniais]
Eu questiono o primeiro artigo da Constituição, que fala em
Estado multiétnico. Que é isso,
etnia? Somos nações. Dizer a
um quechua que ele representa
uma etnia seria derrogatório.
No passado, imigrantes da
Croácia, da Alemanha, instalaram-se na parte oeste do país.
Não são etnias, são nações. E
agora parte da Bolívia.
PERGUNTA - Os quatro departamentos da "meia-lua", no leste do
país, declararam guerra à autonomia dos povos indígenas.
MORALES - Não faz sentido
porque vemos duas classes de
autonomia, e são complementares. Uma é a autonomia ou
autodeterminação defendida
há séculos pelos movimentos
indígenas, que pedem o reconhecimento de seu modo de vida e de seus direitos como povos. E, há cem anos, surgiu a demanda pela autonomia departamental. O governo garante as
duas agendas. Vamos conceder
certos poderes autônomos aos
departamentos, mas estes não
podem tratar como escravos os
povos indígenas que lá vivem.
O que noto é que algumas famílias do leste afirmam conduzir a autonomia como reivindicação regional, mas por trás
dessa demanda existe discriminação e racismo. Se as autonomias departamentais não estiverem orientadas à divisão, separação e independência, estão
garantidas desde já.
Mas algumas pessoas querem trasladar o centralismo nacional ao nível dos departamentos. É essa a desconfiança
que sentem os irmãos indígenas. Com a criação de duas autonomias, departamentais e indígenas, temos de pôr fim a essa
divisão entre os collas [os indígenas do oeste do país] e os
cambas [bolivianos do leste].
PERGUNTA - A Assembléia Constituinte é um foco de divisão?
MORALES - Não. Muita gente diz
que a Bolívia é inviável. Falso. A
Bolívia é viável, não está ancorada ao subdesenvolvimento.
Contamos com bases para a esperança, graças aos nossos recursos naturais. Se continuarmos avançando como agora, dentro de 15 anos poderemos
ser iguais à Suíça.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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