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Jornalista vê Putin como violador da democracia
Em "Um Diário Russo", Politkovskaya nota povo apático e presidente tirano
Assassinada em Moscou no ano passado, jornalista que era feroz crítica do Kremlin descreve uma Rússia em que a oposição não é sentida
FÁBIO CHIOSSI
DA REDAÇÃO
Em um discurso em Bratislava (Eslováquia), no dia 23 de fevereiro de 2005, o presidente
da Rússia, Vladimir Putin, fala
de uma "democracia tradicional" russa e a explica: "Os princípios fundamentais da democracia, as instituições da democracia devem ser adaptadas à
realidade na Rússia de hoje, às
nossas tradições e à nossa história. E faremos isso sozinhos".
"Um Diário Russo" (Rocco,
R$ 43), da jornalista Anna Politkovskaya, que foi assassinada
no prédio onde morava, em
Moscou, em outubro do ano
passado, pode ser lido como um
retrato dessa "democracia".
Essa redefinição do conceito
por Putin, que em princípio o
torna bastante maleável, reflete a visão que ela tem do governo russo. Um governo que, a
seu ver, ergue-se sobre a destruição da democracia. Assim, a
"democracia tradicional" de
Putin, ver-se-á, é, para Politkovskaya, a não-democracia.
As anotações da jornalista,
que foi feroz crítica do Kremlin
em matérias publicadas no jornal "Novaia Gazeta", onde trabalhava, começam na campanha que em 2004 reelegeria
Putin à Presidência da Rússia e
se encerram em agosto de
2005, pintando o presidente
como o artífice da destruição
das entidades e relações que
constituem o que se poderia
considerar uma verdadeira democracia.
Segundo a visão de Politkovskaya, Putin garantiu a reinstalação, na Rússia, de um regime
praticamente de partido único,
como o da URSS -embora não
ideologizado-, e repressivo,
como o da URSS de Stálin.
Para tanto, o ex-diretor de
assuntos externos da KGB que
foi escolhido por Boris Ieltsin
(1991-99) para o substituir na
chefia do governo russo galgou-se não só em diversos tipos de
fraude eleitoral e em compra de
votos, viabilizadas pela atuação
de antigos funcionários da máquina do Estado comunista que
se aninhavam nas agências do
governo, mas por uma oposição
cujo discurso não chegou ao
povo mais pobre, seduzido pelo
nacionalismo do presidente e
do seu partido, o PRU.
Ora conduzindo, ora se aproveitando desse processo, sempre a figura do presidente Vladimir Putin, com vistas a se
manter na Presidência e que
para tanto não hesita em usar
sua mão de ferro, em negar violações aos direitos humanos
cometidas sob seu governo
nem em cooptar potenciais adversários políticos ou fazer vistas grossas à sua tortura. Isso
sem mencionar a manipulação
do Poder Judiciário, presente
em episódios relatados quase
que no livro todo.
Apatia
Esse Putin autoritário retratado pela jornalista desperta no
leitor uma dúvida fundamental: uma vez afastada a hipótese, simplista e ingênua, de que
ela fala de um homem que age
por pura perversidade, o que
motiva Putin?
Há esboços de uma resposta
que se pode pescar em seu diário. Uma delas é um nacionalismo no qual Putin acredita. Esse
nacionalismo que está nas palavras de Bratislava e que, alimentando políticas de governo,
teriam-no transformado no tirano a que se refere Politkovskaya. Putin seria então um tirano não só porque quer satisfazer interesses pessoais mas
também por achar que o que
faz é melhor para o povo, é melhor para a Rússia.
A jornalista não esconde
também sua frustração com o
que considera uma não-participação do povo russo no processo político do país. Apatia essa
que acaba, por exemplo, permitindo a Putin a construção da
maioria na Duma que o ajudará
a governar -ou, como diz a autora, que o servirá-, bem como
a construção de uma candidatura sem adversários: "Nossos
cidadãos [...] querem muito ter
uma vida melhor, mas não querem ter de lutar por ela. Eles esperam que tudo lhes venha de
cima" -é uma das reflexões
anotadas no dia 31 de dezembro de 2003.
E a essa acomodação acrescenta-se uma campanha das
"autoridades", que "todos os
dias tentam convencer o povo
russo de que a sociedade civil e
a oposição são financiadas pela
CIA, pelos ingleses, por Israel e
pelos serviços de inteligência
marcianos, além, é claro, da teia
mundial da Al Qaeda".
O apelo a um nacionalismo
que cala fundo no povo, conduzindo-o em direção a um imobilismo, ajuda muito na manutenção do atual estado de coisas
na Rússia, é o que se conclui.
E há sempre o medo da repressão dos agentes de segurança do Estado, que, dá a jornalista a entender, agem a seu
bel-prazer na repressão às poucas contestações ao regime.
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