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ARTIGO
Quando era obrigatório parecer feliz
MARY DEL PRIORE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Toda a sociedade extrai a matéria de seus sonhos de algum
lugar. Durante anos, este lugar
foi a Inglaterra, encarnada numa loura de olhar bovino. Lá,
em junho de 1981, Lady Di se
casava num conto de fadas. A
cerimônia foi assistida por 1
milhão de espectadores. Em
1995, como qualquer plebéia,
ela confidenciava a espectadores atônitos que seu casamento
ia mal. Um ano depois se divorciava e, em 1997, numa noite
em Paris, apagava-se. Morreu
aos 36 anos, dos quais dezesseis
foram vividos na telinha.
Para além do casamento real,
a década de 80 assistiu a mudanças importantes. O comércio viveu um boom nunca visto.
Só se falava em globalização financeira, enquanto McDonalds e outras marcas se difundiam planeta afora. Mas a mundialização foi também um "longe mais perto". A CNN foi criada em 1980. No campo dos
comportamentos femininos, os
sonhos igualmente se amplificavam: ganhar dinheiro, tornar-se uma estrela, ser bela e
feliz eternamente. Mas sempre
sem esforço. A agenda das mulheres cresceu: elas tinham que
se mostrar plenas, bastar-se, tinham que "existir", enfim. Esta
felicidade sob medida se encarnava na publicidade e na mídia.
Nas sociedades industrializadas, ser feliz se tornou o "único
bem supremo", diria Aristóteles. Uma tal sede de viver se exprimia num credo: "se dar prazer". A ditadura da felicidade a
qualquer preço estigmatizava
as infelizes.
Espírito do tempo
A princesa embarcou no seu
tempo. Juntou a receita de ser
feliz com a potência mobilizadora da telinha. Ela mais queria
se dar a ver do que a conhecer.
Por meio da televisão, ela dividia com todo o mundo as suas
emoções. Mas por trás do olhar
bovino ela também entendeu
que ninguém nascia sedutora.
Não bastava ter um corpo e colocá-lo em ação. Era preciso
transformá-lo num catálogo de
signos. Ela usou todos os recursos -roupas, maquilagem, festas- para promover a fotogenia de sua sedução.
Sua vida íntima se transformou num fundo de comércio:
fotos na ginástica, gravações
com amantes, intimidade devassada. Mas também se erigiu
em campeã de filantropia audiovisual, lutando contra a Aids
e a lepra ou contra as minas nos
campos de Angola e da Bósnia.
A adúltera dava lugar à santa.
Num jogo de montagens narcíssicas, ela celebrava a tal felicidade obrigatória.
Mas os anos 80 embutiam
um outro sucesso: o da depressão. Mais e mais esse sofrimento se tornava comum. E ela
mergulhou no problema. Tornou-se bulímica. Tentou o suicídio. Enquanto isso, deixava a
mídia resolver seus problemas
de alcova. Famintos, os espectadores colhiam cada migalha
deste misto de sonho e interdito. O fim de Diana, debaixo da
ponte d'Alma, lhe permitiu um
último recurso televisivo: uma
missa universal transmitida
por quarenta canais. Outros
cultos se sucederam: peregrinação, flores no palácio de Kensington e, por que não, a fundação do "Diana Land". Detalhe:
só 10% dos rendimentos desse
mausoléu-museu se dirigem a
obras de caridade.
Na era da sociedade de massas, a princesa de massas virou
um produto no mercado de mitos. Mistura de Sissi traída, de
Marilyn suicida e de James
Dean, morto ao volante, Diana
preencheu o papel de uma mulher presa nas armadilhas do
seu tempo. Como só era boa em
piano e esportes e não gostava
de estudar, teve poucas chances de olhar com recuo para si
mesma. Preferiu ser sonho a
ser verdade. Na mesma época,
morreu Teresa de Calcutá.
Uma outra mulher do mesmo
tempo, só que acima das religiões midiáticas. Alguém se
lembra?
MARY DEL PRIORE é historiadora e autora de
"O Príncipe Maldito - Uma História de Traição e
Loucura na Família Imperial", editora Objetiva,
entre outros
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