São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2005

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LINGUAGEM

Estudos científicos apontam que praguejar requer esforço comparável aos percursos intelectuais e emocionais

Palavrão une brutalidade e astúcia pensada

NATALIE ANGIER
DO "NEW YORK TIMES"

Irritado com o que considera praticamente uma pandemia de vulgaridade verbal oriunda de fontes tão diversas quanto o radialista Howard Stern ou Bono, da banda U2, o Senado dos EUA decidiu debater um projeto de lei que elevaria severamente a pena por proferir obscenidades em programas de rádio ou TV.
Ao elevar as multas aplicáveis a quem desrespeitar as normas em cerca de 1.500%, para cerca de US$ 500 mil por delito, e ao ameaçar revogar as licenças dos delinqüentes contumazes, o Senado quer trazer de volta o tom mais gentil do passado, quando o vocabulário chulo raramente era ouvido e não havia sujeitos famosos pela boca suja no ar o dia inteiro.
No entanto pesquisadores que estudam a evolução da linguagem e os fatores psicológicos que conduzem ao uso de palavrões dizem que não têm idéia de que modelo místico de gentileza lingüística os críticos dos palavrões têm em mente. Praguejar, dizem, é um fator humano universal. Cada idioma, dialeto ou variedade regional já estudado, morto ou vivo, tem sua cota de palavras proibidas.
Segundo John McWhorter, pesquisador de lingüística no Manhattan Institute e autor de "The Power of Babel" (o poder de Babel), os gigantes da literatura sempre construíram sua arte com base nessa estrutura.
O título "Much Ado about Nothing" (muito barulho por nada) da peça de William Shakespeare, diz McWhorter, é um trocadilho com "much ado about an O thing", com o "O" servindo de referência à genitália feminina.
E até mesmo na Bíblia as passagens sacanas são freqüentes, como o caso dos homens mencionados em II, Reis, 18:27, os quais, na tradução comparativamente amena adotada na Inglaterra do século 16, a Bíblia do Rei James, "comem seu próprio esterco e bebem sua própria urina".

5.000 anos atrás
Na verdade, diz Guy Deutscher, lingüista da Universidade de Leiden, na Holanda, e autor de "The Unfolding of Language: An Evolutionary Tour of Mankind's Greatest Invention" (o desenrolar da linguagem: visita evolutiva à maior invenção humana), os primeiros registros escritos, datados de cerca de 5.000 anos atrás, incluem boa cota de descrições nada gentis da forma do homem e de suas pitorescas funções.
E o registro escrito é um simples reflexo de uma tradição oral que Deutscher e muitos outros psicólogos e lingüistas evolutivos suspeitam remonte pelo menos ao surgimento da laringe humana, se não a passado mais remoto.
Alguns pesquisadores se deixam impressionar a tal ponto pela profundidade e poder da linguagem rude que a empregam como ponto de entrada para a arquitetura do cérebro, como meio de investigar os confusos elos entre as regiões mais novas, mais "altas", do cérebro, que cuidam do intelecto, da razão e do planejamento, e as mais antigas, mais "bestiais", regiões neurológicas que dão origem às nossas emoções.
Os pesquisadores apontam que praguejar é muitas vezes um amálgama de sentimento bruto, espontâneo, e astúcia dirigida, venenosa. Quando uma pessoa pragueja contra outra, ela raramente despeja obscenidades e insultos aleatórios, mas em vez disso avalia o objeto de sua ira e ajusta o conteúdo de seu surto "incontrolável" levando isso em conta.
Porque praguejar requer contribuição comparável aos percursos intelectuais e emocionais do cérebro e acesso deliberado ao fervor, cientistas dizem que o estudo do circuito neurológico usado para essa atividade permite que façam novas descobertas sobre como os diferentes domínios do cérebro se comunicam e tudo isso em nome de uma resposta venenosa.

Reação
Outros estudiosos examinaram a filosofia do ato de praguejar, a maneira pela qual nossos sentidos e reflexos reagem ao som e visão de uma palavra obscena. Eles determinaram que ouvir palavras rudes deixa as pessoas literalmente eriçadas.
Quando cabos eletrodérmicos são instalados nos braços e nas pontas dos dedos de participantes de estudos para determinar os padrões de sua condutividade cutânea, e algumas palavras obscenas são pronunciadas de maneira clara e firme, os participantes demonstram sinais de excitação instantânea. Os padrões de condutividade cutânea atingem um pico, os pêlos de seus braços se arrepiam, o pulso se acelera e sua respiração se torna opressa.
Pesquisadores também constataram que as obscenidades às vezes penetram por sob a pele arrepiada e se recusam a ser desalojadas. Em um estudo, cientistas começaram com o teste de Stroop, sob o qual os participantes lêem uma série de palavras escritas com cores diferentes e são convidados a reagir pronunciando os nomes das cores e não as palavras em si. Se os participantes vêem a palavra "cadeira" escrita em amarelo, eles têm de dizer "amarelo".
A seguir, os pesquisadores inseriram palavras obscenas e vulgares na seqüência padronizada de teste. Acompanhando as respostas imediatas e posteriores dos participantes, os pesquisadores constataram que, primeiro, as pessoas precisavam de significativamente mais tempo para pronunciar as cores de palavras chulas do que era o caso quanto a termos neutros como "cadeira".
A experiência de ler um texto menos polido obviamente fazia com que os participantes se distraíssem quanto à tarefa que tinham, a de pronunciar os nomes das cores. E as interpolações chulas deixaram outras marcas.
Em verificações de memória subseqüentes, não só os participantes lembravam com mais facilidade as expressões chulas do que as neutras como essa capacidade de memória superior se aplicava também à coloração das palavras vulgares. Mas por mais que a linguagem indevida cause choque, pode ajudar a eliminar o estresse e a raiva. Em certos ambientes, o fluxo livre de linguagem obscena pode sinalizar não hostilidade ou patologia social, mas harmonia e tranqüilidade.
"Os estudos demonstram que, se você está com um grupo de bons amigos, quanto maior for o relaxamento, maior a propensão a usar palavrões", disse Kate Burridge, professora de lingüística na Universidade Monash, em Melbourne, Austrália.

Violência física evitada
Os indícios também sugerem que praguejar pode ser uma boa maneira de expressar a agressão e, portanto, impedir a violência física. Com a ajuda de estudantes, Timothy Jay, professor de psicologia no Massachusetts College of Liberal Arts, em North Adams, e autor de "Cursing in America" (praguejando na América) e "Why We Curse" (por que praguejamos), explorou a dinâmica do uso de linguagem chula.
Os pesquisadores constataram, entre outras coisas, que os homens em geral praguejam mais que as mulheres, a menos que as mulheres vivam juntas em um alojamento universitário, e que dirigentes universitários praguejam mais que bibliotecários ou os funcionários da creche de uma universidade.
Não importa quem esteja praguejando ou qual possa ter sido a provocação, diz Jay, a explicação da erupção é sempre a mesma. "Vezes sem conta, pessoas me disseram que, para elas, praguejar é um mecanismo de descarga, um modo de reduzir o estresse."
Os pesquisadores também estudaram como as palavras ganham o status de vocábulos proibidos, e de que forma a evolução da linguagem chula afeta as camadas mais suaves de discurso polido que se posicionam sobre ela.
Eles descobriram que aquilo que é considerado tabu lingüístico em determinado idioma freqüentemente representa um espelho dos medos e das fixações que afligem aquela cultura. "Em dadas culturas, os palavrões são extraídos principalmente do sexo e das funções corpóreas, enquanto em outras eles surgem principalmente do domínio da religião", disse Deutscher.
Em sociedades onde a pureza e a honra das mulheres têm importância, ele disse que "não surpreende que muitos dos insultos sejam variações do tema "filho de uma puta", ou se refiram à genitália das mães e irmãs das pessoas a serem ofendidas".
O conceito de um vocábulo chulo deriva, ele mesmo, da profunda importância que culturas do passado atribuíam a juramentos em nome de Deus ou dos deuses. Na antiga Babilônia, jurar em nome de um deus tinha por objetivo garantir certeza absoluta de que a pessoa não estava mentindo. O Deutscher diz que "as pessoas acreditavam que, ao tomar em vão o nome de um deus em um juramento, seria possível atrair a ira do deus".
Entre os cristãos, a restrição ao uso vão do nome do Senhor se estendia a alusões casuais ao filho de Deus ou aos Seus sofrimentos corpóreos não podia haver menção ao sangue ou aos ferimentos do corpo de Jesus, e a proibição se aplicava igualmente às contrações espertinhas.
No entanto nem os mandamentos bíblicos nem os mais zelosos censores da era vitoriana podem extrair da mente humana sua preocupação constante com o desordeiro corpo humano, suas exigências crônicas e embaraçosas e sua triste decadência. O desconforto quanto às funções corpóreas jamais repousa, diz Burridge, e a necessidade de escolher novas legiões de eufemismos para assuntos sujos vem há muito servindo como propulsor notável de inventividade lingüística.

Função corpórea
Assim que uma palavra se associa de maneira estreita a uma função corpórea, diz ela, assim que passa a evocar demais aquilo que não pode ou deve ser evocado, começa a entrar no reino do tabu e precisa ser substituída por um novo e mais delicado eufemismo.
Por exemplo, a palavra "toilet" deriva do vocábulo francês para "pequena toalha", e era em sua origem uma maneira agradavelmente indireta de mencionar o lugar onde o penico ou equivalente ficava guardado. Mas "toilet" passou a se significar a privada em si, e por isso soa grosseira demais para uso em ambientes educados. Em lugar de perguntar onde fica a privada, as pessoas pedem indicações usando eufemismos.
Os cientistas recentemente vêm tentando mapear a topografia neurológica da fala proibida por meio do estudo de pacientes da síndrome de Tourette que sofrem de coprolalia, uma compulsão patológica e incontrolável a praguejar. A síndrome de Tourette é um distúrbio neurológico de origem desconhecida caracterizado predominantemente por tiques vocais e motores crônicos, caretas constantes, ajustes dos óculos por sobre o nariz ou uma profusão de pequenos grunhidos ou gemidos.
Para as pessoas que sofrem de coprolalia, diz Carlos Singer, diretor da divisão de distúrbios no movimento na Escola de Medicina da Universidade de Miami, o sintoma é muitas vezes o mais devastador e humilhante aspecto de sua doença.
As pessoas não só podem se sentir chocadas ao ouvir uma ruidosa torrente de palavrões irrompendo sem motivo aparente, às vezes da boca de uma criança ou de um adolescente, como os palavrões podem ser insultuosos e pessoais.
David A. Silbersweig, diretor de neuropsiquiatria e de imagens neurológicas da Escola Weill de Medicina, parte da Universidade Cornell, e seus colegas estudam o uso de imagens de ressonância magnética para medir o fluxo sangüíneo cerebral e identificar que regiões do cérebro são galvanizadas, nos pacientes de Tourette, durante surtos intensos de tiques ou coprolalia.
Os pesquisadores constataram excitação dos circuitos neurológicos que interagem com o sistema límbico, o trono das emoções humanas, e, significativamente, com os ramos "executivos" do cérebro, nos quais as decisões de agir ou não agir podem ser executadas: a fonte neurológica, dizem os cientistas, de qualquer forma de consciência, civilidade ou livre arbítrio de que os seres humanos estejam dotados.
Que o controle executivo do cérebro esteja ativo em um surto de coprolalia, diz Silbersweig, demonstra até que ponto pode ser complexa a necessidade de dizer o indizível, e não só no caso dos pacientes da síndrome de Tourette.
O centro de controle de impulsos do cérebro luta para impedir a conspiração entre o ímpeto do sistema límbico e as artimanhas do neocórtex, e talvez obtenha sucesso por algum tempo. Mas o ímpeto cresce e por fim os percursos neurológicos da fala são ativados, e aquilo que é proibido termina pronunciado em voz alta. A culpa cabe igualmente ao que temos de mais arcaico e mais sofisticado em nossos cérebros.


Tradução de Paulo Migliacci

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