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LINGUAGEM
Estudos científicos apontam que praguejar requer esforço comparável aos percursos intelectuais e emocionais
Palavrão une brutalidade e astúcia pensada
NATALIE ANGIER
DO "NEW YORK TIMES"
Irritado com o que considera
praticamente uma pandemia de
vulgaridade verbal oriunda de
fontes tão diversas quanto o radialista Howard Stern ou Bono,
da banda U2, o Senado dos EUA
decidiu debater um projeto de lei
que elevaria severamente a pena
por proferir obscenidades em
programas de rádio ou TV.
Ao elevar as multas aplicáveis a
quem desrespeitar as normas em
cerca de 1.500%, para cerca de
US$ 500 mil por delito, e ao ameaçar revogar as licenças dos delinqüentes contumazes, o Senado
quer trazer de volta o tom mais
gentil do passado, quando o vocabulário chulo raramente era ouvido e não havia sujeitos famosos
pela boca suja no ar o dia inteiro.
No entanto pesquisadores que
estudam a evolução da linguagem
e os fatores psicológicos que conduzem ao uso de palavrões dizem
que não têm idéia de que modelo
místico de gentileza lingüística os
críticos dos palavrões têm em
mente. Praguejar, dizem, é um fator humano universal. Cada idioma, dialeto ou variedade regional
já estudado, morto ou vivo, tem
sua cota de palavras proibidas.
Segundo John McWhorter, pesquisador de lingüística no Manhattan Institute e autor de "The
Power of Babel" (o poder de Babel), os gigantes da literatura sempre construíram sua arte com base nessa estrutura.
O título "Much Ado about Nothing" (muito barulho por nada)
da peça de William Shakespeare,
diz McWhorter, é um trocadilho
com "much ado about an O
thing", com o "O" servindo de referência à genitália feminina.
E até mesmo na Bíblia as passagens sacanas são freqüentes, como o caso dos homens mencionados em II, Reis, 18:27, os quais, na
tradução comparativamente
amena adotada na Inglaterra do
século 16, a Bíblia do Rei James,
"comem seu próprio esterco e bebem sua própria urina".
5.000 anos atrás
Na verdade, diz Guy Deutscher,
lingüista da Universidade de Leiden, na Holanda, e autor de "The
Unfolding of Language: An Evolutionary Tour of Mankind's
Greatest Invention" (o desenrolar
da linguagem: visita evolutiva à
maior invenção humana), os primeiros registros escritos, datados
de cerca de 5.000 anos atrás, incluem boa cota de descrições nada gentis da forma do homem e
de suas pitorescas funções.
E o registro escrito é um simples
reflexo de uma tradição oral que
Deutscher e muitos outros psicólogos e lingüistas evolutivos suspeitam remonte pelo menos ao
surgimento da laringe humana, se
não a passado mais remoto.
Alguns pesquisadores se deixam impressionar a tal ponto pela
profundidade e poder da linguagem rude que a empregam como
ponto de entrada para a arquitetura do cérebro, como meio de investigar os confusos elos entre as
regiões mais novas, mais "altas",
do cérebro, que cuidam do intelecto, da razão e do planejamento,
e as mais antigas, mais "bestiais",
regiões neurológicas que dão origem às nossas emoções.
Os pesquisadores apontam que
praguejar é muitas vezes um
amálgama de sentimento bruto,
espontâneo, e astúcia dirigida, venenosa. Quando uma pessoa pragueja contra outra, ela raramente
despeja obscenidades e insultos
aleatórios, mas em vez disso avalia o objeto de sua ira e ajusta o
conteúdo de seu surto "incontrolável" levando isso em conta.
Porque praguejar requer contribuição comparável aos percursos
intelectuais e emocionais do cérebro e acesso deliberado ao fervor,
cientistas dizem que o estudo do
circuito neurológico usado para
essa atividade permite que façam
novas descobertas sobre como os
diferentes domínios do cérebro se
comunicam e tudo isso em nome
de uma resposta venenosa.
Reação
Outros estudiosos examinaram
a filosofia do ato de praguejar, a
maneira pela qual nossos sentidos
e reflexos reagem ao som e visão
de uma palavra obscena. Eles determinaram que ouvir palavras
rudes deixa as pessoas literalmente eriçadas.
Quando cabos eletrodérmicos
são instalados nos braços e nas
pontas dos dedos de participantes
de estudos para determinar os padrões de sua condutividade cutânea, e algumas palavras obscenas
são pronunciadas de maneira clara e firme, os participantes demonstram sinais de excitação instantânea. Os padrões de condutividade cutânea atingem um pico,
os pêlos de seus braços se arrepiam, o pulso se acelera e sua respiração se torna opressa.
Pesquisadores também constataram que as obscenidades às vezes penetram por sob a pele arrepiada e se recusam a ser desalojadas. Em um estudo, cientistas começaram com o teste de Stroop,
sob o qual os participantes lêem
uma série de palavras escritas
com cores diferentes e são convidados a reagir pronunciando os
nomes das cores e não as palavras
em si. Se os participantes vêem a
palavra "cadeira" escrita em amarelo, eles têm de dizer "amarelo".
A seguir, os pesquisadores inseriram palavras obscenas e vulgares na seqüência padronizada de
teste. Acompanhando as respostas imediatas e posteriores dos
participantes, os pesquisadores
constataram que, primeiro, as
pessoas precisavam de significativamente mais tempo para pronunciar as cores de palavras chulas do que era o caso quanto a termos neutros como "cadeira".
A experiência de ler um texto
menos polido obviamente fazia
com que os participantes se distraíssem quanto à tarefa que tinham, a de pronunciar os nomes
das cores. E as interpolações chulas deixaram outras marcas.
Em verificações de memória
subseqüentes, não só os participantes lembravam com mais facilidade as expressões chulas do
que as neutras como essa capacidade de memória superior se aplicava também à coloração das palavras vulgares. Mas por mais que
a linguagem indevida cause choque, pode ajudar a eliminar o estresse e a raiva. Em certos ambientes, o fluxo livre de linguagem
obscena pode sinalizar não hostilidade ou patologia social, mas
harmonia e tranqüilidade.
"Os estudos demonstram que,
se você está com um grupo de
bons amigos, quanto maior for o
relaxamento, maior a propensão
a usar palavrões", disse Kate Burridge, professora de lingüística na
Universidade Monash, em Melbourne, Austrália.
Violência física evitada
Os indícios também sugerem
que praguejar pode ser uma boa
maneira de expressar a agressão e,
portanto, impedir a violência física. Com a ajuda de estudantes, Timothy Jay, professor de psicologia no Massachusetts College of
Liberal Arts, em North Adams, e
autor de "Cursing in America"
(praguejando na América) e
"Why We Curse" (por que praguejamos), explorou a dinâmica
do uso de linguagem chula.
Os pesquisadores constataram,
entre outras coisas, que os homens em geral praguejam mais
que as mulheres, a menos que as
mulheres vivam juntas em um
alojamento universitário, e que
dirigentes universitários praguejam mais que bibliotecários ou os
funcionários da creche de uma
universidade.
Não importa quem esteja praguejando ou qual possa ter sido a
provocação, diz Jay, a explicação
da erupção é sempre a mesma.
"Vezes sem conta, pessoas me
disseram que, para elas, praguejar
é um mecanismo de descarga, um
modo de reduzir o estresse."
Os pesquisadores também estudaram como as palavras ganham
o status de vocábulos proibidos, e
de que forma a evolução da linguagem chula afeta as camadas
mais suaves de discurso polido
que se posicionam sobre ela.
Eles descobriram que aquilo
que é considerado tabu lingüístico em determinado idioma freqüentemente representa um espelho dos medos e das fixações
que afligem aquela cultura. "Em
dadas culturas, os palavrões são
extraídos principalmente do sexo
e das funções corpóreas, enquanto em outras eles surgem principalmente do domínio da religião", disse Deutscher.
Em sociedades onde a pureza e
a honra das mulheres têm importância, ele disse que "não surpreende que muitos dos insultos
sejam variações do tema "filho de
uma puta", ou se refiram à genitália das mães e irmãs das pessoas a
serem ofendidas".
O conceito de um vocábulo
chulo deriva, ele mesmo, da profunda importância que culturas
do passado atribuíam a juramentos em nome de Deus ou dos deuses. Na antiga Babilônia, jurar em
nome de um deus tinha por objetivo garantir certeza absoluta de
que a pessoa não estava mentindo. O Deutscher diz que "as pessoas acreditavam que, ao tomar
em vão o nome de um deus em
um juramento, seria possível
atrair a ira do deus".
Entre os cristãos, a restrição ao
uso vão do nome do Senhor se estendia a alusões casuais ao filho
de Deus ou aos Seus sofrimentos
corpóreos não podia haver menção ao sangue ou aos ferimentos
do corpo de Jesus, e a proibição se
aplicava igualmente às contrações
espertinhas.
No entanto nem os mandamentos bíblicos nem os mais zelosos
censores da era vitoriana podem
extrair da mente humana sua
preocupação constante com o desordeiro corpo humano, suas exigências crônicas e embaraçosas e
sua triste decadência. O desconforto quanto às funções corpóreas
jamais repousa, diz Burridge, e a
necessidade de escolher novas legiões de eufemismos para assuntos sujos vem há muito servindo
como propulsor notável de inventividade lingüística.
Função corpórea
Assim que uma palavra se associa de maneira estreita a uma função corpórea, diz ela, assim que
passa a evocar demais aquilo que
não pode ou deve ser evocado, começa a entrar no reino do tabu e
precisa ser substituída por um novo e mais delicado eufemismo.
Por exemplo, a palavra "toilet"
deriva do vocábulo francês para
"pequena toalha", e era em sua
origem uma maneira agradavelmente indireta de mencionar o lugar onde o penico ou equivalente
ficava guardado. Mas "toilet" passou a se significar a privada em si,
e por isso soa grosseira demais
para uso em ambientes educados.
Em lugar de perguntar onde fica a
privada, as pessoas pedem indicações usando eufemismos.
Os cientistas recentemente vêm
tentando mapear a topografia
neurológica da fala proibida por
meio do estudo de pacientes da
síndrome de Tourette que sofrem
de coprolalia, uma compulsão patológica e incontrolável a praguejar. A síndrome de Tourette é um
distúrbio neurológico de origem
desconhecida caracterizado predominantemente por tiques vocais e motores crônicos, caretas
constantes, ajustes dos óculos por
sobre o nariz ou uma profusão de
pequenos grunhidos ou gemidos.
Para as pessoas que sofrem de
coprolalia, diz Carlos Singer, diretor da divisão de distúrbios no
movimento na Escola de Medicina da Universidade de Miami, o
sintoma é muitas vezes o mais devastador e humilhante aspecto de
sua doença.
As pessoas não só podem se
sentir chocadas ao ouvir uma ruidosa torrente de palavrões irrompendo sem motivo aparente, às
vezes da boca de uma criança ou
de um adolescente, como os palavrões podem ser insultuosos e
pessoais.
David A. Silbersweig, diretor de
neuropsiquiatria e de imagens
neurológicas da Escola Weill de
Medicina, parte da Universidade
Cornell, e seus colegas estudam o
uso de imagens de ressonância
magnética para medir o fluxo
sangüíneo cerebral e identificar
que regiões do cérebro são galvanizadas, nos pacientes de Tourette, durante surtos intensos de tiques ou coprolalia.
Os pesquisadores constataram
excitação dos circuitos neurológicos que interagem com o sistema
límbico, o trono das emoções humanas, e, significativamente, com
os ramos "executivos" do cérebro, nos quais as decisões de agir
ou não agir podem ser executadas: a fonte neurológica, dizem os
cientistas, de qualquer forma de
consciência, civilidade ou livre arbítrio de que os seres humanos estejam dotados.
Que o controle executivo do cérebro esteja ativo em um surto de
coprolalia, diz Silbersweig, demonstra até que ponto pode ser
complexa a necessidade de dizer o
indizível, e não só no caso dos pacientes da síndrome de Tourette.
O centro de controle de impulsos do cérebro luta para impedir a
conspiração entre o ímpeto do
sistema límbico e as artimanhas
do neocórtex, e talvez obtenha sucesso por algum tempo. Mas o
ímpeto cresce e por fim os percursos neurológicos da fala são ativados, e aquilo que é proibido termina pronunciado em voz alta. A
culpa cabe igualmente ao que temos de mais arcaico e mais sofisticado em nossos cérebros.
Tradução de Paulo Migliacci
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