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GEORGE SHULTZ
Apesar da violência, americano defende o balanço da reconstrução comandada por Washington
EUA agem certo no Iraque, diz ex-secretário de Reagan
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Ante os graves problemas de segurança existentes no Iraque
atualmente, o processo de reconstrução do país é um grande sucesso, com a reabertura do maior
porto iraquiano, o restabelecimento e a expansão das redes de
energia elétrica e o tratamento da
água fornecida à população.
A afirmação é de George Shultz,
82, ex-secretário de Estado dos
EUA (1982-1989, no gabinete do
republicano Ronald Reagan) e ex-secretário do Tesouro (1972-1974,
sob o comando de Richard Nixon). Ele é membro do Instituto
Hoover (Universidade Stanford)
e do Comitê pela Libertação do
Iraque e faz parte do conselho de
diretores das empresas Bechtel
Corporation, Gilead Sciences e
Charles Schwab & Company.
Para Shultz, a Guerra do Iraque
foi travada porque o ex-ditador
Saddam Hussein estava acumulando armas e tinha contato com
a rede terrorista Al Qaeda, de Osama bin Laden, como ficou claro
após a invasão do Iraque.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Muitos especialistas dizem que a reconstrução do Iraque,
liderada pela coalizão anglo-americana, é um fracasso. Como o sr.
analisa essa afirmação?
George Shultz - A reconstrução
tem sido espetacularmente bem-sucedida. O porto de Umm Qasr
[sul] foi reaberto após um longo
período de fechamento. Seu funcionamento permite a entrada de
suprimentos. Trata-se de um porto grande e importante. Os iraquianos não tinham acesso a algo
assim havia muito tempo.
Na maior parte do país, os níveis
do fornecimento de energia elétrica são atualmente mais elevados
do que eram anteriormente. A
água está sendo purificada gradualmente. Durante o regime de
Saddam, as instalações de tratamento de água estavam sendo
usadas para várias outras coisas,
mas não para o tratamento da
água, e o esgoto era despejado no
rio Tigre. Agora a água está sendo
purificada. Há, portanto, mais
água, mais eletricidade e um porto em funcionamento.
Folha - Sim, mas há um enorme
problema de segurança no Iraque.
Como o sr. vê essa crise?
Shultz - É claro que há um problema de segurança no país, porém eu estava falando especificamente da reconstrução e de seu
sucesso. A reconstrução em si não
constitui um fracasso, trata-se de
algo impressionante. Aliás, ela é
particularmente impressionante
porque vem sendo conduzida
num local em que há um óbvio
problema de segurança. Este, sem
dúvida, torna todo o processo
mais lento do que
deveria ser.
Folha - O que deveria ser feito para resolver esse problema de segurança,
que tem forte impacto sobre o cotidiano das tropas
americanas?
Shultz - Creio que
a estratégia seja
treinar os iraquianos o mais rápido
possível para que
eles possam realizar o policiamento
do país, o que faz
sentido, já que os
iraquianos conhecem muito bem o
ambiente em que
vivem e são mais
preparados para
realizar essa tarefa. A manutenção
da lei e da ordem no Iraque deve
ser feita pelos iraquianos.
Sinto que, recentemente, as autoridades americanas pararam
para reexaminar a questão iraquiana e concluíram que ainda há
uma guerra no Iraque -um tipo
diferente de guerra- e que as forças dos EUA devem ajustar-se a
esse tipo de conflito. Assim, tiramos as luvas e decidimos realmente combater o inimigo. É isso
que ocorre no Iraque atualmente.
Folha - O sr. acredita que fosse
possível depor Saddam Hussein
sem ficar com a imagem de ter agido de modo unilateralista?
Shultz - Na realidade, os EUA
não foram unilateralistas. Houve
uma enorme atividade diplomática na ONU desde o início da década de 90 no que se refere à questão
iraquiana. E, basicamente, Saddam desafiou um dos mais extensos esforços multilateralistas de
todos os tempos.
Quando, finalmente, decidiram
ir ao Iraque [para fazer a guerra],
os EUA não foram sozinhos, mas
ao lado do Reino Unido, da Espanha, da Polônia, da Austrália etc.
Além disso, na Europa, a maioria
dos países apoiou a iniciativa
americana. Apenas a Alemanha, a
França, a Bélgica e Luxemburgo
não seguiram essa linha.
Contudo vimos que esse foi um
caso em que a França e a Alemanha quiseram falar em nome de
toda a Europa, mas acabaram
percebendo que não representavam a vontade do continente.
Folha - Porém a crise diplomática
que precedeu a guerra e as diferenças que se mantiveram após o conflito minaram as relações transatlânticas e o sistema multilateralista representado pela ONU. Como o
sr. interpreta essa constatação?
Shultz - A ONU não é uma organização, mas um processo. Este
foi usado por mais de uma década
no que se refere ao caso iraquiano. No final, esse processo não se
mostrou produtivo. Creio que esteja ocorrendo uma reavaliação
do papel da organização.
Quando queriam agir militarmente para pôr fim ao problema
de Kosovo [1999], os europeus
não procuraram a aprovação da
ONU, pois sabiam que a Rússia
vetaria qualquer resolução contra
a Iugoslávia. Assim, eles simplesmente realizaram sua operação
militar sem nem debater o tema
no Conselho de Segurança.
Encontrei-me com um grupo
de alemães recentemente, e conversamos sobre a legitimidade de
ações militares preventivas. Muitos deles concordaram com a
idéia de que elas são necessárias
em certos casos. Um deles me disse, então, que a questão deveria
ser discutida pelos membros permanentes do Conselho de Segurança. De repente, outro alemão
afirmou que seu país tem a terceira maior economia do planeta,
porém não é membro permanente do Conselho de Segurança.
Ora, não podemos esquecer que
o Japão tem a segunda maior economia do mundo e também não
possui uma cadeira permanente
no órgão. O mesmo vale para a
Índia, que é o país democrático
mais populoso do planeta, e para
o Brasil, que tem a maior economia da América do
Sul. Por que, então,
o Conselho de Segurança deveria ser
o local apropriado
para discutir questões delicadas, já
que Estados-chave
não são seus membros permanentes?
Ademais, é irritante saber que a
Comissão de Direitos Humanos da
ONU é liderada pela
Líbia. Não estou dizendo que apóio
uma reforma. Mas
digo que se trata de
um processo apropriado apenas para
certas situações.
A ONU foi muito
útil em alguns casos, como no da independência
da Namíbia, que pertencia à África do Sul [1990]. Ela foi crucial no
que concerne à implementação
do acordo obtido após anos de
negociações, ajudando na concepção de uma Constituição e na
organização de eleições.
Há, portanto, momentos em
que a ONU deve ser acionada, Todavia há outros em que sua participação não é eficaz. E as pessoas
devem entender que a situação é
assim, não esperando que ela resolva todos os problemas globais.
Folha - É possível comparar o modo como George W. Bush conduz a
política externa dos EUA com o usado pelo ex-presidente Ronald Reagan (1981-1989)? Bush vem tentando ligar a guerra ao terrorismo
ao combate ao comunismo capitaneado por Reagan. Isso é correto?
Shultz - Trata-se de duas coisas
completamente diferentes. É verdade que a Guerra Fria e a guerra
ao terrorismo têm em comum o
fato de serem guerras, porém sua
essência não é a mesma. Bush é
comparável a Reagan no que diz
respeito a seu poder de decisão.
Ele entende que o terrorismo é
uma ameaça não apenas para os
EUA mas também para a Turquia, como vimos recentemente,
para a Indonésia e para o Brasil.
Trata-se de uma problema global.
Folha - Qual é o legado do reaganismo? O mundo ficou melhor?
Shultz - Reagan permitiu que o
mundo se livrasse da Guerra Fria.
Ele fez com que o mundo se tornasse mais próspero, dando às
pessoas idéias sobre o modo como a prosperidade pode ser atingida. Depois dos dois governos de
Reagan, o mundo tinha muito
mais pessoas vivendo em regimes
livres e democráticos. Somando
tudo isso, as pessoas acabam percebendo que a Presidência de
Reagan foi um ponto de inflexão
na história da humanidade.
Folha - Como o sr. vê a deterioração da imagem internacional dos
EUA ocorrida recentemente?
Shultz - É importante que as pessoas pensem cuidadosamente sobre o que está acontecendo na cena internacional atualmente e que
elas busquem saber onde se encontram seus interesses.
Quando isso ocorrer, elas começarão a perceber que os EUA estão travando uma batalha por
elas, não contra elas. Talvez elas
percebam que devem ajudar os
americanos, não criticá-los. Afinal, está claro que, nas partes menos abastadas do planeta, há uma
imensa oportunidade de atingir
avanços relacionados ao crescimento econômico, aos direitos
humanos e às liberdades políticas.
E o que pode estragar esse quadro é o terrorismo. Assim, a guerra ao terrorismo é uma batalha
para preservar essas oportunidades. Creio que os EUA devam
manter sua posição atual, e Bush
tem dito que isso ocorrerá.
Folha - Na semana passada, o
presidente disse que o principal
objetivo da ocupação do Iraque é a
tentativa de democratizar o país.
Isso é realmente factível?
Shultz - Sim. Se realmente tentarmos, isso ocorrerá. Não há nada na cultura islâmica que impeça
a existência da democracia num
determinado país. A Turquia está
fazendo enormes progressos. A
Indonésia, que é o maior Estado
muçulmano do mundo, está
avançando em direção à liberdade política. Não vejo por que o
Iraque não poderia
tornar-se um país
democrático.
Não digo que a tarefa seja fácil. Contudo não há nada
impossível. Há 25
anos, ademais, as
pessoas diziam que
dificilmente o Brasil se tornaria uma
democracia, e o
país é hoje um gigante democrático.
Folha - Os EUA ficarão no Iraque até
que esse processo
de democratização
esteja concluído?
Shultz - Os EUA
permanecerão no
país até o dia em
que houver uma relativa estabilidade e
um governo soberano legítimo.
Quando isso for feito, os EUA poderão deixar o Iraque.
Folha - E quanto à Arábia Saudita? Ela continuará tendo uma relação privilegiada com os EUA, apesar dos graves problemas que tem
com o terrorismo?
Shultz - Acredito que essa seja a
razão pela qual a Arábia Saudita
continuará a apoiar os EUA. Afinal, os sauditas sabem muito bem
que o terrorismo é um problema
que também existe em seu país.
É claro que não podemos esquecer que a Arábia Saudita tem seus
problemas internos. Mas os sauditas têm progredido. Hoje eles
permitem que as mulheres tenham acesso à educação, por
exemplo. Ainda resta muito a fazer, mas eles estão progredindo.
Folha - Que papel desempenha o
petróleo iraquiano nesse quadro?
Shultz - Não creio que a Guerra
do Iraque tenha sido travada por
causa do petróleo iraquiano. Ela
existiu porque Saddam estava
acumulando armas. Sabemos que
ele usou armas químicas contra
seu próprio povo no passado.
Quem sabe o que ele poderia fazer
agora? Além disso, hoje já temos
uma quantidade gigantesca de
evidências de que ele tinha contato com a rede terrorista Al Qaeda.
Foi por isso que houve a guerra.
Folha - Alguns analistas afirmam
que a ocupação do Iraque tem como grande objetivo favorecer alguns interesses específicos das
grandes empresas de construção e
de petróleo americanas, como a
Halliburton e a Bechtel. O que o sr.
pensa disso?
Shultz - Não posso
falar sobre a Halliburton, mas conheço bem a Bechtel.
Trata-se de uma
empresa muito capaz, que tem um
longo histórico de
serviços prestados.
Foi convidada a
participar de licitações relacionadas à
reconstrução do
Iraque e escolhida
para realizar parte
dos trabalhos.
Por exemplo,
uma das razões pelas quais o porto de
Umm Qasr foi reaberto é o trabalho
excelente da Bechtel, que permitiu
que isso ocorresse. Na verdade, se
queremos dar boas chances à população iraquiana, temos sorte de
que uma empresa como a Bechtel
exista, já que ela realiza muito
bem seu trabalho. Ademais, ela
tem buscado integrar os iraquianos às suas atividades, contratando trabalhadores locais e dando
oportunidades às pessoas.
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