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São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2003

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GEORGE SHULTZ

Apesar da violência, americano defende o balanço da reconstrução comandada por Washington

EUA agem certo no Iraque, diz ex-secretário de Reagan

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Ante os graves problemas de segurança existentes no Iraque atualmente, o processo de reconstrução do país é um grande sucesso, com a reabertura do maior porto iraquiano, o restabelecimento e a expansão das redes de energia elétrica e o tratamento da água fornecida à população.
A afirmação é de George Shultz, 82, ex-secretário de Estado dos EUA (1982-1989, no gabinete do republicano Ronald Reagan) e ex-secretário do Tesouro (1972-1974, sob o comando de Richard Nixon). Ele é membro do Instituto Hoover (Universidade Stanford) e do Comitê pela Libertação do Iraque e faz parte do conselho de diretores das empresas Bechtel Corporation, Gilead Sciences e Charles Schwab & Company.
Para Shultz, a Guerra do Iraque foi travada porque o ex-ditador Saddam Hussein estava acumulando armas e tinha contato com a rede terrorista Al Qaeda, de Osama bin Laden, como ficou claro após a invasão do Iraque.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

 

Folha - Muitos especialistas dizem que a reconstrução do Iraque, liderada pela coalizão anglo-americana, é um fracasso. Como o sr. analisa essa afirmação?
George Shultz -
A reconstrução tem sido espetacularmente bem-sucedida. O porto de Umm Qasr [sul] foi reaberto após um longo período de fechamento. Seu funcionamento permite a entrada de suprimentos. Trata-se de um porto grande e importante. Os iraquianos não tinham acesso a algo assim havia muito tempo.
Na maior parte do país, os níveis do fornecimento de energia elétrica são atualmente mais elevados do que eram anteriormente. A água está sendo purificada gradualmente. Durante o regime de Saddam, as instalações de tratamento de água estavam sendo usadas para várias outras coisas, mas não para o tratamento da água, e o esgoto era despejado no rio Tigre. Agora a água está sendo purificada. Há, portanto, mais água, mais eletricidade e um porto em funcionamento.

Folha - Sim, mas há um enorme problema de segurança no Iraque. Como o sr. vê essa crise?
Shultz -
É claro que há um problema de segurança no país, porém eu estava falando especificamente da reconstrução e de seu sucesso. A reconstrução em si não constitui um fracasso, trata-se de algo impressionante. Aliás, ela é particularmente impressionante porque vem sendo conduzida num local em que há um óbvio problema de segurança. Este, sem dúvida, torna todo o processo mais lento do que deveria ser.

Folha - O que deveria ser feito para resolver esse problema de segurança, que tem forte impacto sobre o cotidiano das tropas americanas?
Shultz -
Creio que a estratégia seja treinar os iraquianos o mais rápido possível para que eles possam realizar o policiamento do país, o que faz sentido, já que os iraquianos conhecem muito bem o ambiente em que vivem e são mais preparados para realizar essa tarefa. A manutenção da lei e da ordem no Iraque deve ser feita pelos iraquianos.
Sinto que, recentemente, as autoridades americanas pararam para reexaminar a questão iraquiana e concluíram que ainda há uma guerra no Iraque -um tipo diferente de guerra- e que as forças dos EUA devem ajustar-se a esse tipo de conflito. Assim, tiramos as luvas e decidimos realmente combater o inimigo. É isso que ocorre no Iraque atualmente.

Folha - O sr. acredita que fosse possível depor Saddam Hussein sem ficar com a imagem de ter agido de modo unilateralista?
Shultz -
Na realidade, os EUA não foram unilateralistas. Houve uma enorme atividade diplomática na ONU desde o início da década de 90 no que se refere à questão iraquiana. E, basicamente, Saddam desafiou um dos mais extensos esforços multilateralistas de todos os tempos.
Quando, finalmente, decidiram ir ao Iraque [para fazer a guerra], os EUA não foram sozinhos, mas ao lado do Reino Unido, da Espanha, da Polônia, da Austrália etc. Além disso, na Europa, a maioria dos países apoiou a iniciativa americana. Apenas a Alemanha, a França, a Bélgica e Luxemburgo não seguiram essa linha.
Contudo vimos que esse foi um caso em que a França e a Alemanha quiseram falar em nome de toda a Europa, mas acabaram percebendo que não representavam a vontade do continente.

Folha - Porém a crise diplomática que precedeu a guerra e as diferenças que se mantiveram após o conflito minaram as relações transatlânticas e o sistema multilateralista representado pela ONU. Como o sr. interpreta essa constatação?
Shultz -
A ONU não é uma organização, mas um processo. Este foi usado por mais de uma década no que se refere ao caso iraquiano. No final, esse processo não se mostrou produtivo. Creio que esteja ocorrendo uma reavaliação do papel da organização.
Quando queriam agir militarmente para pôr fim ao problema de Kosovo [1999], os europeus não procuraram a aprovação da ONU, pois sabiam que a Rússia vetaria qualquer resolução contra a Iugoslávia. Assim, eles simplesmente realizaram sua operação militar sem nem debater o tema no Conselho de Segurança.
Encontrei-me com um grupo de alemães recentemente, e conversamos sobre a legitimidade de ações militares preventivas. Muitos deles concordaram com a idéia de que elas são necessárias em certos casos. Um deles me disse, então, que a questão deveria ser discutida pelos membros permanentes do Conselho de Segurança. De repente, outro alemão afirmou que seu país tem a terceira maior economia do planeta, porém não é membro permanente do Conselho de Segurança.
Ora, não podemos esquecer que o Japão tem a segunda maior economia do mundo e também não possui uma cadeira permanente no órgão. O mesmo vale para a Índia, que é o país democrático mais populoso do planeta, e para o Brasil, que tem a maior economia da América do Sul. Por que, então, o Conselho de Segurança deveria ser o local apropriado para discutir questões delicadas, já que Estados-chave não são seus membros permanentes?
Ademais, é irritante saber que a Comissão de Direitos Humanos da ONU é liderada pela Líbia. Não estou dizendo que apóio uma reforma. Mas digo que se trata de um processo apropriado apenas para certas situações.
A ONU foi muito útil em alguns casos, como no da independência da Namíbia, que pertencia à África do Sul [1990]. Ela foi crucial no que concerne à implementação do acordo obtido após anos de negociações, ajudando na concepção de uma Constituição e na organização de eleições.
Há, portanto, momentos em que a ONU deve ser acionada, Todavia há outros em que sua participação não é eficaz. E as pessoas devem entender que a situação é assim, não esperando que ela resolva todos os problemas globais.

Folha - É possível comparar o modo como George W. Bush conduz a política externa dos EUA com o usado pelo ex-presidente Ronald Reagan (1981-1989)? Bush vem tentando ligar a guerra ao terrorismo ao combate ao comunismo capitaneado por Reagan. Isso é correto?
Shultz -
Trata-se de duas coisas completamente diferentes. É verdade que a Guerra Fria e a guerra ao terrorismo têm em comum o fato de serem guerras, porém sua essência não é a mesma. Bush é comparável a Reagan no que diz respeito a seu poder de decisão. Ele entende que o terrorismo é uma ameaça não apenas para os EUA mas também para a Turquia, como vimos recentemente, para a Indonésia e para o Brasil. Trata-se de uma problema global.

Folha - Qual é o legado do reaganismo? O mundo ficou melhor?
Shultz -
Reagan permitiu que o mundo se livrasse da Guerra Fria. Ele fez com que o mundo se tornasse mais próspero, dando às pessoas idéias sobre o modo como a prosperidade pode ser atingida. Depois dos dois governos de Reagan, o mundo tinha muito mais pessoas vivendo em regimes livres e democráticos. Somando tudo isso, as pessoas acabam percebendo que a Presidência de Reagan foi um ponto de inflexão na história da humanidade.

Folha - Como o sr. vê a deterioração da imagem internacional dos EUA ocorrida recentemente?
Shultz -
É importante que as pessoas pensem cuidadosamente sobre o que está acontecendo na cena internacional atualmente e que elas busquem saber onde se encontram seus interesses.
Quando isso ocorrer, elas começarão a perceber que os EUA estão travando uma batalha por elas, não contra elas. Talvez elas percebam que devem ajudar os americanos, não criticá-los. Afinal, está claro que, nas partes menos abastadas do planeta, há uma imensa oportunidade de atingir avanços relacionados ao crescimento econômico, aos direitos humanos e às liberdades políticas.
E o que pode estragar esse quadro é o terrorismo. Assim, a guerra ao terrorismo é uma batalha para preservar essas oportunidades. Creio que os EUA devam manter sua posição atual, e Bush tem dito que isso ocorrerá.

Folha - Na semana passada, o presidente disse que o principal objetivo da ocupação do Iraque é a tentativa de democratizar o país. Isso é realmente factível?
Shultz -
Sim. Se realmente tentarmos, isso ocorrerá. Não há nada na cultura islâmica que impeça a existência da democracia num determinado país. A Turquia está fazendo enormes progressos. A Indonésia, que é o maior Estado muçulmano do mundo, está avançando em direção à liberdade política. Não vejo por que o Iraque não poderia tornar-se um país democrático.
Não digo que a tarefa seja fácil. Contudo não há nada impossível. Há 25 anos, ademais, as pessoas diziam que dificilmente o Brasil se tornaria uma democracia, e o país é hoje um gigante democrático.

Folha - Os EUA ficarão no Iraque até que esse processo de democratização esteja concluído?
Shultz -
Os EUA permanecerão no país até o dia em que houver uma relativa estabilidade e um governo soberano legítimo. Quando isso for feito, os EUA poderão deixar o Iraque.

Folha - E quanto à Arábia Saudita? Ela continuará tendo uma relação privilegiada com os EUA, apesar dos graves problemas que tem com o terrorismo?
Shultz -
Acredito que essa seja a razão pela qual a Arábia Saudita continuará a apoiar os EUA. Afinal, os sauditas sabem muito bem que o terrorismo é um problema que também existe em seu país.
É claro que não podemos esquecer que a Arábia Saudita tem seus problemas internos. Mas os sauditas têm progredido. Hoje eles permitem que as mulheres tenham acesso à educação, por exemplo. Ainda resta muito a fazer, mas eles estão progredindo.

Folha - Que papel desempenha o petróleo iraquiano nesse quadro?
Shultz -
Não creio que a Guerra do Iraque tenha sido travada por causa do petróleo iraquiano. Ela existiu porque Saddam estava acumulando armas. Sabemos que ele usou armas químicas contra seu próprio povo no passado. Quem sabe o que ele poderia fazer agora? Além disso, hoje já temos uma quantidade gigantesca de evidências de que ele tinha contato com a rede terrorista Al Qaeda. Foi por isso que houve a guerra.

Folha - Alguns analistas afirmam que a ocupação do Iraque tem como grande objetivo favorecer alguns interesses específicos das grandes empresas de construção e de petróleo americanas, como a Halliburton e a Bechtel. O que o sr. pensa disso?
Shultz -
Não posso falar sobre a Halliburton, mas conheço bem a Bechtel. Trata-se de uma empresa muito capaz, que tem um longo histórico de serviços prestados. Foi convidada a participar de licitações relacionadas à reconstrução do Iraque e escolhida para realizar parte dos trabalhos.
Por exemplo, uma das razões pelas quais o porto de Umm Qasr foi reaberto é o trabalho excelente da Bechtel, que permitiu que isso ocorresse. Na verdade, se queremos dar boas chances à população iraquiana, temos sorte de que uma empresa como a Bechtel exista, já que ela realiza muito bem seu trabalho. Ademais, ela tem buscado integrar os iraquianos às suas atividades, contratando trabalhadores locais e dando oportunidades às pessoas.



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