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Jornais russos criticam, mas Putin mira TV
Editor de publicação onde trabalhava jornalista assassinada diz que há liberdade, só que ninguém dá importância a críticas
Falta de sociedade civil ativa facilita corrupção oficial e vigilância policial ostensiva; governo tem como objetivo o controle de emissoras
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU
A hora do "rush" no excelente metrô de Moscou costuma
encerrar um quadro com duas
cenas. Uma pequena multidão
silenciosa, com ares atarefados,
seguindo de forma ordenada
para seu destino. Essa mesma
horda esbarra em policiais bem
ou mau encarados com seus
cães, e vendedores de jornais.
De certa forma, a imagem
ajuda a entender a questão da
liberdade do indivíduo na era
Putin, geralmente um tema de
crítica ácida por meio de órgãos
de imprensa e entidades que
monitoram direitos humanos
mundo afora.
A começar pelo comportamento da multidão. "Não existe
uma sociedade civil na Rússia
ainda. Existem espasmos, aqui
e ali, mas o que temos é isso: um
monte de gente indo de um lugar para o outro", disse o editor
de reportagens investigativas
da "Novaya Gazeta", Roman
Schleinov, 32.
O jornal, com circulação de
aproximadamente 540 mil
exemplares duas vezes por semana, é um dos mais críticos ao
governo Putin. Foi criado em
1993, e há um ano tem 49% de
seu controle na mão do ex-líder
soviético Mikhail Gorbatchov,
embora supostamente não haja
interferência editorial.
Lá começou a trabalhar em
1999 a jornalista crítica do
Kremlin Anna Politkovskaia,
cujo assassinato no ano passado virou um marco na denúncia
das condições de trabalho da
imprensa na Rússia.
O Comitê de Proteção aos
Jornalistas cita 42 mortes desde 1992, o terceiro país no ranking de periculosidade para a
profissão da entidade -atrás de
Iraque e Argélia. A Freedom
House, entidade norte-americana especializada em medir
democracias (ao estilo ocidental) mundo afora, considera a
Rússia um país "não livre" nos
quesitos liberdade civil e de imprensa e direitos políticos.
Processo histórico
E o que pensa o editor do
mais duro jornal de oposição?
"Existe sim liberdade de imprensa na Rússia. Há dificuldades fora de Moscou e São Petersburgo, nas regiões afastadas. O problema real é outro, é
que ninguém dá importância às
críticas. Se 10%, 15% da população dos grandes centros se
preocupa, é muito. Sinceramente, nenhum jornalista russo ficou chocado com a morte
de Anna. Não foi a primeira."
Ele nega que isso seja motivo
de frustração profissional: "Eu
acredito em processo histórico.
Em um dado momento, a sociedade civil começará a aparecer.
Eu vejo isso nos pequenos e
médios empresários, donos de
comércios, uma hora eles exigirão o fim da corrupção para
permanecerem abertos. E aí
aparecerão políticos que os representem."
Schleinov tem esperança em
gente como Kamal, dono de um
restaurante libanês na zona sul
de Moscou. "É muito difícil sobreviver. Antes, no tempo do
Ieltsin, eu separava mais ou
menos 5% de propinas para a
máfia. Agora, são 15% para diversas agências governamentais que mantêm meu negócio
aberto. Se não pago, inventam
uma inspeção sanitária, qualquer coisa, e me fecham", diz o
druso, batizado em homenagem a Kamal Jumblatt, líder
histórico desse grupo politicamente poderoso no Líbano.
É disso que se trata a analogia
dos policiais e seus cães. Se por
um lado eles são necessários
num país sob ameaça de terrorismo, por outro eles lembram
a institucionalização da polícia,
do Exército, dos serviços secretos como parte da vida. "A era
dos gângsteres efetivamente
acabou", diz Schleinov. É para o
governo que agora Kamal paga
suas propinas.
TV e Exército
"Há um mito sobre a falta de
liberdade no país. A imprensa é
livre, pode criticar o quanto
quiser. O que importa é que o
governo tenha as maiores TVs
sob controle, porque elas são
instrumentos de propaganda, e
é o que interessa", disse à Folha, sem maiores rodeios, o
analista Sergei Markov, conselheiro informal de Putin.
Segundo ele, a tomada da rede NTV foi essencial para consolidar a estratégia do governo
para a comunicação. A NTV
pertencia a um oligarca [empresário que enriqueceu com
privatizações suspeitas do Estado soviético], Vladimir Gusinsky, e era famosa por seu
programa "Kukly" ("Bonecos"), em que políticos eram satirizados por marionetes. Até
que foi a vez de Putin. Após algumas acusações judiciais, a
NTV acabou tendo seu controle comprado pela gigante estatal do gás Gazprom em 2001.
"Há centenas de canais, cada
um vê o que quer. Mas os canais
principais, e isso acontece tanto nas redes nacionais quanto
nas regionais, têm que ser do
governo. Na Rússia, a TV é mais
importante do que o Exército.
É um bem estratégico", diz
Markov.
Antes, a NTV tinha uma linha editorial considerada mais
independente. "Mas mesmo isso é preciso ser colocado em
perspectiva. Nos anos 90, as
TVs tinham antagonismos,
mas serviam a interesses dos
oligarcas", lembra Schleinov.
A NTV é a terceira mais vista
do país, depois dos dois canais
oficiais, a ORT e a RTR.
Mas a brutalização do cotidiano não se resume à mídia.
Além de jornalistas, foram assassinados recentemente políticos, um dos chefes do setor de
regulação bancária e houve um
ataque frontal às ONGs.
No ano passado, foi passada
uma lei instalando diversos
mecanismos para regular a atividade das ONGs. Como sempre no setor, havia picaretagens
a serem coibidas. Mas mesmo
instituições respeitáveis como
o Centro Carnegie de Moscou
passaram a ter auditores fiscais
fisicamente em seus prédios,
"lembrando" os seus diretores
que sempre pode haver problemas com o governo.
ONGs extintas
Não há balanço, mas estima-se que as ONGs menores, que
recebiam dinheiro externo, foram extintas. Uma exceção foi o
Instituto de Direitos Humanos.
"Acontece que agora sou praticamente só eu e uns jovens esforçados que não cobram para
trabalhar", disse seu diretor,
Valentin Gefter.
Há suspeitas sobre o sistema
judicial. Como disse o advogado Anton Drel, a reportagem
poderia enviar perguntas ao
empresário Mikhail Khodorkovsi. "Mas elas nunca chegarão a ele na cadeia na Sibéria",
disse. Homem mais rico do
mundo e com pretensões políticas, Khodorkovski ganhou a
pecha de oligarca dos aliados de
Putin e teve sua empresa petrolífera, a Yukos, absorvida pelo
governo. Acusado de evasão fiscal, foi condenado a oito anos
de prisão em 2005.
Não se pode dizer que o russo
não goste de notícia, contudo.
Como o terceiro elemento do
quadro do metrô indica, há farta oferta de informação -ainda
que de qualidade duvidosa.
Uma pesquisa feita em agosto
pela Fundação de Opinião Pública com 1.500 pessoas em 44
das 85 regiões russas mostrou
que 92% das pessoas se interessam por notícia, e 43% delas
pelo noticiário político (com
51% lideram as histórias sobre
tragédias e crimes).
Jornais e revistam somam
400 títulos. O maior deles é a
revista mensal "Argumenty i
Fakti", que já teve 33 milhões
de exemplares circulando nos
anos 90, e hoje tem ainda respeitáveis 2,6 milhões de unidades rodadas a cada número.
Não há nada parecido com isso
no Brasil. A internet ainda engatinha: embora tenha 25% da
população sob sua cobertura, o
noticiário online só é acompanhado por 8% das pessoas.
Mas a mesma pesquisa mostrou que os jornais nacionais,
que com raras exceções também saíram das mãos dos oligarcas e caíram no colo de aliados de Putin, são a fonte de informação preferida de 30% do
público. As TVs nacionais registram 90% de preferência.
"Elas são imbecilizantes", sentencia Schleinov, confirmando
o pragmatismo midiático de
Markov. A hora do "rush", como o telejornal da noite, ocorre
todo dia útil.
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