São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2007

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Jornais russos criticam, mas Putin mira TV

Editor de publicação onde trabalhava jornalista assassinada diz que há liberdade, só que ninguém dá importância a críticas

Falta de sociedade civil ativa facilita corrupção oficial e vigilância policial ostensiva; governo tem como objetivo o controle de emissoras

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

A hora do "rush" no excelente metrô de Moscou costuma encerrar um quadro com duas cenas. Uma pequena multidão silenciosa, com ares atarefados, seguindo de forma ordenada para seu destino. Essa mesma horda esbarra em policiais bem ou mau encarados com seus cães, e vendedores de jornais.
De certa forma, a imagem ajuda a entender a questão da liberdade do indivíduo na era Putin, geralmente um tema de crítica ácida por meio de órgãos de imprensa e entidades que monitoram direitos humanos mundo afora.
A começar pelo comportamento da multidão. "Não existe uma sociedade civil na Rússia ainda. Existem espasmos, aqui e ali, mas o que temos é isso: um monte de gente indo de um lugar para o outro", disse o editor de reportagens investigativas da "Novaya Gazeta", Roman Schleinov, 32.
O jornal, com circulação de aproximadamente 540 mil exemplares duas vezes por semana, é um dos mais críticos ao governo Putin. Foi criado em 1993, e há um ano tem 49% de seu controle na mão do ex-líder soviético Mikhail Gorbatchov, embora supostamente não haja interferência editorial.
Lá começou a trabalhar em 1999 a jornalista crítica do Kremlin Anna Politkovskaia, cujo assassinato no ano passado virou um marco na denúncia das condições de trabalho da imprensa na Rússia.
O Comitê de Proteção aos Jornalistas cita 42 mortes desde 1992, o terceiro país no ranking de periculosidade para a profissão da entidade -atrás de Iraque e Argélia. A Freedom House, entidade norte-americana especializada em medir democracias (ao estilo ocidental) mundo afora, considera a Rússia um país "não livre" nos quesitos liberdade civil e de imprensa e direitos políticos.

Processo histórico
E o que pensa o editor do mais duro jornal de oposição? "Existe sim liberdade de imprensa na Rússia. Há dificuldades fora de Moscou e São Petersburgo, nas regiões afastadas. O problema real é outro, é que ninguém dá importância às críticas. Se 10%, 15% da população dos grandes centros se preocupa, é muito. Sinceramente, nenhum jornalista russo ficou chocado com a morte de Anna. Não foi a primeira."
Ele nega que isso seja motivo de frustração profissional: "Eu acredito em processo histórico. Em um dado momento, a sociedade civil começará a aparecer. Eu vejo isso nos pequenos e médios empresários, donos de comércios, uma hora eles exigirão o fim da corrupção para permanecerem abertos. E aí aparecerão políticos que os representem."
Schleinov tem esperança em gente como Kamal, dono de um restaurante libanês na zona sul de Moscou. "É muito difícil sobreviver. Antes, no tempo do Ieltsin, eu separava mais ou menos 5% de propinas para a máfia. Agora, são 15% para diversas agências governamentais que mantêm meu negócio aberto. Se não pago, inventam uma inspeção sanitária, qualquer coisa, e me fecham", diz o druso, batizado em homenagem a Kamal Jumblatt, líder histórico desse grupo politicamente poderoso no Líbano.
É disso que se trata a analogia dos policiais e seus cães. Se por um lado eles são necessários num país sob ameaça de terrorismo, por outro eles lembram a institucionalização da polícia, do Exército, dos serviços secretos como parte da vida. "A era dos gângsteres efetivamente acabou", diz Schleinov. É para o governo que agora Kamal paga suas propinas.

TV e Exército
"Há um mito sobre a falta de liberdade no país. A imprensa é livre, pode criticar o quanto quiser. O que importa é que o governo tenha as maiores TVs sob controle, porque elas são instrumentos de propaganda, e é o que interessa", disse à Folha, sem maiores rodeios, o analista Sergei Markov, conselheiro informal de Putin.
Segundo ele, a tomada da rede NTV foi essencial para consolidar a estratégia do governo para a comunicação. A NTV pertencia a um oligarca [empresário que enriqueceu com privatizações suspeitas do Estado soviético], Vladimir Gusinsky, e era famosa por seu programa "Kukly" ("Bonecos"), em que políticos eram satirizados por marionetes. Até que foi a vez de Putin. Após algumas acusações judiciais, a NTV acabou tendo seu controle comprado pela gigante estatal do gás Gazprom em 2001.
"Há centenas de canais, cada um vê o que quer. Mas os canais principais, e isso acontece tanto nas redes nacionais quanto nas regionais, têm que ser do governo. Na Rússia, a TV é mais importante do que o Exército. É um bem estratégico", diz Markov.
Antes, a NTV tinha uma linha editorial considerada mais independente. "Mas mesmo isso é preciso ser colocado em perspectiva. Nos anos 90, as TVs tinham antagonismos, mas serviam a interesses dos oligarcas", lembra Schleinov.
A NTV é a terceira mais vista do país, depois dos dois canais oficiais, a ORT e a RTR.
Mas a brutalização do cotidiano não se resume à mídia. Além de jornalistas, foram assassinados recentemente políticos, um dos chefes do setor de regulação bancária e houve um ataque frontal às ONGs.
No ano passado, foi passada uma lei instalando diversos mecanismos para regular a atividade das ONGs. Como sempre no setor, havia picaretagens a serem coibidas. Mas mesmo instituições respeitáveis como o Centro Carnegie de Moscou passaram a ter auditores fiscais fisicamente em seus prédios, "lembrando" os seus diretores que sempre pode haver problemas com o governo.

ONGs extintas
Não há balanço, mas estima-se que as ONGs menores, que recebiam dinheiro externo, foram extintas. Uma exceção foi o Instituto de Direitos Humanos. "Acontece que agora sou praticamente só eu e uns jovens esforçados que não cobram para trabalhar", disse seu diretor, Valentin Gefter.
Há suspeitas sobre o sistema judicial. Como disse o advogado Anton Drel, a reportagem poderia enviar perguntas ao empresário Mikhail Khodorkovsi. "Mas elas nunca chegarão a ele na cadeia na Sibéria", disse. Homem mais rico do mundo e com pretensões políticas, Khodorkovski ganhou a pecha de oligarca dos aliados de Putin e teve sua empresa petrolífera, a Yukos, absorvida pelo governo. Acusado de evasão fiscal, foi condenado a oito anos de prisão em 2005.
Não se pode dizer que o russo não goste de notícia, contudo. Como o terceiro elemento do quadro do metrô indica, há farta oferta de informação -ainda que de qualidade duvidosa. Uma pesquisa feita em agosto pela Fundação de Opinião Pública com 1.500 pessoas em 44 das 85 regiões russas mostrou que 92% das pessoas se interessam por notícia, e 43% delas pelo noticiário político (com 51% lideram as histórias sobre tragédias e crimes).
Jornais e revistam somam 400 títulos. O maior deles é a revista mensal "Argumenty i Fakti", que já teve 33 milhões de exemplares circulando nos anos 90, e hoje tem ainda respeitáveis 2,6 milhões de unidades rodadas a cada número. Não há nada parecido com isso no Brasil. A internet ainda engatinha: embora tenha 25% da população sob sua cobertura, o noticiário online só é acompanhado por 8% das pessoas.
Mas a mesma pesquisa mostrou que os jornais nacionais, que com raras exceções também saíram das mãos dos oligarcas e caíram no colo de aliados de Putin, são a fonte de informação preferida de 30% do público. As TVs nacionais registram 90% de preferência. "Elas são imbecilizantes", sentencia Schleinov, confirmando o pragmatismo midiático de Markov. A hora do "rush", como o telejornal da noite, ocorre todo dia útil.


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