São Paulo, sábado, 02 de abril de 2005

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A AGONIA DO PAPA


Durante o dia, Vaticano teve de desmentir notícia de agência italiana da morte do pontífice

Falas de autoridades católicas já revelam desesperança na recuperação da saúde do papa



João Paulo 2º sofre colapso cardíaco, choque séptico e "se apaga serenamente"

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A ROMA

O cardeal polonês Andrea Deskur é tido como o prelado mais próximo do papa João Paulo 2º entre os membros da Cúria Romana, o governo do Vaticano.
É natural que tenha sido ele, mal amanhecia um lindo dia de primavera em Roma, a antecipar o que seria a história das horas seguintes da agonia de Karol Wojtyla, quase 85 anos (o aniversário é em maio), quase 27 dos quais como chefe da Igreja Católica e, como tal, o guia de 1 bilhão de fiéis.
"O papa se apaga serenamente", disse Deskur. E assim foi.
A primeira luz de esperança apagou-se logo às 7h (2h em Brasília), quando Joaquín Navarro-Valls, médico e jornalista espanhol que acompanha João Paulo 2º há 20 anos, leu o primeiro boletim oficial. Falava em "estabilização", em relação à crise da véspera, mas anunciava também que o papa sofrera "um choque séptico e um colapso cardiovascular".
Lágrimas nos olhos, Navarro-Valls disse que a imagem do papa nada tinha a ver com a que acompanhara de perto por duas décadas. Na linguagem do boletim oficial, "a condição do santo padre nesta manhã é muito grave".
Não demorou para que a palavra morte fosse pronunciada, ainda por cima por outro cardeal, o italiano Ersilio Tonini, embora envolta em um raciocínio teológico: "O cristão não pode ter medo de falar a palavra morte".
A agência italiana ADNKronos chegou mesmo a anunciar a morte cerebral do pontífice. A notícia, reproduzida pelos maiores veículos de comunicação do mundo, causou furor por instantes e obrigou o Vaticano a, mais tarde, negar que o papa estivesse morto.
A praça São Pedro, o coração do Vaticano, começava a receber uma massa de turistas. As equipes de TV espalhavam-se principalmente pela via Della Conciliazione, que desemboca em frente à basílica de São Pedro.
A praça era uma babel ideológica. Gianpietro Buongiovanni ficou minutos intermináveis com a vista cravada nas janelas do terceiro andar do Palácio Episcopal, para depois comentar: "Sou comunista. Mas queria homenagear quem nos venceu lealmente".
Dez passos atrás de Buongiovanni, quatro freiras de hábito marrom rezavam o terço, olhos marejados igualmente cravados no terceiro andar. Em volta do obelisco egípcio de 25 metros de altura, um dos marcos da praça São Pedro, as pessoas iam se reunindo, aumentando em número à medida que o dia ia correndo e rezando o terço sem parar.
De Milão, ao norte, chegavam ecos da homília do arcebispo Dionigi Tettamanzi, um dos nomes mais citados como "papabili". "Não é o momento de palavras, mas de um grande silêncio que preencha nossos corações."
O mesmo silêncio proposto pelo governo e aceito pelos partidos políticos na campanha eleitoral para as eleições regionais de domingo: os atos públicos deveriam ser suspensos só hoje, véspera da votação, mas em respeito ao papa o silêncio se fez 24 horas antes.
No terceiro andar do Palácio Episcopal, no entanto, o silêncio era apenas do papa, a ele destinado desde uma traqueostomia sofrida em fevereiro. O próprio João Paulo 2º, conforme contaria depois seu porta-voz Navarro-Valls, lembrou que era sexta-feira, ainda na Quaresma, e pediu que fossem rezadas as orações de praxe.
"O Dio, vieni a salvarmi/Signore, vieni presto in mi aiuto", entoaram cardeais que acompanhavam o papa em seu apartamento. ("Ó Deus, venha salvar-me/Senhor, venha já em meu auxílio").
"Non si turbi il vostro cuore, allelluia"/"Ora io vado al Padre, allelluia", terminaram. Era mais uma luz se apagando: "Não se perturbe o vosso coração, aleluia/Agora vou ao Pai, aleluia".
Terminada a oração, Navarro-Valls voltou à sala de imprensa do Vaticano, na via Della Conciliazione, deixando com o papa, como acompanhantes fixos, apenas seu secretário particular, o também polonês Stanislao Dziwisz, e o médico pessoal de João Paulo 2º, Renato Buzzonetti, além de dois médicos especialistas em reanimação, um cardiologista, um especialista em otorrinolaringologia e duas enfermeiras.
Alternavam-se no terceiro andar poucas altas autoridades da igreja. O prefeito de Roma, Walter Veltroni, disse, com certa razão, que, "hoje, toda Roma está no apartamento do papa, ao lado desse homem maravilhoso".
O segundo boletim médico do dia apagava ainda mais as luzes sobre a saúde do papa.
Por mais que Navarro-Valls insistisse em que "o santo padre continua a estar lúcido e plenamente consciente da gravidade de suas condições", não deixou de relatar que o quadro era de "notável gravidade".
Na praça São Pedro, até os "Papa Boys", grupos juvenis surgidos das Jornadas Mundiais da Juventude, apagavam uma luz. Já não pulavam e cantavam o "Santità/ non mollare mai" (Santidade, não desista nunca).
Seus porta-vozes, bandana amarela na cabeça, preferiam dizer que "é justo que ele se vá serenamente. Tudo o que fez permanecerá para sempre na história".
Era uma espécie de epitáfio prematuro do pontífice, mas muito disseminado. As televisões italianas quase sem exceção suspenderam a programação normal e passaram a transmitir apenas informações ou especiais sobre o papa, claramente impregnados do caráter de balanço de uma vida que se apagava.
O TG7, por exemplo, emitiu o especial "A Dio piacendo" (agradando a Deus), que começava com a imagem do anúncio do nome do novo papa, um Karol Wojtyla que o locutor de 27 anos antes tinha notórias dificuldades em pronunciar. Vinte e sete anos depois, jornalistas do mundo inteiro repetiam Wojtyla sem tropeçar numa única sílaba, tão conhecido se tornara o papa polonês.
Os relatos e os comentários estavam igualmente impregnados da idéia de luz que se apaga. "Tudo pode acontecer em meia hora ou em três dias, mas é inevitável essa triste notícia", dizia, por exemplo, Marco Tosati, do jornal "La Stampa", para um dos telejornais transmitido ao vivo.
Salvatore Ferrigno, taxista, não conseguia esconder o mal-estar com esse tipo de notícia. Com as mãos girando sobre o estômago, como se estivesse embrulhado, dizia: "Nunca senti tanta tristeza por causa de uma personalidade".
Manoela Rivas, espanhola, rezava em voz alta, igualmente com os olhos fixos no terceiro andar do Palácio Episcopal. "Continue a rezar por nós, mesmo quando estiver lá em cima", dizia.
A noite começou a cair, trazendo com ela uma leve brisa fresca, e o apagar das luzes deslocou-se para a basílica de São João Latrão, a primeira igreja de Roma e do mundo (314/335), construída e reconstruída várias vezes.
Lá, o vigário de Roma, Camillo Ruini, celebraria uma missa pelo papa, cercada de uma expectativa lúgubre. Como vigário de Roma, caberá a Ruini anunciar à cidade -e, por extensão, ao mundo- a morte do papa.
A procissão de entrada mal havia começado em São João Latrão quando explodiu mais um boletim -o mais terrível do dia.
Além da pressão baixa, "instaurou-se quadro clínico de insuficiência cardiocirculatória e renal. Os parâmetros biológicos estão notavelmente comprometidos. A respiração tornou-se superficial".
As autoridades que ajudaram a lotar São João Latrão entreolhavam-se e quase dava para adivinhar que se perguntavam se o cardeal Ruini anunciaria ali mesmo a morte de João Paulo 2º.
Chegou bem perto.
O cardeal começou sua homília dizendo que "João Paulo 2º enfrenta a prova mais difícil de sua longa e extraordinária vida, com a mesma serenidade e o abandono confortável nas mãos de Deus". Usando essa mesma idéia da ligação entre papa e Deus, Ruini terminou a homília dizendo que o papa "já vê e já toca o Senhor".
Outra notícia que corria no momento, a de que o pontífice perdera a consciência, era negada pelo Vaticano.
Minutos antes das 20h (15h em Brasília), acenderam-se as luzes de dois apartamentos no terceiro andar do Vaticano, exatamente aqueles de cujas janelas o papa costuma saudar os fiéis concentrados na praça -são os aposentos de seu secretário particular.
Os especialistas em história da Igreja, que abundam nestes dias em Roma, e os jornalistas mais velhos e de boa memória tremeram: o anúncio da morte de João 23, há 40 anos, foi precedido precisamente do acender de luzes no mesmíssimo local.
Por isso ou por pura precipitação, algumas emissoras estrangeiras de televisão, a começar da TV estatal russa, chegaram a anunciar que João Paulo 2º morrera.
As luzes do terceiro andar continuaram acesas, enquanto, lá embaixo, na praça, uma massa humana que os "carabinieri" -a polícia italiana- calculava em 30 mil pessoas, acompanhava a reza do rosário.
Era precisamente para pedir que a história deste 1º de abril terminasse mesmo, como previra o cardeal Deskur, com o sereno apagar de João Paulo 2º.
O arcebispo Angelo Comastri, vigário-geral do Papa para o Vaticano, presidindo a cerimônia, antecipava o definitivo apagar das luzes, ao dizer: "Nesta noite, se abrem para João Paulo 2º as portas de Cristo". Pediu que a massa, ao voltar para a casa, "deixasse o coração aqui, com o papa".
Foi mais que atendido pelas pessoas: ficaram os corações, porque os corpos ficaram também. Pouca gente se moveu.
Voltou aquele silêncio "inatural", quebrado apenas pelo delicado som da água que caía das duas fontes tricentenárias da praça.
Um som sereno como o apagar da vida de Karol Wojtyla.


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