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A AGONIA DO PAPA
Durante o dia, Vaticano teve de desmentir
notícia de agência italiana da morte do pontífice
Falas de autoridades católicas já revelam
desesperança na recuperação da saúde do papa
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João Paulo 2º sofre colapso cardíaco, choque séptico e "se apaga serenamente"
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A ROMA
O cardeal polonês Andrea Deskur é tido como o prelado mais
próximo do papa João Paulo 2º
entre os membros da Cúria Romana, o governo do Vaticano.
É natural que tenha sido ele, mal
amanhecia um lindo dia de primavera em Roma, a antecipar o
que seria a história das horas seguintes da agonia de Karol Wojtyla, quase 85 anos (o aniversário é
em maio), quase 27 dos quais como chefe da Igreja Católica e, como tal, o guia de 1 bilhão de fiéis.
"O papa se apaga serenamente",
disse Deskur. E assim foi.
A primeira luz de esperança
apagou-se logo às 7h (2h em Brasília), quando Joaquín Navarro-Valls, médico e jornalista espanhol que acompanha João Paulo
2º há 20 anos, leu o primeiro boletim oficial. Falava em "estabilização", em relação à crise da véspera, mas anunciava também que o
papa sofrera "um choque séptico
e um colapso cardiovascular".
Lágrimas nos olhos, Navarro-Valls disse que a imagem do papa
nada tinha a ver com a que acompanhara de perto por duas décadas. Na linguagem do boletim oficial, "a condição do santo padre
nesta manhã é muito grave".
Não demorou para que a palavra morte fosse pronunciada, ainda por cima por outro cardeal, o
italiano Ersilio Tonini, embora
envolta em um raciocínio teológico: "O cristão não pode ter medo
de falar a palavra morte".
A agência italiana ADNKronos
chegou mesmo a anunciar a morte cerebral do pontífice. A notícia,
reproduzida pelos maiores veículos de comunicação do mundo,
causou furor por instantes e obrigou o Vaticano a, mais tarde, negar que o papa estivesse morto.
A praça São Pedro, o coração do
Vaticano, começava a receber
uma massa de turistas. As equipes
de TV espalhavam-se principalmente pela via Della Conciliazione, que desemboca em frente à
basílica de São Pedro.
A praça era uma babel ideológica. Gianpietro Buongiovanni ficou minutos intermináveis com a
vista cravada nas janelas do terceiro andar do Palácio Episcopal,
para depois comentar: "Sou comunista. Mas queria homenagear
quem nos venceu lealmente".
Dez passos atrás de Buongiovanni, quatro freiras de hábito
marrom rezavam o terço, olhos
marejados igualmente cravados
no terceiro andar. Em volta do
obelisco egípcio de 25 metros de
altura, um dos marcos da praça
São Pedro, as pessoas iam se reunindo, aumentando em número à
medida que o dia ia correndo e rezando o terço sem parar.
De Milão, ao norte, chegavam
ecos da homília do arcebispo Dionigi Tettamanzi, um dos nomes
mais citados como "papabili".
"Não é o momento de palavras,
mas de um grande silêncio que
preencha nossos corações."
O mesmo silêncio proposto pelo governo e aceito pelos partidos
políticos na campanha eleitoral
para as eleições regionais de domingo: os atos públicos deveriam
ser suspensos só hoje, véspera da
votação, mas em respeito ao papa
o silêncio se fez 24 horas antes.
No terceiro andar do Palácio
Episcopal, no entanto, o silêncio
era apenas do papa, a ele destinado desde uma traqueostomia sofrida em fevereiro. O próprio João
Paulo 2º, conforme contaria depois seu porta-voz Navarro-Valls,
lembrou que era sexta-feira, ainda
na Quaresma, e pediu que fossem
rezadas as orações de praxe.
"O Dio, vieni a salvarmi/Signore, vieni presto in mi aiuto", entoaram cardeais que acompanhavam o papa em seu apartamento.
("Ó Deus, venha salvar-me/Senhor, venha já em meu auxílio").
"Non si turbi il vostro cuore,
allelluia"/"Ora io vado al Padre,
allelluia", terminaram. Era mais
uma luz se apagando: "Não se
perturbe o vosso coração, aleluia/Agora vou ao Pai, aleluia".
Terminada a oração, Navarro-Valls voltou à sala de imprensa do
Vaticano, na via Della Conciliazione, deixando com o papa, como acompanhantes fixos, apenas
seu secretário particular, o também polonês Stanislao Dziwisz, e
o médico pessoal de João Paulo
2º, Renato Buzzonetti, além de
dois médicos especialistas em reanimação, um cardiologista, um
especialista em otorrinolaringologia e duas enfermeiras.
Alternavam-se no terceiro andar poucas altas autoridades da
igreja. O prefeito de Roma, Walter
Veltroni, disse, com certa razão,
que, "hoje, toda Roma está no
apartamento do papa, ao lado
desse homem maravilhoso".
O segundo boletim médico do
dia apagava ainda mais as luzes
sobre a saúde do papa.
Por mais que Navarro-Valls insistisse em que "o santo padre
continua a estar lúcido e plenamente consciente da gravidade de
suas condições", não deixou de
relatar que o quadro era de "notável gravidade".
Na praça São Pedro, até os "Papa Boys", grupos juvenis surgidos
das Jornadas Mundiais da Juventude, apagavam uma luz. Já não
pulavam e cantavam o "Santità/
non mollare mai" (Santidade, não
desista nunca).
Seus porta-vozes, bandana
amarela na cabeça, preferiam dizer que "é justo que ele se vá serenamente. Tudo o que fez permanecerá para sempre na história".
Era uma espécie de epitáfio prematuro do pontífice, mas muito
disseminado. As televisões italianas quase sem exceção suspenderam a programação normal e passaram a transmitir apenas informações ou especiais sobre o papa,
claramente impregnados do caráter de balanço de uma vida que se
apagava.
O TG7, por exemplo, emitiu o
especial "A Dio piacendo" (agradando a Deus), que começava
com a imagem do anúncio do nome do novo papa, um Karol
Wojtyla que o locutor de 27 anos
antes tinha notórias dificuldades
em pronunciar. Vinte e sete anos
depois, jornalistas do mundo inteiro repetiam Wojtyla sem tropeçar numa única sílaba, tão conhecido se tornara o papa polonês.
Os relatos e os comentários estavam igualmente impregnados
da idéia de luz que se apaga. "Tudo pode acontecer em meia hora
ou em três dias, mas é inevitável
essa triste notícia", dizia, por
exemplo, Marco Tosati, do jornal
"La Stampa", para um dos telejornais transmitido ao vivo.
Salvatore Ferrigno, taxista, não
conseguia esconder o mal-estar
com esse tipo de notícia. Com as
mãos girando sobre o estômago,
como se estivesse embrulhado,
dizia: "Nunca senti tanta tristeza
por causa de uma personalidade".
Manoela Rivas, espanhola, rezava em voz alta, igualmente com os
olhos fixos no terceiro andar do
Palácio Episcopal. "Continue a rezar por nós, mesmo quando estiver lá em cima", dizia.
A noite começou a cair, trazendo com ela uma leve brisa fresca, e
o apagar das luzes deslocou-se para a basílica de São João Latrão, a
primeira igreja de Roma e do
mundo (314/335), construída e reconstruída várias vezes.
Lá, o vigário de Roma, Camillo
Ruini, celebraria uma missa pelo
papa, cercada de uma expectativa
lúgubre. Como vigário de Roma,
caberá a Ruini anunciar à cidade
-e, por extensão, ao mundo- a
morte do papa.
A procissão de entrada mal havia começado em São João Latrão
quando explodiu mais um boletim -o mais terrível do dia.
Além da pressão baixa, "instaurou-se quadro clínico de insuficiência cardiocirculatória e renal.
Os parâmetros biológicos estão
notavelmente comprometidos. A
respiração tornou-se superficial".
As autoridades que ajudaram a
lotar São João Latrão entreolhavam-se e quase dava para adivinhar que se perguntavam se o cardeal Ruini anunciaria ali mesmo a
morte de João Paulo 2º.
Chegou bem perto.
O cardeal começou sua homília
dizendo que "João Paulo 2º enfrenta a prova mais difícil de sua
longa e extraordinária vida, com a
mesma serenidade e o abandono
confortável nas mãos de Deus".
Usando essa mesma idéia da ligação entre papa e Deus, Ruini terminou a homília dizendo que o
papa "já vê e já toca o Senhor".
Outra notícia que corria no momento, a de que o pontífice perdera a consciência, era negada pelo
Vaticano.
Minutos antes das 20h (15h em
Brasília), acenderam-se as luzes
de dois apartamentos no terceiro
andar do Vaticano, exatamente
aqueles de cujas janelas o papa
costuma saudar os fiéis concentrados na praça -são os aposentos de seu secretário particular.
Os especialistas em história da
Igreja, que abundam nestes dias
em Roma, e os jornalistas mais
velhos e de boa memória tremeram: o anúncio da morte de João
23, há 40 anos, foi precedido precisamente do acender de luzes no
mesmíssimo local.
Por isso ou por pura precipitação, algumas emissoras estrangeiras de televisão, a começar da TV
estatal russa, chegaram a anunciar que João Paulo 2º morrera.
As luzes do terceiro andar continuaram acesas, enquanto, lá embaixo, na praça, uma massa humana que os "carabinieri" -a
polícia italiana- calculava em 30
mil pessoas, acompanhava a reza
do rosário.
Era precisamente para pedir
que a história deste 1º de abril terminasse mesmo, como previra o
cardeal Deskur, com o sereno
apagar de João Paulo 2º.
O arcebispo Angelo Comastri,
vigário-geral do Papa para o Vaticano, presidindo a cerimônia, antecipava o definitivo apagar das
luzes, ao dizer: "Nesta noite, se
abrem para João Paulo 2º as portas de Cristo". Pediu que a massa,
ao voltar para a casa, "deixasse o
coração aqui, com o papa".
Foi mais que atendido pelas
pessoas: ficaram os corações, porque os corpos ficaram também.
Pouca gente se moveu.
Voltou aquele silêncio "inatural", quebrado apenas pelo delicado som da água que caía das duas
fontes tricentenárias da praça.
Um som sereno como o apagar
da vida de Karol Wojtyla.
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