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Por dentro de Guantánamo
IURI DANTAS
ENVIADO A GUANTÁNAMO
O Campo Delta, na baía de
Guantánamo (Cuba) -onde são
confinados desde 2001 suspeitos
presos na "guerra ao terror", empreendida pelos EUA-, aparenta
ter instalações razoavelmente
confortáveis, boa comida, guardas compreensivos e profissionais. É uma armadilha fácil acreditar no que se vê. Uma avaliação
mais atenta deixa muitas perguntas sem resposta e a sensação de se
estar em um teatro do absurdo.
A reportagem da Folha passou
dois dias e três noites da última
semana na porção americana de
Cuba, cerca de 400 quilômetros a
leste de Havana. Vivem ali cerca
de 440 detentos, segundo o Pentágono. Há suspeitas de abuso e tortura, de acordo com relatos de
suspeitos já libertados a entidades
de direitos humanos. A ONU pede o fechamento da prisão.
Os EUA possuem uma base na
ilha desde 1903, quando alugaram
a área do governo cubano. A história do centro de detenção começou em 2001, com o Campo X-Ray, hoje abandonado. As instalações foram construídas após o 11
de Setembro para receber os chamados "combatentes inimigos"
do Afeganistão e suspeitos de pertencer à rede terrorista Al Qaeda.
O campo se esconde numa área
rodeada por montanhas. O silêncio perturbador é quebrado pelo
zumbido de moscas, quase indicando que a morte passou por ali.
Óbitos não oficiais, como as torturas e o tratamento desumano.
Pressão
"Vendo isso hoje, posso imaginar a pressão sobre os militares
naqueles dias. Não posso dizer
com certeza que não ocorreram
coisas suspeitas, mas quase dá para compreender olhando para este lugar", comenta um capitão do
Exército, que não se identifica para proteger sua família.
As celas, quase jaulas com paredes de arame, estão largadas ao
crescimento da vegetação. Quatro
casas de madeira lembram os interrogatórios a que os suspeitos
foram submetidos, quando técnicas discutíveis teriam sido adotadas para extrair informações. Em
abril de 2002, o campo foi desativado por suspeitas de abuso. Dali,
os presos foram transferidos para
o Campo Delta, à beira do oceano,
subdividido em campos modernos, numerados de 1 a 5.
À porta, um silêncio algo mórbido que contribui para a atmosfera anti-séptica do lugar. Não há
cheiro, senão o do oceano. Depois
do portão, percebe-se o Café Caribe, uma loja de conveniências, e a
entrada dos campos 2 e 3.
A comandante Catie Hanft
apresenta o espaço. Lembraria
Lynndie England, a soldado morena que foi presa pelo abuso de
prisioneiros em Abu Ghraib, não
fosse ruiva. As celas são em verde,
para acalmar, e preto, que facilita
a identificação de movimentos.
Os soldados respeitariam momentos de oração. Os detentos teriam o privilégio de se esconder
com um colchonete de espuma ao
usar a fossa com água corrente
nas celas, como máximo de privacidade. Recebem alimentação
quatro vezes ao dia.
Têm direito a duas horas de recreação -ergometria, futebol,
xadrez. Na parede, um boletim
em árabe, pashtu, hindu e farsi
com notícias do mundo. E as regras do campo. "Não há conexão
com uma prisão, porque isso
pressupõe reabilitação e não há
esse tipo de coisa para as pessoas
que estão aqui", diz a oficial.
Quanto mais Hanft explica os
procedimentos, mais passa a sensação de que nada daquilo realmente existe. A desconfiança reside em uma questão específica: os
interrogatórios. Quem é responsável? Que técnicas são adotadas?
Nenhuma dessas perguntas será respondida. Não se pode entrevistar interrogadores ou detentos.
"Deve ser medo do desconhecido
que faz todo mundo ficar pensando em tortura. Eu não sei, você
também não. Ninguém sabe. Não
é porque ninguém sabe que precisamos esperar o pior", diz a mestre-de-armas Jennifer, 21, nome
fictício.
Guardas como ela têm contato
diário com os detentos. Fornecem
itens pessoais -roupa, chinelos,
escova e pasta de dentes- e os
itens de conforto, entre os quais o
tapete, óleos, cordão de contas e a
"boina" usados por muçulmanos
durante as orações. Se descumprirem as regras do campo, perdem o direito aos itens, o que é
visto como abuso por organizações humanitárias. As celas estão
vazias: os suspeitos aproveitam o
momento de recreação lá fora.
Greve
No campo 3, os militares modificam a nomenclatura para escamotear suas práticas. Não há solitária, mas segregação disciplinar.
Nem alimentação forçada, mas
procedimentos clínicos, nos quatro casos atuais de greve de fome.
Para o médico responsável pelo
hospital, o procedimento de alimentação forçada é administrado
de forma "gentil".
O campo 4 se destina aos mais
comportados. No centro, uma
quadra de basquete, embora os
presos sejam mais adeptos do futebol. Recebem Gatorade e barras
de cereal. Dormem em alojamentos de dez camas e podem passar
o dia fora em uma área comum.
"Somos vigilantes sobre as mudanças em seu comportamento.
Podem estar deprimidos ou ter
problemas mentais. Além disso,
muitos deles conhecem as condições em seus países e preferem
continuar aqui, onde recebem
bom tratamento", afirma Hanft.
Os detentos estão ao longe, separados por uma grade. Vestem
branco, conversam. Olham para o
grupo de jornalistas e militares
que quebra sua rotina. A maioria
não questiona mais a detenção
sem julgamento. Quase 93% se
comportam, segundo Hanft.
O campo 5 é o mais seguro,
com sistemas automatizados.
Estão ali os presos de maior
valor para a inteligência e os
de pior comportamento. Os
guardas vestem coletes à
prova de balas, embora ninguém
em tese use armas de fogo. Ali, há
"100% de segregação dos dormitórios" -celas individuais sem
contato umas com as outras. Um
prisioneiro percebe os jornalistas
e ameaça: "Saiam daqui, a Al Qaeda vai matar vocês, já viram o poder do islã, infiéis". Por semana,
têm direito a três banhos de sol de
10 minutos. Tomam banho todos
os dias, mas ficam o resto do tempo confinados.
Nos campos 1 e 2, onde a visita
não é autorizada, os prisioneiros
teriam o mesmo tratamento, com
algumas variações de acordo com
seu comportamento.
Após o tour, percebe-se que tudo foi programado. Discursos,
instalações e ambiente estéril para a imprensa. Uma vez ali, é possível vislumbrar quanto a verdade
está distante da aparência, e
quanto a segurança reforçada impede a chegada da Justiça, a mais
necessária visitante.
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