São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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Por dentro de Guantánamo

IURI DANTAS
ENVIADO A GUANTÁNAMO

O Campo Delta, na baía de Guantánamo (Cuba) -onde são confinados desde 2001 suspeitos presos na "guerra ao terror", empreendida pelos EUA-, aparenta ter instalações razoavelmente confortáveis, boa comida, guardas compreensivos e profissionais. É uma armadilha fácil acreditar no que se vê. Uma avaliação mais atenta deixa muitas perguntas sem resposta e a sensação de se estar em um teatro do absurdo.
A reportagem da Folha passou dois dias e três noites da última semana na porção americana de Cuba, cerca de 400 quilômetros a leste de Havana. Vivem ali cerca de 440 detentos, segundo o Pentágono. Há suspeitas de abuso e tortura, de acordo com relatos de suspeitos já libertados a entidades de direitos humanos. A ONU pede o fechamento da prisão.
Os EUA possuem uma base na ilha desde 1903, quando alugaram a área do governo cubano. A história do centro de detenção começou em 2001, com o Campo X-Ray, hoje abandonado. As instalações foram construídas após o 11 de Setembro para receber os chamados "combatentes inimigos" do Afeganistão e suspeitos de pertencer à rede terrorista Al Qaeda. O campo se esconde numa área rodeada por montanhas. O silêncio perturbador é quebrado pelo zumbido de moscas, quase indicando que a morte passou por ali. Óbitos não oficiais, como as torturas e o tratamento desumano.

Pressão
"Vendo isso hoje, posso imaginar a pressão sobre os militares naqueles dias. Não posso dizer com certeza que não ocorreram coisas suspeitas, mas quase dá para compreender olhando para este lugar", comenta um capitão do Exército, que não se identifica para proteger sua família.
As celas, quase jaulas com paredes de arame, estão largadas ao crescimento da vegetação. Quatro casas de madeira lembram os interrogatórios a que os suspeitos foram submetidos, quando técnicas discutíveis teriam sido adotadas para extrair informações. Em abril de 2002, o campo foi desativado por suspeitas de abuso. Dali, os presos foram transferidos para o Campo Delta, à beira do oceano, subdividido em campos modernos, numerados de 1 a 5.
À porta, um silêncio algo mórbido que contribui para a atmosfera anti-séptica do lugar. Não há cheiro, senão o do oceano. Depois do portão, percebe-se o Café Caribe, uma loja de conveniências, e a entrada dos campos 2 e 3.
A comandante Catie Hanft apresenta o espaço. Lembraria Lynndie England, a soldado morena que foi presa pelo abuso de prisioneiros em Abu Ghraib, não fosse ruiva. As celas são em verde, para acalmar, e preto, que facilita a identificação de movimentos. Os soldados respeitariam momentos de oração. Os detentos teriam o privilégio de se esconder com um colchonete de espuma ao usar a fossa com água corrente nas celas, como máximo de privacidade. Recebem alimentação quatro vezes ao dia.
Têm direito a duas horas de recreação -ergometria, futebol, xadrez. Na parede, um boletim em árabe, pashtu, hindu e farsi com notícias do mundo. E as regras do campo. "Não há conexão com uma prisão, porque isso pressupõe reabilitação e não há esse tipo de coisa para as pessoas que estão aqui", diz a oficial.
Quanto mais Hanft explica os procedimentos, mais passa a sensação de que nada daquilo realmente existe. A desconfiança reside em uma questão específica: os interrogatórios. Quem é responsável? Que técnicas são adotadas?
Nenhuma dessas perguntas será respondida. Não se pode entrevistar interrogadores ou detentos. "Deve ser medo do desconhecido que faz todo mundo ficar pensando em tortura. Eu não sei, você também não. Ninguém sabe. Não é porque ninguém sabe que precisamos esperar o pior", diz a mestre-de-armas Jennifer, 21, nome fictício.
Guardas como ela têm contato diário com os detentos. Fornecem itens pessoais -roupa, chinelos, escova e pasta de dentes- e os itens de conforto, entre os quais o tapete, óleos, cordão de contas e a "boina" usados por muçulmanos durante as orações. Se descumprirem as regras do campo, perdem o direito aos itens, o que é visto como abuso por organizações humanitárias. As celas estão vazias: os suspeitos aproveitam o momento de recreação lá fora.

Greve
No campo 3, os militares modificam a nomenclatura para escamotear suas práticas. Não há solitária, mas segregação disciplinar. Nem alimentação forçada, mas procedimentos clínicos, nos quatro casos atuais de greve de fome.
Para o médico responsável pelo hospital, o procedimento de alimentação forçada é administrado de forma "gentil".
O campo 4 se destina aos mais comportados. No centro, uma quadra de basquete, embora os presos sejam mais adeptos do futebol. Recebem Gatorade e barras de cereal. Dormem em alojamentos de dez camas e podem passar o dia fora em uma área comum. "Somos vigilantes sobre as mudanças em seu comportamento. Podem estar deprimidos ou ter problemas mentais. Além disso, muitos deles conhecem as condições em seus países e preferem continuar aqui, onde recebem bom tratamento", afirma Hanft.
Os detentos estão ao longe, separados por uma grade. Vestem branco, conversam. Olham para o grupo de jornalistas e militares que quebra sua rotina. A maioria não questiona mais a detenção sem julgamento. Quase 93% se comportam, segundo Hanft.
O campo 5 é o mais seguro, com sistemas automatizados. Estão ali os presos de maior valor para a inteligência e os de pior comportamento. Os guardas vestem coletes à prova de balas, embora ninguém em tese use armas de fogo. Ali, há "100% de segregação dos dormitórios" -celas individuais sem contato umas com as outras. Um prisioneiro percebe os jornalistas e ameaça: "Saiam daqui, a Al Qaeda vai matar vocês, já viram o poder do islã, infiéis". Por semana, têm direito a três banhos de sol de 10 minutos. Tomam banho todos os dias, mas ficam o resto do tempo confinados.
Nos campos 1 e 2, onde a visita não é autorizada, os prisioneiros teriam o mesmo tratamento, com algumas variações de acordo com seu comportamento.
Após o tour, percebe-se que tudo foi programado. Discursos, instalações e ambiente estéril para a imprensa. Uma vez ali, é possível vislumbrar quanto a verdade está distante da aparência, e quanto a segurança reforçada impede a chegada da Justiça, a mais necessária visitante.


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