São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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ARTIGO

Para compreender as revoltas no Iraque

SAMI ZUBAIDA

A causa básica da turbulência atual no Iraque é a insatisfação e a desilusão de grande parte da população. Um ano após a ocupação e a derrubada do regime de Saddam Hussein pelas forças da coalizão liderada pelos Estados Unidos, a grande maioria dos iraquianos está vivendo em situação pior do que antes.
A pobreza, a insegurança, as deficiências na infra-estrutura deficiente e, sobretudo, o desemprego, tudo aumentou de maneira maciça. Essa é uma população que sempre dependeu do governo para seus empregos e sua subsistência. Por pior e mais opressor que fosse, o governo sempre atendia a essas necessidades.
O primeiro -entre muitos- erro das autoridades de ocupação foi ter dissolvido o Exército, composto de cerca de 450 mil homens, sem salários ou pensões, mas deixando que os soldados levassem suas armas.
Estima-se que 2 milhões de iraquianos dependessem do Exército e dos salários que ele pagava. Sua dissolução multiplicou o desemprego e a miséria e contribuiu para dar munição à insurgência. Um ano já se passou, e essas frustrações alimentam sentimentos cada vez mais agudos de oposição à ocupação, mesmo entre os setores que, num primeiro momento, eram favoráveis a ela, e também entre os muitos que só querem viver tranqüilamente, mas não conseguem.
A investida americana recente contra Fallujah (região oeste do Iraque) e o massacre de civis na cidade provocaram um aumento enorme na raiva e no ultraje sentidos em todos os setores da população iraquiana. Ela despertou um sentimento forte de nacionalismo iraquiano.
Mas existem elementos diversos e contraditórios em operação por baixo da superfície. As duas insurreições recentes -uma no chamado Triângulo Sunita e outra dos seguidores xiitas de Moqtada al Sadr- divergem em pontos cruciais.
A insurgência sunita é niilista. Ela não possui programa político aparente nem tampouco anuncia seus protagonistas. Visa causar o máximo possível de danos e confusão e impedir o estabelecimento da ordem e da normalidade. Suas duas alas, a saddamista e a islâmica, têm agendas distintas.
Os saddamistas querem pressionar os Estados Unidos a deixar o país, de maneira que tenham a chance de restabelecer sua hegemonia antiga. Os islâmicos querem que as forças americanas permaneçam, para que possam golpeá-las.
Liderada por Moqtada al Sadr, a insurreição xiita é política na medida em que visa fazer manobras em busca do poder, com um programa e um conjunto de reivindicações próprios.
Al Sadr é uma figura nova e arrogante na paisagem política xiita. Ele é jovem e destituído de autoridade ou carisma religiosos, exceto o que herdou de seu pai, e mesmo essa herança é discutida.
O sucessor designado de Al Sadr, pai, é Kadhim al Haeri, que vive na cidade iraniana de Qum e é ideologicamente khomeinista [seguidor do aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da Revolução Islâmica do Irã em 1979 e morto em 1989], mas não faz parte do establishment religioso-político principal do Irã. A convivência entre Haeri e Al Sadr, filho, é complicada.
Os escritórios e agentes de Moqtada al Sadr no Iraque continuam a evocar a autoridade de seu pai, já morto, inclusive cobrando tarifas e exercendo autoridade em nome dele.
Isso é algo que não se justifica na doutrina xiita: a autoridade de um "mujtahid" (aquele que aplica a lei islâmica) vem dele próprio, e os fiéis devem seguir um clérigo vivo. Moqtada al Sadr procura passar por cima desse status ambíguo e enfrentar seu rival aceito, para isso adotando uma postura militante.
Moqtada al Sadr adota uma postura política e militante contra o grande aiatolá Ali al Sistani, a autoridade principal dos xiitas iraquianos.
Al Sistani evita envolver-se diretamente na política. Al Sadr critica o aiatolá implicitamente, alegando que ele é persa e que um líder iraquiano precisa ser iraquiano e árabe.
Na realidade, Moqtada al Sadr adota posição khomeinista na política, advogando um Estado islâmico governado por clérigos, mas, ao mesmo tempo, uma posição antiiraniana: o Iraque xiita para os iraquianos.
A família Al Hakim, líder do Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque (CSRII), que exerce papel de liderança na política iraquiana e ocupa cargos no Conselho de Governo Iraquiano instituído pelos Estados Unidos, é igualmente ""maculada" pelo fato de ter conexões iranianas, mas não está claro que siga as orientações iranianas oficiais.
Na realidade, todos os grupos xiitas têm conexões iranianas, mas não necessariamente sofrem a influência do governo iraniano, nem são subordinados nas relações que mantêm com seus equivalentes iranianos.
Um dos objetivos principais de Moqtada al Sadr vem sendo o de controlar os santuários das cidades sagradas, geradores de receita. Seus seguidores já travaram muitas batalhas com facções rivais, mas com poucos êxitos.
Informações locais indicam que a base de apoio de Al Sadr entre os xiitas está nas favelas pobres de Bagdá, especialmente entre a população jovem de Sadr City.
Essa área sempre foi o centro da agitação radical. Ela foi construída, com forte apoio da esquerda, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, como o Madinat al Thawra, ou Cidade da Revolução, pelo general Abd al Karim Qasim, que em 1958 derrubou a monarquia iraquiana. Tornou-se reduto do Partido Comunista Iraquiano e foi um dos principais centros de resistência a uma tentativa de golpe do Baath em 1963, ocasionando um massacre. Saddam Hussein apropriou-se da área, batizando-a de Saddam City. Em 2003, a região foi novamente rebatizada, passando a se chamar Sadr City, em homenagem a Mohammed Sadeq al Sadr (morto por Saddam em 1999), o pai de Moqtada.
Mas observadores bem informados acham que, numa eleição livre nesse distrito, a base de apoio a Al Sadr provaria ser limitada. Isso também se aplica a partes de Basra e outras cidades do sul do país, onde os seguidores de Al Sadr ganham atenção em razão de seu comportamento militante e por intimidarem a população local (obrigando as mulheres a adotar o véu islâmico, fechando à força casas que vendem bebidas alcoólicas e outros locais de entretenimento).

Manobras políticas
Embora ele próprio renuncie a qualquer ambição política, o aiatolá Al Sistani adotou uma posição de liderança que visa garantir que os xiitas não voltem a ser relegados ao segundo plano.
As críticas que Al Sistani expressa publicamente às cláusulas da Constituição interina que conferem poder de veto aos curdos e sunitas têm por objetivo transparente estabelecer o governo da maioria xiita. Essa linha foi largamente seguida por outros partidos e facções xiitas.
Moqtada al Sadr já deve ter calculado que o processo de transferência do poder para um governo iraquiano, seguido por eleições, vai apenas marginalizá-lo ainda mais.
Os outros partidos xiitas estão muito mais bem posicionados em termos de suas bases eleitorais, além de serem mais bem financiados. Ademais, há indicativos de que, numa eleição com voto secreto, muitos xiitas talvez queiram evitar a instauração de um governo religioso, optando por votar em candidatos seculares. Um sinal disso veio da eleição recente para uma Câmara Municipal na região de Nassiriah (sul), na qual os candidatos religiosos ficaram com a minoria dos votos.
Essas considerações constituem incentivos para incrementar a única dimensão positiva de Moqtada al Sadr: a ação militante contra a ocupação e o processo político que ela engendra.
Os americanos o ajudaram ao lhe entregar de bandeja um pretexto para isso, ao fecharem seu jornal semanal "Al Hawza" no final de março -sob a acusação de incitação a atos de sabotagem contra a coalizão-, prender seguidores importantes do clérigo e emitir (por meio de um juiz iraquiano) um mandado de prisão contra o próprio Al Sadr, acusado de homicídio.
O que os americanos fizeram, de fato, foi declarar guerra aos seguidores de Al Sadr, proporcionando a estes incentivos ainda maiores para a intensificação da militância. Tudo isso coincidiu com o levante em Fallujah, conferindo mais ímpeto e credibilidade a Moqtada Al Sadr.

A insurgência sunita
Os sunitas iraquianos são diversificados. Nem todos, certamente, apóiam ou estão envolvidos com a insurgência no chamado Triângulo Sunita.
Mas essa região abriga populações que já eram pobres e excluídas, tribais e camponesas, radicalmente distintas da burguesia sunita urbana de Bagdá e Mossul (cidade no norte do país de maioria sunita), das famílias mais importantes das tribos e das velhas elites sunitas proprietárias de terras, que mantinham vínculos com os otomanos e que dominaram a política iraquiana durante a monarquia.
Os habitantes do Triângulo Sunita chegaram à política passando pelo Exército, o refúgio dos jovens de baixa renda na primeira metade do século 20. Os líderes dos golpes de Estado baathistas e nacionalistas saíram desses grupos de baixa renda e, através de Saddam e de sua política tribal, acabaram por controlar o partido e o Estado. Muitos dos funcionários armados e treinados do Estado e das Forças Armadas de Saddam vieram dessa região.
A insurreição deles é movida pelo ultraje provocado pela perda de seus enormes privilégios e poder. Os sentimentos sunitas (não necessariamente a religiosidade) e o antagonismo em relação aos americanos e aos xiitas transformaram essa região em lugar aberto aos elementos islâmicos ou jihadistas, mesmo que nem sempre sejam ideologicamente compatíveis.
A fúria é exacerbada pela tradição tribal da vendeta de sangue, que obriga muitos a buscarem vingança pelos seus parentes mortos em ações americanas e pelas humilhações causadas pelas forças de ocupação.

União xiita e sunita?
A morte e a destruição semeadas recentemente em Fallujah pelas forças americanas -aparentemente num ato de vingança avassaladora contra a população da cidade inteira- alimentaram o ultraje e a revolta em todo o Iraque, mesmo entre os xiitas sectários que, normalmente, não nutririam simpatias por seus adversários sunitas.
Nas circunstâncias que se criaram, os rivais xiitas e adversários de Al Sadr foram reduzidos à impotência. Eles não podem ser vistos como se estivessem tomando o partido dos americanos contra Al Sadr.
O máximo que Al Sistani pôde fazer foi pedir calma a ambos os lados e buscar soluções políticas negociadas. Al Sadr só poderá voltar a ser deixado à margem dos acontecimentos se o processo político de transferência do governo, e, em seguida, da realização de eleições, puder ser retomado. Qualquer cooperação entre as duas alas da insurgência provavelmente será apenas temporária e tática.
Ambos os lados pedem um governo islâmico, mas o governo de quem? A lei islâmica e o governo islâmico são conceitos indeterminados, e, na prática, constituem caminhos para o exercício do poder e da coerção pelas autoridades religiosas.
Nessas circunstâncias, não é possível ter duas autoridades religiosas (e há muito mais do que dois rivais potenciais). Assim, a busca por um governo religioso certamente levará a uma luta em torno de quem irá governar.
Isso não significa que os iraquianos sejam fadados ao sectarismo: a história do Iraque no século 20 inclui muitos episódios em que indivíduos e grupos de origem religiosa e comunitária distintas empreenderam projetos comuns, políticos, sociais, literários e artísticos, especialmente dentro dos movimentos nacionalista e comunista.
Mas esses elementos não participavam na condição de xiitas ou sunitas, cristãos ou judeus, e sim como cidadãos e membros de uma sociedade comum, unidos por interesses e ideologias.
Será que é demais esperar que esse espírito possa voltar a se manifestar?


Sami Zubaida nasceu no Iraque. É professor de sociologia no Birkbeck College, na Universidade de Londres. Entre seus livros estão "Islam, the people and the State" (islã, o povo e o Estado, 1993), "Culinary cultures of the Middle East" (culturas culinárias do Oriente Médio, 1994) e "Law and power in the islamic world" (Lei e poder no mundo islâmico, 2003).

Tradução de Clara Allain


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