UOL


São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A Nobel da Paz Rigoberta Menchú diz que exclusão, marginalização e pobreza unem índios latino-americanos

Movimento crescerá, prevê líder indígena

Lou Dematteis - 21.out.2003/Reuters
Huaoranis protestam diante do Fórum de Lago Agrio, no Equador, contra a empresa ChevronTexaco, acusada de poluir a região


DA REDAÇÃO

A ativista guatemalteca Rigoberta Menchú Tum, 43, ganhadora do Nobel da Paz em 1992, acredita que a Bolívia seja, ao lado do Equador, um exemplo de que a participação política indígena está crescendo, com a possibilidade de se espalhar para outros países.
Em entrevista à Folha por e-mail do México, onde mora e dirige a fundação que leva o seu nome, Menchú, da etnia maia-quiché, fez um balanço dos problemas e avanços da questão indígena na América Latina. (FM)
 
Folha - Os índios bolivianos lideraram as manifestações que resultaram na mudança de governo. A sra. acredita que esse sucesso tenha um impacto no movimento indígena ou trata-se de uma dinâmica de caráter local?
Rigoberta Menchú -
O fenômeno deve ser visto de duas formas. Primeiro, demonstra que os governantes não podem agir de costas para a população e que as decisões devem passar por uma consulta. Hoje em dia, não é possível trair o apoio popular conquistado nas urnas, sobretudo em temas tão importantes como o manejo dos recursos naturais. Durante séculos, os povos indígenas temos sido os guardiões desses recursos. Por isso, é ilegítimo, imoral e ilegal que se decida sobre sua utilização sem consultar esses povos.
Essa crise também reflete a pujante participação política dos indígenas. Temos conquistado espaços importantes, que aos poucos estão aumentando em todo o continente latino-americano. O Equador é uma amostra, e agora é a Bolívia. Acredito que essa participação se estenda para países como México, Guatemala e Chile, entre outros.

Folha - O líder aimará Felipe Quispe disse que o movimento boliviano é um "ensaio" e propõe uma unificação dos movimentos do Alasca até a Patagônia. A sra. acredita que isso seja possível?
Menchú -
Creio que já exista um certo nível de unidade entre o movimento indígena no continente, refletido em esferas e atividades internacionais importantes, como a Cúpula das Mulheres Indígenas, realizada em dezembro passado, no México. Participaram cerca de 400 mulheres de toda a América para debater temas como espiritualidade, economia e participação política.
É preciso deixar claro que cada processo tem seu próprio ritmo, que deve ser respeitado. Em algumas nações, a incursão política dos índios é maior. Os povos indígenas compartilham uma realidade dilacerante, de exclusão, marginalização e pobreza. Isso pode servir para articular o movimento de uma forma melhor, para consolidar uma agenda comum.

Folha - As lideranças indígenas, inclusive a sra., estão muito próximas da esquerda. Como a sra. avalia a política indigenista de governos de esquerda, como o de Lula?
Menchú -
Em primeiro lugar, quero deixar claro que as concepções de direita e esquerda são ocidentais e não fazem parte da cosmovisão indígena. Os povos indígenas temos sido arrastados para essa batalha ideológica, como tem ocorrido em muitas outras áreas.
O que exigimos é uma concepção de identidade, respeito aos nossos direitos, acesso à educação e à saúde e aspiração de uma vida digna. Se para alguns isso nos faz esquerdistas, que assim seja. Entendo que o governo Lula está levando adiante planos muito interessantes para os povos indígenas, os quais, no Brasil, têm sido menosprezados, como no resto da América. Mas ainda é muito cedo para avaliar essas políticas, o Lula tem menos de um ano no governo.

Folha - A aproximação com a esquerda acentua a questão da pobreza ou as reivindicações indígenas são mais distintas?
Menchú -
Há uma série de desigualdades cujo combate une o movimento indígena e que poderia se resumir no respeito e reconhecimento dos nossos direitos como povos indígenas. Os povos indígenas exigimos uma vida mais digna, não importa em qual país. Dentro dos grupos mais marginalizados, os povos indígenas somos os mais afetados, o que é inaceitável neste momento da história. É um denominador comum em todo o continente.

Folha - Na Bolívia e, em menor grau, no Equador e na Guatemala, os movimentos indígenas têm como forma de pressão sua ampla presença demográfica e diversificação entre trabalhadores urbanos, mineiros e camponeses. Nesses países, já existe uma representação significativa no Parlamento e em governos locais. Em países como o Brasil, onde a população indígena soma 0,4% do total, isso não é possível. Quais as alternativas?
Menchú -
A participação indígena depende das realidades de cada país, onde a luta adquire matizes distintas. O que ocorreu no Brasil, como em muitas outras partes, é que os povos indígenas foram e tornados invisíveis e foram espoliados de maneira infame de suas terras e de outros recursos. São os povos indígenas os que têm de escolher suas políticas e seu destino comum. Na medida em que isso seja possível, a presença nas esferas do governo e em outros Poderes aumentará.

Folha - Como a sra. avalia as diferenças entre Quispe e o líder cocaleiro Evo Morales?
Menchú -
O movimento indígena não existe em razão de quem o encabeça. Não é uma questão de nomes, mas de um esforço coletivo por aspirações legítimas.

Folha - Quais são hoje as principais reivindicações em comum dos índios latino-americanos?
Menchú -
Queremos mudar uma história cheia de espoliação, iniquidade e exclusão. Exigimos respeito à nossa identidade. Na América Latina vivem cerca de 50 milhões de índios, cujas comunidades estão afetadas por problemas como danos ambientais e espólio da terra de indígenas.
Queremos paz, a livre disposição dos nossos recursos, o fim do paternalismo estatal, educação respeitosa de nossos saberes, participação política e acesso à saúde, para que meninas e meninos não continuem morrendo de doenças curáveis.

Folha - Quais foram os principais avanços na questão indígena desde que a sra. ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 1992?
Menchú -
Houve alguns avanços, mas insuficientes. De positivo, devo mencionar uma maior participação política em altos cargos públicos. No plano internacional, houve melhorias, mas falta muito. Na ONU, não tem sido possível aprovar a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, por falta de vontade política. O mesmo ocorre na Organização dos Estados Americanos.



Texto Anterior: Líderes no Brasil traçam plano eleitoral
Próximo Texto: Frase
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.