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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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ARTIGO

O que significa o caos da Bolívia

JEFFREY SACHS


Infeliz de qualquer pobre país que queira seguir os ditames dos EUA. Bitolada e violenta, a administração americana já perdeu o interesse por ajudar até mesmo seus amigos


A renúncia forçada do presidente da Bolívia, Gonzalo Sánchez de Lozada, após um mês de protestos públicos violentos, é um marco trágico cujo significado se estende para muito além de seu país depauperado. O colapso civil e político da Bolívia oferece mais um exemplo marcante da aridez da política externa norte-americana.
Sánchez de Lozada é um dos verdadeiros heróis da América Latina, um líder que ajudou a levar ao país à democracia e um crescimento econômico modesto, embora frágil, nos últimos 20 anos, incluindo seus dois mandatos presidenciais. No entanto ele fugiu da Bolívia, temendo por sua vida. A arrogância e o descaso dos EUA tiveram grande parte de responsabilidade por essa espantosa inversão de acontecimentos.
Virtualmente toda a América do Sul anda sofrendo profundo mal-estar econômico nos últimos tempos, com altos índices de desemprego, a pobreza em alta e crescente insatisfação social. Nos últimos três anos, a Argentina teve quatro Presidências fracassadas e sofreu um colapso econômico total. O Brasil luta contra a recessão e o desemprego crescente. Os sistemas políticos do Peru, do Equador e da Venezuela desabaram. A Colômbia vive uma guerra civil aberta.
Na condição de país andino cercado de terra por todos os lados, a Bolívia tem seus problemas específicos. O custo do transporte no país é um dos mais altos do mundo, em razão de seu território montanhoso e do fato de que as rotas comerciais internacionais passam obrigatoriamente por fronteiras estrangeiras e dependem de portos no exterior. Tudo isso desencoraja o investimento e dificulta as relações da Bolívia com os países vizinhos que têm saída para o mar.
De fato, o que precipitou o colapso boliviano foi o plano de exportar o gás natural do país para os EUA, passando pelo arqui-rival Chile, país que é alvo de profundo ressentimento dos bolivianos desde a Guerra do Pacífico, no final do século 19, que tirou da Bolívia sua saída para o mar.
Sánchez de Lozada falou das exportações de gás como fonte de investimentos em saúde, educação e desenvolvimento econômico, mas a população miserável da Bolívia já foi trapaceada muitas vezes e, compreensivelmente, temeu que a receita do gás acabasse nas mãos de estrangeiros ou dos setores ricos da própria Bolívia.
No entanto a faísca que ateou o incêndio à Bolívia foi mais do que uma simples crise econômica regional agravada por problemas geográficos e um acordo sobre gás que provocou desconfiança popular. Assim como os presidentes americanos tratam o Oriente Médio como o posto de gasolina da América, tratam os países andinos não como a terra de 130 milhões de pessoas pobres e que lutam para sobreviver, mas, em primeiríssimo lugar, como fornecedores de cocaína.
Os camponeses bolivianos que vivem do cultivo da coca são vistos não como habitantes nativos do pais que se esforçam para sobreviver numa região em que praticamente não existe emprego, mas como traficantes de drogas. O problema interno de saúde pública dos EUA é visto como um complô de toda a região andina a ser reprimido pela força militar, o que só faz exacerbar a violência em toda a região.
Quando o governo boliviano anterior ao de Sánchez de Lozada ouviu dos EUA a exigência de que destruísse as plantações de coca, eu o aconselhei a exigir assistência suficiente para poder financiar o desenvolvimento econômico. Desesperados por qualquer ajuda que fosse, os governos bolivianos acabaram por destruir milhares de hectares de plantações de camponeses -e, em troca, não receberam praticamente nada, exceto muitos slogans fajutos sobre desenvolvimento alternativo.
Assim, não surpreende que as eleições de 2002 tenham girado em torno da questão explosiva da erradicação das plantações de coca. O líder da federação dos cocaleiros, Evo Morales, chegou a um triz de ganhar a eleição, auxiliado pelos avisos lançados pelo embaixador americano, segundo o qual sua eleição seria vista como hostil aos Estados Unidos. Esse ""endosso", por si só, foi quase o suficiente para entregar a Presidência de bandeja a Morales. Em última análise, acabou por lhe garantir a liderança da insurreição que tirou Sánchez de Lozada do poder.
A maior surpresa é que Sánchez de Lozada tenha sobrevivido no poder por tanto tempo quanto sobreviveu. Ele herdou uma crise econômica, política e social das mais profundas no mundo. No ano passado, ele avisou ao presidente Bush que a pobreza extrema e as crescentes desigualdades étnicas corriam o risco de incitar uma insurreição no país. Bush literalmente riu em sua cara, dizendo a ele que não se preocupasse -que ele, Bush, também enfrentava pressões políticas. Sánchez de Lozada voltou a pedir ajuda financeira dos EUA -US$ 150 milhões-, mas Bush o mandou embora com nada mais do que um tapinha nas costas.
Sánchez de Lozada voltou à Bolívia de mãos vazias, excetuando instruções do FMI para que fossem implementadas medidas de austeridade de acordo com os ditames do Tesouro americano. Essas medidas levaram a uma greve da polícia, seguida por uma insurreição popular. O FMI negou que tivesse qualquer responsabilidade pelos tumultos, mas não fez nenhuma avaliação pública transparente das urgentes necessidades financeiras da Bolívia.
Mesmo após esses episódios, os EUA voltaram a negar os pedidos de assistência. A aventura norte-americana no Iraque já desperdiçou US$ 150 milhões em dois anos, mas a Bolívia recebeu apenas US$ 10 milhões -isso mesmo, US$ 10 milhões- em ajuda ""emergencial", muito menos do que seria preciso, realisticamente, para aliviar a crise econômica intensa e socorrer os camponeses expulsos de suas terras. Agora os interesses norte-americanos na Bolívia estão em ruínas; a violência corre solta no país, e é provável que o cultivo da coca cresça vertiginosamente.
A política externa norte-americana é totalmente destituída de inteligência. Mesmo quando Sánchez de Lozada foi derrubado e estava sendo tachado nas ruas de La Paz de lacaio dos Estados Unidos, a administração americana não deu qualquer sinal de interesse ou apoio.
Obsessivo, o governo dos EUA, liderada por um presidente que, ao que consta, acredita ter embarcado numa missão sagrada para combater o terrorismo no Oriente Médio, ignora o resto do mundo.
Infeliz de qualquer pobre país que queira seguir os ditames dos EUA. Bitolada e violenta, a administração americana já perdeu o interesse por ajudar até mesmo seus amigos.

Jeffrey Sachs é professor de economia e diretor do Instituto da Terra da Universidade Columbia.
Tradução de Clara Allain


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