São Paulo, segunda-feira, 03 de setembro de 2001

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JUSTIÇA

Segundo ativistas e juízes, abusos se concentram na Província de Buenos Aires, porém são prática generalizada

Polícia da Argentina utiliza técnicas de tortura da ditadura

ROGERIO WASSERMANN
DE BUENOS AIRES

Técnicas de tortura utilizadas na última ditadura militar (1976-1983) e que se imaginavam desaparecidas havia muito tempo continuam a ser utilizadas nas delegacias e prisões argentinas, segundo denúncias feitas nos últimos dias por uma entidade de defesa dos direitos humanos e por um grupo de juízes federais.
As denúncias relatam casos concretos de presos torturados com choques elétricos, golpes, ameaças com armas de fogo e o chamado submarino, que consiste na asfixia com um saco plástico colocado na cabeça.
A situação mais alarmante, segundo as denúncias, é verificada na Província de Buenos Aires, na qual o governador, Carlos Ruckauf, foi eleito em 1999 com um discurso que prometia uma atuação mais dura contra a criminalidade. A Província de Buenos Aires, que não inclui a cidade de Buenos Aires, capital federal, é a mais populosa e mais rica das 23 Províncias argentinas.
"Constatamos a prática generalizada da tortura em todas as suas formas de modo sistemático, no âmbito das investigações e no trato com os presos, mais especialmente na Província de Buenos Aires, na qual se registra uma situação de violência estatal de clara posição autoritária", diz um documento divulgado há duas semanas por quatro juízes federais.
De acordo com o juiz Rodolfo Canicoba Corral, um dos signatários do documento sobre os abusos, a persistência da tortura policial é um "resquício autoritário na formação policial".
"Não se deve esquecer que muitas autoridades de mais alta patente hoje eram funcionários policiais na época da ditadura militar. Para uma mudança absoluta de mentalidade, é preciso haver uma persistência na educação e no reforço do respeito pelos direitos humanos e pelos direitos individuais", disse ele à Folha.

Política de segurança
A existência de tortura e violência policial também foi denunciada pelo relatório anual do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), uma das mais atuantes instituições de defesa dos direitos humanos do país, apresentado nesta semana.
"Esse comportamento não havia desaparecido em nenhum momento depois da ditadura. Na Província de Buenos Aires, após a mudança de governo, no fim de 1999, a situação foi agravada pela política de segurança adotada", diz o advogado Rodrigo Borda, membro do Programa de Violência Institucional e Segurança Cidadã do Cels.
Segundo ele, muitos dos responsáveis hoje pela política de segurança na Província tiveram participação ativa nas forças de segurança durante a última ditadura no país.
O primeiro secretário de Segurança do governador Ruckauf, demitido após alguns meses, foi o ex-coronel do Exército Aldo Rico, líder das chamadas rebeliões militares "carapintadas" contra o governo do então presidente Raúl Alfonsín, em 1987 e 1988, em protesto contra o julgamento dos membros do governo militar.
"O governo provincial organizou uma luta contra a delinquência com uma estratégia de guerra. Não acredito que o governador apóie a ocorrência de tortura, mas os policiais se sentem livres para torturar ao pensar que têm respaldo político para isso", afirma Borda.
A gravidade dos casos levou a Defensoria Pública da Província a organizar uma base de dados, que relaciona 602 casos de tortura entre março de 2000 e junho deste ano. Desses, apenas 340 foram denunciados pelas vítimas diretamente. Os demais foram denunciados pelos defensores públicos, já que muitos presos têm medo de represálias.
Segundo Borda, o fato de a situação na Província de Buenos Aires ser mais preocupante não significa que não haja preocupação sobre os demais âmbitos policiais. "A tortura é uma prática generalizada", afirma.
A secretaria de Segurança da Província de Buenos Aires foi procurada pela Folha para comentar as acusações, mas não havia dado uma resposta até o fim da tarde de ontem.


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