São Paulo, terça-feira, 03 de outubro de 2006

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ARTIGO

O próximo secretário-geral

BRIAN URQUHART
PARA A "FOREIGN AFFAIRS"

O mandato do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, termina em dezembro próximo, e até o final do ano o Conselho de Segurança precisa recomendar seu sucessor, que então terá que ser indicado pela Assembléia Geral. Que tipo de pessoa a ONU deveria escolher? O cargo é um misto de vários trabalhos em tempo integral, e é impossível esperar que os candidatos sejam qualificados para todos eles. Assim, a ênfase da busca deve ser voltada às qualidades pessoais básicas dos candidatos e a sua capacidade a responder a desafios, mais do que a qualificações específicas -a caráter e potencial, mais do que a experiência específica.
A história já mostrou que um grande secretário-geral não apenas é importante para a ONU como constitui um bem inestimável para o mundo. A Carta da ONU, redigida em San Francisco em 1945, era fundamentada na premissa de que os aliados da 2ª Guerra Mundial continuariam aliados e se tornariam a espinha dorsal da nova organização mundial. Mas as crescentes tensões entre EUA e União Soviética em pouco tempo fraturaram a aliança, e nos 40 anos seguintes a ONU foi obrigada a improvisar outras maneiras de manter a paz e a segurança internacionais. Uma parte importante dessa improvisação tem sido a ampliação do papel do secretário-geral.
A Carta da ONU descrevia o secretário-geral da organização simplesmente como seu "CEO" [chief executive officer]. Ela não fornecia diretrizes quanto aos aspectos específicos do cargo, a duração do mandato ou o processo pelo qual seria escolhido seu ocupante. A única coisa que ficou mais ou menos clara desde o início era que o cargo seria extremamente importante. Mas o primeiro secretário-geral, o norueguês Trygve Lie, tinha um histórico pouco impressionante. Era vítima das tensões da Guerra Fria.
Foi só em 1953 -após a morte de Stálin, e quando a Guerra da Coréia estava chegando ao fim- que as circunstâncias se tornaram propícias para que o secretário-geral desempenhasse um papel importante.
Naquele ano, o virtualmente desconhecido Dag Hammarskjvld, ex-chanceler da Suécia, sucedeu a Lie. Embora tivesse sido escolhido porque considerou-se que fosse alguém que teria pouca probabilidade de exercer grande impacto, Hammarskjvld, que tinha 45 anos na época, revolucionou a ONU e o cargo de secretário-geral. Suas primeiras vitórias diplomáticas, como conseguir a libertação de prisioneiros de guerra americanos mantidos pelo governo comunista da China, demonstraram o potencial do Secretariado Geral e convenceram Washington de que um secretário-geral independente e influente teria grande valor para os Estados Unidos. Em seus mais de oito anos à frente da ONU, Hammarskjvld converteu seu cargo de um posto predominantemente burocrático em um cargo político, diplomático e humanitário cuja amplitude de ação não era circunscrita.

Pós-Guerra Fria
Desde que o fim da Guerra Fria libertou a ONU do impasse ideológico em que passou décadas atolada, a estatura do Secretariado Geral só tem feito crescer. Esse fato, por sua vez, levou a organização a começar a atuar na manutenção da paz e a assumir missões mais ambiciosas. O secretário-geral Kofi Annan, cujo mandato termina em dezembro, tem sido extremamente ativo, envolvendo-se em uma série de emergências políticas, militares e humanitárias. Além disso, ele tem feito esforços criativos para fazer a organização ingressar no século 21. Após o genocídio de Ruanda, em meados dos anos 90, ele acabou por conseguir que os membros da ONU aceitassem a "obrigação de proteger" populações que sofressem tratamentos inumanos ou genocídio (infelizmente, esse acordo tem se mostrado de difícil aplicação no caso de Darfur).
Pouca coisa foi feita para tornar mais eficiente a loteria que se faz passar por um sistema de seleção de um sucessor de Annan. Ainda não existe procedimento formal para a procura, indicação ou escrutínio de candidatos, e tampouco há qualquer dispositivo para que o Conselho de Segurança entreviste os aspirantes ao cargo.
Existe uma idéia mais ou menos generalizada de que o próximo secretário-geral deve ser asiático, mas não deve estar excluído qualquer candidato excepcional de outra região do mundo. Infelizmente, mas como é de costume, já se apresentaram vários candidatos auto-indicados ou indicados por seus países, desencorajando o Conselho a conduzir uma busca mais séria pela pessoa certa.

Perfil multifacetado
Que tipo de pessoa seria essa? O cargo é a combinação de vários empregos em tempo integral, e seria impossível esperar que os candidatos fossem plenamente qualificados para todos eles. Desde a confusão em torno do programa Petróleo por Comida, no Iraque, foi sugerido que o próximo secretário-geral deveria ser um executivo-chefe de orientação administrativa. Mas a administração é apenas uma parte de um trabalho muito complexo e predominantemente diplomático, e essa tarefa deveria ficar a cargo do vice-secretário-geral.
O cargo do secretário-geral vem acompanhado de grande responsabilidade e altas expectativas -mas pouco poder. Em um cargo como esse, é preciso uma personalidade grandiosa e incomum para exercer a liderança inspiradora, moderadora, coerente e, quando necessário, prática e criativa em um mundo que se defronta com problemas novos e extremamente difíceis. Assim, a ênfase deve ser no caráter e potencial dos candidatos, mais que em sua experiência específica.
Aqueles que ocupam o cargo podem crescer e desenvolver-se de maneira inesperada. Ninguém, talvez nem mesmo o próprio Hammarskjvld, previu a transformação deste de funcionário governamental obediente em carismático líder mundial. Tal homem ou mulher poderia vir de praticamente qualquer lugar, mas é virtualmente impossível identificar esse tipo de potencial de antemão. Mesmo na política nacional, é sabidamente difícil prever no início quem vai se transformar num líder de importância histórica.
Os membros do Conselho de Segurança, com a ajuda dos outros membros da ONU, devem -desde que dediquem tempo, reflexão e consultas mútuas suficientes ao assunto- conseguir chegar a um acordo quanto a um novo secretário-geral capaz de fazer frente aos muitos desafios que acompanham o cargo, alguns dos quais inesperados. O tempo mostrará se seu escolhido fará mudanças reais na maneira como o mundo lida com os problemas ligados à paz, justiça, padrões de vida e direitos humanos.


BRIAN URQUHART foi subsecretário-geral da ONU de 1972 a 1986. Uma versão mais longa deste artigo está na edição de setembro/outubro da "Foreign Affairs"
Tradução de CLARA ALLAIN


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