São Paulo, sábado, 03 de dezembro de 2005 |
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ÁFRICA Estudos interrompidos, gravidez precoce e exposição ao HIV são algumas das graves conseqüências das uniões forçadas Pais fazem de suas filhas moeda de troca
SHARON LAFRANIERE
No minúsculo povoado de Sele, Lyson Morenga deu sua filha de 12 anos, Rachel, em casamento a um conhecido de 50 anos para que ele próprio, que era viúvo, pudesse se casar novamente. O caso foi relatado por um parente, Stewart Simkonda, que contou que Morenga lhe deu um touro preto que recebeu do marido de Rachel em troca da sobrinha de Simkonda. Ele disse que Morenga prometeu lhe dar uma segunda parte do dote após o casamento da irmã menor de Rachel. Representantes do governo de Maláui dizem que estão se esforçando para proteger meninas como Rachel. Um projeto de lei que foi submetido ao Parlamento visa elevar a idade mínima para o casamento para 18 anos, a norma mundial. Hoje, as meninas no Maláui podem se casar legalmente entre os 15 e 18 anos, desde que tenham o consentimento dos pais. Os defensores dos direitos das mulheres saúdam o projeto de lei, mesmo sabendo que seu efeito seria limitado, já que neste país, como em boa parte da região subsaariana, muitos casamentos se dão segundo os costumes tradicionais, não sendo celebrados dentro do direito civil. No ano passado o governo deu a 230 voluntários treinamento em métodos para proteger crianças, especialmente meninas. Voluntários da Comissão de Direitos Humanos do Maláui, da Igreja Católica e até unidades policiais de proteção a vítimas também procuram intervir. Na aldeia de Iponga, por exemplo, no ano passado, Mbohesha Mbisa conseguiu evitar um casamento forçado com seu tio, aos 13 anos de idade, recorrendo à delegacia de polícia local. Os policiais convenceram seu pai a desistir do plano. "Eu estava apavorada, mas queria me proteger", diz a menina, que hoje cursa a sexta série. Mesmo assim, dizem autoridades do Maláui, a miséria crescente nessa região, agravada pela Aids e pela seca recente que vem devastando as plantações, coloca ainda mais meninas em situação de risco de casamento sob coação. "A prática existe há muito tempo, mas vem se agravando em função do desespero reinante", comentou Penston Kilembe, diretor dos serviços de bem-estar social do Maláui. "Ela está presente especialmente em comunidades fortemente atingidas pela fome. As famílias que não conseguem mais se alimentar vendem seus filhos a famílias mais ricas." "Os avanços conquistados no combate aos casamentos precoces vêm se perdendo", declarou a secretária principal do Ministério do Gênero, Andrina Mchiela. Dote Os defensores dos direitos das mulheres querem abolir o costume de dar um dote, conhecido como "lobolo", dizendo que ele cria um incentivo financeiro para os pais darem as filhas em casamento. Mesmo eles, porém, descrevem a tradição como politicamente intocável. Sob sua forma mais benigna, o "lobolo" é símbolo de apreciação dado pela família do noivo à família da noiva. Sob sua forma mais disseminada, porém, ele transforma meninas no equivalente humano a cabeças de gado. Em boa parte do norte do Maláui, o "lobolo" costuma ser negociado em encontros exclusivamente masculinos que envolvem a discussão de entrada, prestações, pagamentos únicos e, ocasionalmente, estornos pagos por mulheres que fogem de seus maridos. Jimmy Mwanyongo tem 45 anos e é chefe da aldeia de Karonga. Ele explicou o casamento de sua filha no mesmo tom em que descreveria qualquer transação comercial. Sentado sobre uma esteira de palha em sua casa de seis cômodos, explicou que, alguns anos atrás, prometeu cuidar das duas vacas de seu vizinho. Em vez disso, porém, vendeu as vacas para custear os estudos de seu filho adotivo. Um ano depois, em 2002, o vizinho em questão, Ridein Simfukwe, perdeu sua mulher. Mwanyongo contou que se sentiu na obrigação de oferecer sua filha como substituta. "Pelo fato de eu ter vendido as duas vacas, não tive outra escolha." Edah tinha 17 anos, olhos grandes e expressivos e corpo sensual. Apesar de já ter um filho ilegítimo, dizem seus vizinhos e parentes, ela poderia ter escolhido o pretendente que quisesse. Simfukwe tinha 63 anos, nove filhos adultos e muitos netos. "Edah concordou. Eu não amarrei uma corda em seu pescoço, não a arrastei para cá", disse o vizinho. Edah diz que seu pai fez tudo menos isso. "Meu pai não me deixava comer", ela contou. "Ele me expulsou de casa. Dizia para mim: "Vá encontrar um lugar para dormir!". Ele dizia: "Vá para seu marido, senão vou lhe matar de tanto açoitar"." Sua mãe, Tabu Harawa, tomou o partido da filha, mas foi em vão. "Eu disse a meu marido: "É como se você a estivesse matando". Era uma vergonha." Ela acrescentou: "Se isso acontecer outra vez, vou me divorciar dele". Hoje Edah tem 20 anos e uma filha de 11 meses. Ela teme por seu futuro. "Meu marido é velho", explicou, sentada na varanda de sua casinha de sapé. "Ele pode morrer a qualquer hora. Provavelmente vai me deixar com mais filhos. Para onde eu vou depois disso?" Ela disse que sua vida é tão livre quanto a dos dois bois de estimação que seu pai hoje atrela a sua carroça de madeira para arar a terra na primavera. "Sou como uma escrava." Mwaka Simbeye deve aos outros moradores de sua aldeia, Chikutu, o fato de ter podido voltar à casa de seus pais, depois da temporada passada na choupana de seu vizinho. De volta à escola, agora na segunda série, ela ainda é suficientemente criança para divertir-se brincando de pega-pega. Seu corpo ainda é o de uma criança. Num sussurro quase inaudível, ela conta que, na casa de Kalabo, tinha que fazer todo o serviço da casa. "Lavar a louça, limpar a casa, buscar água e lenha, cozinhar quando a primeira esposa não estava ali." Seu pai, Mapendo Simbeye, que devolveu os US$ 16 que recebera por Mwaka, disse que aceitou a filha de volta em sua casa quando soube que poderia ser preso pela polícia local. Numa clareira que faz as vezes de centro social do povoado, ele confessa que subestimou Mwaka, dizendo: "Minha filha vale mais do que 2.000 quachas". A mãe de Mwaka, Tighezge Simkonda, parece uma versão mais velha da filha e é tão tímida quanto esta. "Eu fui contra o casamento", ela comentou em voz baixa, lançando um olhar amedrontado para seu marido, que batia papo ao lado. "Falei: "minha filha é jovem demais". Mas o controle é dos homens. As filhas pertencem ao homem." Tradução de Clara Allain Texto Anterior: Oriente Médio: Jogo duplo expõe fraqueza do governo sírio Próximo Texto: Ásia: "Fábrica de TV" chinesa produz sucessos em Hunan Índice |
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