São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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ARTIGO

China joga seu peso na diplomacia mundial

Guang Niu - 26.dez.2003/Reuters
Em Pequim, chineses fazem fila para render homenagem a Mao Tsé-tung, no 110º aniversário do maior líder do país, morto em 76


EVAN S. MEDEIROS
M. TAYLOR FRAVEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos aspectos mais curiosos e menos examinados da crise nuclear que se vem desenvolvendo na Coréia do Norte é o papel ativo e importante desempenhado pela China nos últimos nove meses. Rompendo com os anos de tradicional passividade chinesa diante dos desafios de segurança mundial, Pequim ajudou Pyongyang e Washington a recuar quando um confronto era iminente, o que surpreendeu até mesmo os críticos da China.
Os diplomatas chineses foram essenciais para dar início a uma primeira rodada de discussões trilaterais, mais tarde expandidas para incluir seis participantes. Desde então, importantes funcionários do governo chinês vêm se deslocando entre Pyongyang e Washington, tentando preservar o ímpeto para uma terceira rodada de negociações.
Pequim também usou medidas de coerção, como uma suposta suspensão temporária de seus embarques de petróleo para os norte-coreanos, uma "inspeção" de um navio da Coréia do Norte atracado em porto chinês e o deslocamento de tropas para sua fronteira com a Coréia do Norte.
Os consistentes esforços de Pequim para resolver o problema nuclear da Coréia do Norte são uma das muitas indicações quanto a uma evolução mais ampla na diplomacia chinesa.
Nos últimos anos, a política externa de Pequim começou a refletir uma abordagem mais sofisticada, confiante e, ocasionalmente, construtiva e preventiva, no que tange aos assuntos regionais e mundiais.
Por muitas décadas, até a metade dos anos 90, a China regularmente criticou a estrutura do sistema internacional e se queixou de que as demais potências conspiravam contra os seus interesses. Pequim parece agora estar cada vez mais aderindo à constelação atual de instituições, normas e regras internacionais, como forma de promover e defender os interesses nacionais chineses. A China agora está trabalhando no contexto do sistema internacional, em lugar de criticá-lo e de protestar contra ele.
Abundam indícios de mudança na diplomacia chinesa. O país expandiu suas relações bilaterais, em termos de largura e de profundidade, aderiu a diversos acordos regionais e internacionais e melhorou a qualidade de sua participação nas organizações multilaterais.
A adoção das instituições multilaterais por Pequim representa uma das mais dramáticas viradas nas relações internacionais do país.
No começo dos anos 90, a China não aprovava esse tipo de fórum, vendo-o como fonte de críticas e restrições ao país. Agora, Pequim encara a participação como forma de influenciar as regras internacionais, melhorar suas relações com os países vizinhos (especialmente no Sudeste Asiático) e limitar o que percebe como influência mundial indevida dos Estados Unidos.
No leste da Ásia, a China se envolveu ativamente na Associação de Países do Sudeste Asiático e no fórum regional Asean. Pequim tomou uma série de medidas calculadas para reassegurar aos países da Asean que sua ascensão não ameaça os interesses econômicos e de segurança deles.
Em 2001, a China propôs uma área de livre comércio entre o país e a Asean, a primeira do gênero para os chineses.
Para atenuar os temores regionais quanto às suas ambições territoriais, a China acatou uma declaração dispondo um código de conduta para as disputas sobre as ilhas no Mar do Sul da China, e Pequim recentemente assinou o Tratado de Amizade e Cooperação, um dos primeiros países de fora da Asean a fazê-lo, o que significa acatar as normas do fórum regional para a solução de conflitos diversos.
Ainda na região, a China comandou o estabelecimento de uma organização multilateral cujo foco é a segurança regional da Ásia Central, conhecida como Organização de Cooperação de Xangai. O grupo tem seis membros, agora, que cooperam para desmilitarizar fronteiras, combater o terrorismo e promover o comércio internacional.
Para além da Ásia, a China começou a promover reuniões anuais com a União Européia, em 1998, e recentemente abordou a Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA) quanto ao início de um diálogo anual sobre percepções estratégicas e ameaças regionais à segurança. O esforço representa grande contraste com relação à abordagem tradicionalmente crítica adotada pela China com relação a alianças de segurança lideradas pelos Estados Unidos.
No Conselho de Segurança da ONU, a China votou a favor da resolução 1441, em novembro de 2002, aprovando inspeções de armas no Iraque. Foi a segunda ocasião, desde a admissão da China na ONU, em 1971, em que Pequim aprovou uma resolução do Conselho de Segurança sob o capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, que autoriza o uso da força. Ao longo dos anos 90, embora não tenha em geral bloqueado ações da ONU, a China se absteve em votações semelhantes, por exemplo durante a Guerra do Golfo (1991). Mais recentemente, a China votou a favor das resoluções relativas à reconstrução do Iraque.
Ao longo dos dez últimos anos, a China assinou diversos tratados importantes de controle de armas e da proliferação nuclear. Pequim também impôs diversas leis internas de controle de exportação, para sustentar seus compromissos quanto a restringir a proliferação. Embora divergências quanto à interpretação de regimes e problemas com a implementação de controles sobre exportações de tecnologia sensível continuem a existir, a tendência é em geral animadora.
A China também tratou ativamente de diversas disputas territoriais que historicamente prejudicaram suas relações com países vizinhos. De 1991 para cá, o país resolveu problemas com Laos, Rússia, Vietnã, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão. Em diversos desses acordos, a China recebeu menos de metade da área disputada. Além disso, Pequim reduziu os efetivos militares estacionados nas fronteiras e adotou posições que reforçam a confiança nas fronteiras com vizinhos importantes como a Índia e a China.
A execução da diplomacia chinesa também se tornou mais sofisticada, já que Pequim espera influenciar a opinião mundial. Em nível individual, os líderes da terceira e quarta gerações de líderes chineses tentaram personalizar a diplomacia do país por meio de muito mais viagens ao exterior do que no caso das gerações anteriores de líderes.
Em termos mais amplos, a China lançou uma série de documentos oficiais delineando a posição oficial do governo quanto a questões de política interna e internacional. As páginas do Ministério do Exterior e do Conselho de Estado na internet incluem um verdadeiro tesouro de dados básicos sobre as posições chinesas, novos desdobramentos políticos e declarações oficiais. Talvez o mais surpreendente seja o fato de que funcionários do governo chinês começaram a informar aos jornalistas em profundidade quanto às posições do país, antes e depois de eventos diplomáticos importantes, adotando uma prática ocidental.
Nos últimos anos, e especialmente depois do 11 de Setembro, mudanças ainda mais dramáticas aconteceram no raciocínio da China sobre seu papel no sistema internacional. Analistas chineses influentes começaram a advogar que o país abandone sua mentalidade de vítima, já tradicional, e promovem em lugar disso a adoção de uma "mentalidade de grande potência".
Uma importante manifestação dessas idéias é que os estrategistas chineses cada vez mais vêem seus interesses como semelhantes aos das grandes potências, e menos associados aos dos países em desenvolvimento. Essa mudança, por si, já representa importante virada nas percepções dominantes até os anos 90, quando muitos chineses continuavam a ver o país como prejudicado pela globalização, pelas outras grandes potências e pelos fóruns internacionais.
O presidente Hu Jintao, em um reflexo dessa mudança, foi o primeiro líder chinês a comparecer a uma reunião do G8 (grupo dos sete países mais ricos, mais a Rússia), no terceiro trimestre.
Os diplomatas e líderes políticos da China falam agora sobre "responsabilidades mundiais compartilhadas" e sobre a melhora na cooperação entre as "grandes potências" (entre as quais a China) para combater ameaças à segurança mundial.
Esse tipo de pensamento representa sério contraste com a visão estreita que a China mantinha anteriormente sobre os seus interesses nacionais, sua identidade como potência e seu papel na comunidade internacional.
Um último elemento importante do novo pensamento chinês é a recente, se bem que relutante, aceitação da idéia de que o mundo é unipolar, no momento, e que a preponderância dos Estados Unidos persistirá por décadas. Ainda que os líderes chineses alardeiem a multipolarização, em público, como a tendência da nossa era (condenando o unilateralismo norte-americano), analistas do país também reconhecem que a China não tem capacidade para desafiar, e não desafiará, o domínio mundial norte-americano, no curto prazo.
Embora todas essas tendências sejam importantes, a China continua a enfrentar importantes obstáculos políticos, sociais e econômicos.
A nova diplomacia chinesa oferece oportunidades e desafios aos líderes asiáticos e norte-americanos. A participação ativa da China nas instituições internacionais cria mais chances de obter sua assistência quanto a questões importantes. Recentes exemplos dessa tendência incluem a cooperação entre Estados Unidos e China no combate ao terrorismo, aos narcóticos e à proliferação das armas nucleares.
No entanto as autoridades deveriam ter em mente que, à medida que aumenta o envolvimento chinês, aumenta a capacidade de Pequim para usar a política externa e as relações internacionais a serviço do país. A China de hoje é decerto mais esperta e mais sofisticada -o que não dizer mais amena ou mais gentil.
As novas capacidades de Pequim podem servir para frustrar os objetivos ocidentais, ocasionalmente, já que a China está se tornando mais capaz de contestar as políticas dos Estados Unidos e seus aliados. A capacidade chinesa para manobrar e derrotar os Estados Unidos na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, recentemente, deve servir de alerta.
A China está insatisfeita com certos aspectos do sistema internacional, como a preponderância dos Estados Unidos e a situação de Taiwan. Washington deve se manter ciente dessas frustrações e formular seus elos com os países asiáticos de forma a reconhecer a realidade do papel regional crescente que a China tem a desempenhar. A China está rapidamente emergindo como o propulsor do crescimento asiático, o que lhe dá mais influência e capacidade. Washington precisa dedicar atenção consistentemente à administração de suas relações com amigos e aliados regionais, se quiser manter sua influência.
Uma tarefa de prazo mais longo, para a comunidade internacional como um todo, é garantir que a nova diplomacia chinesa seja consistente com a segurança e estabilidade regionais. Os principais líderes políticos da China consideram que os próximos 20 anos são uma oportunidade estratégica para desenvolver seu país. Existe uma abertura para que a comunidade internacional e seus líderes aproveitem essa chance, igualmente, para administrar bem a emergência da China como potência diplomática.


Evan S. Medeiros é cientista político associado na RAND Corporation, organização de pesquisa na Califórnia. M. Taylor Fravel é pesquisador do Instituto Olin de Estudos Estratégicos, na Universidade Harvard.


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