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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA

De formas opostas, Kirchner e Menem reivindicam o legado do caudilho, capaz de atrair ampla lealdade

Sombra de Perón ainda magnetiza o país

CHRISTINE LEGRAND
DO "LE MONDE"

Pela primeira vez na Argentina desde a fundação do movimento peronista, em 1945, dois candidatos que reivindicam a herança do general Juan Domingo Perón vão se enfrentar num segundo turno eleitoral, no próximo dia 18. Quase 30 anos após a morte do mítico caudilho, as rivalidades acirradas impediram uma candidatura única de seu movimento -havia três candidatos peronistas no primeiro turno.
Entretanto, apesar dessa fragmentação inédita, das metamorfoses e das traições, o peronismo continua a ser a mais importante força política argentina. No primeiro turno, os candidatos peronistas obtiveram 60% dos votos.
Os argentinos continuam marcados pelas lembranças de Perón. Para Atílio Boron, diretor do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), ""o Brasil precisará de pelo menos dois mandatos de Lula para chegar às transformações sociais feitas pelo peronismo entre 1946 e 1952".
Quando o coronel Juan Domingo Perón surgiu no cenário político argentino, mais de meio século atrás, encarnou uma revolução social do tipo nacionalista, o chamado ""justicialismo". A Argentina nos anos 40 era um país subordinado ao imperialismo estrangeiro, abalado por golpes de Estado militares e dominado pela oligarquia. Perón criou um grande movimento social que abrangeu desde os proprietários de terras até os operários, passando pelos industriais e por uma classe média que adquiriu importância única na América Latina.
Ele nunca conseguiu realizar uma reforma agrária, embora ela teria sido decisiva no país, essencialmente agrícola. Mas instituiu sindicatos fortes para defender os trabalhadores, que passaram a conhecer os benefícios dos contratos coletivos, da seguridade social e da aposentadoria.
""Meu único herdeiro é o povo", dizia Perón. No momento do voto, as camadas mais pobres da população argentina continuam leais a ele até hoje. Ele e sua mulher Evita, a ""padroeira dos pobres", nunca deixaram de exercer um forte magnetismo póstumo.

Pragmatismo
As piscadelas em direção à esquerda de Néstor Kirchner relembram o Perón dos anos 70, com o movimento guerrilheiro Montoneros, que dizia ser a esquerda do peronismo.
Carlos Menem evoca o pragmatismo de Perón e se declara ""seu melhor discípulo". Entretanto Menem fez tudo ao contrário de seu mestre. Ele se alinhou incondicionalmente aos EUA, inimigos de Perón. Privatizou as empresas nacionalizadas pelo general. Refreou os sindicatos, coluna do movimento justicialista. Mas diz que Perón teria feito o mesmo se estivesse no poder hoje.
Os tempos mudaram, e o peronismo também. Mesmo assim, seu peso explica o fracasso de qualquer tentativa de terceira força na Argentina. Nem a direita nem a esquerda jamais conseguiram apropriar-se da bandeira da justiça social sobre a qual Perón baseou sua legitimidade.
Na Europa e nos EUA, seu nome é associado ao fascismo. A Argentina, que se declarou neutra durante a 2ª Guerra Mundial, deu abrigo a vários nazistas. ""Perón não foi nem revolucionário nem fascista", diz o cientista político Juan Carlos Portantiero. ""Ele era fruto de uma formação ideológica do período entre guerras, especialmente da Itália de Mussolini, mas isso não significa que aplicou o fascismo na Argentina."
Perón instaurou um regime paternalista e autoritário. Procurava controlar tudo: os sindicatos, a universidade e a imprensa.
Em 1946, Perón foi democraticamente eleito com 54% dos votos. Foi reeleito em 1951 pela preferência de mais de 60% dos eleitores. Em 1973, ao retornar de um exílio de 18 anos em Madri, o velho caudilho, então com 74 anos, ganhou seu terceiro mandato presidencial, com 62% dos votos. Quando morreu, em 1º de julho de 1974, deixou para trás um movimento profundamente dividido e um país mergulhado no caos e na violência dos embates entre a extrema direita peronista e a guerrilha.


Tradução de Clara Allain


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