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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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Para Armesto, guerra reabilita o indivíduo na história

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Indivíduos -como George W. Bush ou Saddam Hussein-, mais que forças econômicas ou sociais, podem tomar, novamente, o papel de protagonistas na narrativa dos episódios que marcam a história da humanidade.
Para o espanhol Felipe Fernandez-Armesto, 52, este é um dos principais debates que a guerra no Iraque propôs a historiadores do presente e do futuro.
Tal visão confronta duas das mais importantes correntes historiográficas, a marxista -que vê na luta de classes e na economia o motor da transformação histórica- e a da chamada "nova história"-que investiga comportamentos e mentalidades coletivas.
Professor do departamento de história moderna da Universidade de Oxford (Reino Unido), Armesto fez críticas à parte da intelectualidade internacional que viu no 11 de setembro um divisor de águas da história contemporânea. Para ele, o episódio foi apenas um ato terrorista isolado.
Já a ação anglo-americana no Iraque, em sua opinião, tem outra natureza. Deverá figurar, nos livros de história das futuras gerações, como parte do processo de fortalecimento dos EUA como uma potência intervencionista.
Armesto tornou-se internacionalmente conhecido em 1993, ao lançar o ambicioso e elogiado "Milênio - Uma História de Nossos Últimos Mil Anos", um compêndio sobre este vasto período de tempo, mas com um olhar bastante particular. Neste e em outros de seus trabalhos, Armesto relativiza a supremacia da chamada "civilização ocidental", vendo-a, dentro da história do homem, apenas como um desvio de um curso de narrativa dominado, desde sempre e nos tempos vindouros, pela China.

Folha - Depois do 11 de setembro, muitos intelectuais fizeram conjecturas as mais variadas sobre a importância do episódio na história contemporânea. Como se pode tratar de fatos ditos "históricos" no calor dos acontecimentos?
Felipe Fernandez-Armesto -
O mais surpreendente da guerra no Iraque em termos de sua relevância para nossas técnicas de análise histórica é que se recuperou uma teoria bastante antiquada: a de que as mudanças históricas se efetuam mediante personagens de imenso poder, mais do que por forças econômicas ou ideológicas.
Vimos um punhado de tipos agressivos ao redor de um presidente americano que se mostrou capaz de iniciar uma guerra só porque lhe deu vontade.
Esta guerra não tem nada a ver com o 11 de setembro. [Dick" Cheney, [Paul" Wolfowitz e [Donald" Rumsfeld já tinham decidido lançar uma nova guerra contra o Iraque havia alguns anos. Foi um pretexto e um motivo para convencer o povo norte-americano de que era necessário reagir contra ameaças de qualquer tipo.

Folha - É possível vislumbrar hoje que importância terá a guerra no Iraque a longo prazo?
Armesto -
Essa questão deve abordar outros acontecimentos parecidos da recente política internacional norte-americana -o conflito do Kosovo, o bombardeio à Sérvia, a invasão do Afeganistão, o menosprezo às Nações Unidas, a falta de paciência com o sistema de relações políticas do Ocidente. Estamos vivendo uma época em que a atitude dos EUA em relação ao mundo está se tornando cada vez mais intervencionista, mais hegemonista.

Folha - Como historiador, que tipo de colaboração crê que a história possa oferecer a um mundo que discute hoje como fazer para internacionalizar a justiça?
Armesto -
Nenhuma. Os conselhos da história são desesperados. Está bem claro que necessitamos de novas instituições de governo mundial, novas definições do que é uma guerra justa, novos conceitos de soberania e novas formas de defender os direitos humanos em países mal administrados.
Mas o mais provável é que não tenhamos nada disso, por dois motivos. Primeiro porque tais reformas exigem um desastre muito grande, como o das guerras mundiais, sem o qual a inércia dos sistemas vigentes se mantém, por piores que possam ser.
Em segundo, porque no mundo de hoje nada pode ser feito sem a adesão de nossa superpotência única; e enquanto sua preponderância prosseguir, os EUA não vão aceitar nenhuma reforma que lhes retire poder.

Folha - Que significado o sr. crê que tenha a queda do regime de Saddam Hussein desde o ponto de vista de seu símbolo como ditador? O sr. acredita que ditadores como ele se tornaram algo típico e datado do século 20 e que possam se tornar um fenômeno cada vez mais raro no 21?
Armesto -
Saddam era um monstro, mas ainda os monstros costumam reabilitar-se por conta do revisionismo histórico; seguramente virão defensores seus, sobretudo se a política norte-americana no Oriente Médio fracassar, ou se os norte-americanos mantiverem a ocupação do Iraque, ou se explorarem -como é muito provável- seus recursos para seu próprio benefício.
Seguirá havendo ditadores; a única lição que se pode tirar do ocaso de Saddam é que, para manter seu poder, os ditadores terão de manter, antes, suas relações com os EUA.

Folha - Como o sr. vê o comportamento dos governos espanhol e britânico nesta crise? Acha que Blair e Aznar saem desgastados?
Armesto -
Tenho pai espanhol e mãe inglesa. Aqui no Reino Unido, sempre que o governo atua de uma maneira que me envergonha, me refugio em minha identidade espanhola. Desta vez, infelizmente, não tive opção.
As consequências serão bem distintas para ambos. Blair tem um público britânico disposto a apoiar aventuras neocolonialistas se estas passarem a sensação de que podem melhorar a vida de suas vítimas. Já para Aznar, tudo dependerá da situação interna com os terroristas do ETA. Se os americanos o ajudarem neste sentido, sua postura de apoio à política de Bush ficaria como que justificado para o povo espanhol.



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