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Uma cidade capaz de dançar no seu enterro
CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem teve a sorte de conhecer
Nova Orleans sabe que, além da
impressionante diversidade musical que a cidade transpirava a
cada esquina, ali também havia
um ambiente especial. Sem a sisudez de outras cidades dos EUA,
Nova Orleans cativava pela descontração, pelos sorrisos que se
viam tanto no turístico French
Quarter como entre os edifícios
do Central Business District.
Na verdade, nem seria preciso ir
até a cidade para captar essa atmosfera. Basta ouvir algum dos
vários gêneros musicais cultivados ali, seja o rhythm & blues, o
funk, o zydeco ou o jazz das bandas de metais, marcados por uma
carga de alegria que praticamente
seduz o ouvinte, levando-o a sorrir ou mesmo dançar. Não era à
toa que, até a chegada do furacão,
qualquer dia era dia de festa, nas
ruas, bares e clubes noturnos da
capital musical da Louisiana.
Dois anos atrás, recém-chegado
à cidade para cobrir mais uma vez
o gigantesco New Orleans Jazz &
Heritage Festival, evento que levava anualmente cerca de 500 mil
pessoas ao Fair Grounds (o hipódromo local), tive a sorte de presenciar um dos rituais mais originais e característicos da cultura de
Nova Orleans.
Ao cruzar a Canal Street, a longa
avenida que se estende do rio Mississippi ao lago Pontchartrain, encontrei um ruidoso cortejo. Centenas de pessoas, incluindo grandes astros da música local, como
os cantores Dr. John, Irma Thomas e Deacon John, desfilavam
pela avenida, numa homenagem
ao veterano guitarrista Earl King,
mestre do blues de Nova Orleans,
que morrera na véspera.
Animada pelo som estridente
dos trompetes e trombones das
bandas Rebirth Brass Band e
Young Men Olympian Junior Benevolent, incluindo índios do
Mardi Gras (o Carnaval local), a
procissão seguiu por outras ruas,
em direção ao Armstrong Park.
Fechando o cortejo, numa carruagem negra puxada por cavalos, vinha o caixão do saudoso
bluesman. Porém, em vez de lágrimas e olhares tristes, o que se
via era uma celebração festiva,
com os seguidores dançando e
cantando. Alguns até portavam
sombrinhas coloridas, além de
grandes fotos do homenageado.
Rituais como esse, que pouco tinham a ver com as compenetradas tradições britânicas, eram
bastante comuns em Nova Orleans já no século 19. Trata-se, segundo antropólogos e historiadores, de uma espécie de sincretismo, originado em rituais e práticas semelhantes às de algumas regiões da África e da Europa.
Assim como algumas expressões musicais bem características
de Nova Orleans, esse festivo ritual funerário reforça as diferenças culturais que a cidade revela
frente ao resto dos EUA. Para isso
contribuiu sua formação étnica e
social. Uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, Nova Orleans tornou-se um borbulhante
caldeirão cultural graças às contribuições de franceses, espanhóis, ingleses, irlandeses, eslavos, italianos, gregos e cubanos,
além, é claro, dos africanos que
chegaram até ali na condição de
escravos.
O clima cosmopolita que já dominava a cidade no final do século
19 explica seu distanciamento da
conservadora doutrina luterana
que proliferou pelo resto do país.
Em Nova Orleans, graças ao contato direto entre negros e brancos,
a música e a dança integravam a
vida social. O prazer era visto como algo saudável e legítimo.
Traços culturais como esses
também ajudam a explicar o papel essencial que Nova Orleans
desempenhou na gestação do
jazz. Hoje já se sabe que chamá-la
de "berço do jazz" é um exagero
que virou senso comum, mas não
há dúvida de que a cidade desempenhou o papel de grande incubadora nessa criação musical.
Tendo isso em mente, ao ver hoje as tristes imagens de uma Nova
Orleans submersa e devastada,
penso que nem tudo esteja perdido. Essa cidade tão original e criativa existiu até hoje graças às pessoas, especialmente os artistas
que ali nasceram e trabalharam,
relacionando-se de uma forma
inédita naquele país, em meio a
contexto cultural e racial muito
particular.
Lembrando da alegria de John
Boutté, Ivan Neville, Davell Crawford, Terrance Simien e Corey
Henry, músicos de Nova Orleans
que se apresentaram aqui em São
Paulo no último domingo (ironicamente, horas antes de verem
sua cidade ser destruída), torço
para que, enxugadas as lágrimas,
eles sejam capazes de cantar e
dançar no aparente enterro de sua
cidade. E que usem a animação de
sempre para fazê-la reviver.
Carlos Calado é jornalista e crítico musical, autor de "O Jazz como Espetáculo",
entre outros livros.
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