São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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Uma cidade capaz de dançar no seu enterro

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem teve a sorte de conhecer Nova Orleans sabe que, além da impressionante diversidade musical que a cidade transpirava a cada esquina, ali também havia um ambiente especial. Sem a sisudez de outras cidades dos EUA, Nova Orleans cativava pela descontração, pelos sorrisos que se viam tanto no turístico French Quarter como entre os edifícios do Central Business District.
Na verdade, nem seria preciso ir até a cidade para captar essa atmosfera. Basta ouvir algum dos vários gêneros musicais cultivados ali, seja o rhythm & blues, o funk, o zydeco ou o jazz das bandas de metais, marcados por uma carga de alegria que praticamente seduz o ouvinte, levando-o a sorrir ou mesmo dançar. Não era à toa que, até a chegada do furacão, qualquer dia era dia de festa, nas ruas, bares e clubes noturnos da capital musical da Louisiana.
Dois anos atrás, recém-chegado à cidade para cobrir mais uma vez o gigantesco New Orleans Jazz & Heritage Festival, evento que levava anualmente cerca de 500 mil pessoas ao Fair Grounds (o hipódromo local), tive a sorte de presenciar um dos rituais mais originais e característicos da cultura de Nova Orleans.
Ao cruzar a Canal Street, a longa avenida que se estende do rio Mississippi ao lago Pontchartrain, encontrei um ruidoso cortejo. Centenas de pessoas, incluindo grandes astros da música local, como os cantores Dr. John, Irma Thomas e Deacon John, desfilavam pela avenida, numa homenagem ao veterano guitarrista Earl King, mestre do blues de Nova Orleans, que morrera na véspera.
Animada pelo som estridente dos trompetes e trombones das bandas Rebirth Brass Band e Young Men Olympian Junior Benevolent, incluindo índios do Mardi Gras (o Carnaval local), a procissão seguiu por outras ruas, em direção ao Armstrong Park.
Fechando o cortejo, numa carruagem negra puxada por cavalos, vinha o caixão do saudoso bluesman. Porém, em vez de lágrimas e olhares tristes, o que se via era uma celebração festiva, com os seguidores dançando e cantando. Alguns até portavam sombrinhas coloridas, além de grandes fotos do homenageado.
Rituais como esse, que pouco tinham a ver com as compenetradas tradições britânicas, eram bastante comuns em Nova Orleans já no século 19. Trata-se, segundo antropólogos e historiadores, de uma espécie de sincretismo, originado em rituais e práticas semelhantes às de algumas regiões da África e da Europa.
Assim como algumas expressões musicais bem características de Nova Orleans, esse festivo ritual funerário reforça as diferenças culturais que a cidade revela frente ao resto dos EUA. Para isso contribuiu sua formação étnica e social. Uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, Nova Orleans tornou-se um borbulhante caldeirão cultural graças às contribuições de franceses, espanhóis, ingleses, irlandeses, eslavos, italianos, gregos e cubanos, além, é claro, dos africanos que chegaram até ali na condição de escravos.
O clima cosmopolita que já dominava a cidade no final do século 19 explica seu distanciamento da conservadora doutrina luterana que proliferou pelo resto do país. Em Nova Orleans, graças ao contato direto entre negros e brancos, a música e a dança integravam a vida social. O prazer era visto como algo saudável e legítimo.
Traços culturais como esses também ajudam a explicar o papel essencial que Nova Orleans desempenhou na gestação do jazz. Hoje já se sabe que chamá-la de "berço do jazz" é um exagero que virou senso comum, mas não há dúvida de que a cidade desempenhou o papel de grande incubadora nessa criação musical.
Tendo isso em mente, ao ver hoje as tristes imagens de uma Nova Orleans submersa e devastada, penso que nem tudo esteja perdido. Essa cidade tão original e criativa existiu até hoje graças às pessoas, especialmente os artistas que ali nasceram e trabalharam, relacionando-se de uma forma inédita naquele país, em meio a contexto cultural e racial muito particular.
Lembrando da alegria de John Boutté, Ivan Neville, Davell Crawford, Terrance Simien e Corey Henry, músicos de Nova Orleans que se apresentaram aqui em São Paulo no último domingo (ironicamente, horas antes de verem sua cidade ser destruída), torço para que, enxugadas as lágrimas, eles sejam capazes de cantar e dançar no aparente enterro de sua cidade. E que usem a animação de sempre para fazê-la reviver.


Carlos Calado é jornalista e crítico musical, autor de "O Jazz como Espetáculo", entre outros livros.


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