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ARTIGO
A Europa e os referendos
RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O resultado negativo do referendo francês sobre o projeto de
Tratado Constitucional europeu
-referendo que provocou um
interesse inédito; alguns compararam com o que suscitou o "caso
Dreifus"-, confirmado pelo
"não" holandês da última quarta-feira, representou um verdadeiro
terremoto, que abalou o presidente Chirac, os dois partidos de
centro-direita, o partido socialista
e os verdes. Venceram as extremas direitas, a extrema esquerda
(comunistas e trotskistas), os neojacobinos de Pierre Chevènement, os ultraliberais, e a parcela
do PS e dos verdes que se dispôs a
votar contra o tratado. Pela enumeração das tendências que sofreram uma derrota, e sobretudo
das que saíram vitoriosas, vê-se a
complexidade do fenômeno.
A meu ver, a questão geral da
Unidade Européia e a do projeto
de um Tratado Constitucional
-dois problemas que é preciso
não confundir sem mais- é de
um interesse excepcional, não só
por suas implicações, que seria
um erro subestimar, mas porque
ela põe à prova os quadros conceituais de leitura da política contemporânea (penso principalmente nas leituras de esquerda) e
as perspectivas políticas que se
traçam a partir deles (penso sobretudo nas perspectivas da esquerda e em particular na dos socialistas democráticos).
Estou convencido de que o problema da União Européia não pode ser entendido nem a partir da
visão de uma esquerda radical
clássica, que pensa o processo essencialmente em termos do choque de interesses econômico-políticos nacionais ou do movimento e dos interesses globais do capital, nem a partir de um ponto de
vista simplesmente político, no
estilo do discurso dominante, na
França, nos meios de centro-esquerda, que faz tábula rasa daqueles elementos ou, pelo menos, subestima a sua relevância. Na realidade, a questão da União Européia é "estratégica" ("Un cas d'école", como diriam os franceses),
no sentido de que ela revela as dificuldades tanto das explicações
marxistas clássicas como as das
análises e perspectivas dos liberalismos político, incluindo em certa medida os social-liberalismos.
A Europa do que se trata? Por
que um certo número de homens
políticos (democrata-cristãos, socialistas e outros), em oposição a
gaulistas, comunistas, gauchistas,
jacobinos, conservadores e parte
dos socialistas, dispôs-se a começar o difícil trabalho de construção da unidade européia no início
dos anos 50? Creio que houve dois
motivos principais. Por um lado,
a vontade de liquidar as guerras
na Europa. Seria preciso lembrar
que o mundo não esteve longe de
uma repetição funesta do que
aconteceu no primeiro após-guerra com o Tratado de Versailles e o pós-Versalhes, quando a
imposição à Alemanha de cláusulas extremamente duras alimentou o militarismo alemão e contribuiu para a vitória de Hitler. De
Gaulle era em princípio favorável
a um desmantelamento da Alemanha. Foi contra esse revanchismo que lutaram os pró-europeus.
Esses homens políticos eram adversários da política "soviética"
-se do lado de cá o hegemonismo americano se desencadeava,
do lado de lá era a época do "golpe
de Praga" e da liquidação das democracias. Porém, se havia entre
os "pais fundadores" uma atitude
pró-americana, ela coexistia com
uma tendência neutralista de recusa dos dois blocos.
O segundo motivo, e esse o decisivo, era a consciência de que,
diante dos dois gigantes, as nações da Europa não tinham nenhum futuro, a menos que buscassem uma forma de integração.
Foi a aspiração à grandeza política
(não propriamente o amor pela
humanidade, mas também não
propriamente o interesse do capital) que impulsionou o projeto.
Surgiu assim, no interior de filosofias econômicas e mesmo políticas muito próximas e atravessando tanto a direita como a esquerda, com exceção dos extremos, uma ruptura entre pró-europeus e antieuropeus.
Se a Europa nasceu no contexto
da Guerra Fria, ela nasceu também no interior de um universo
em que o Estado providência e
uma economia "dirigista" eram
aceitos, em alguma medida, mesmo pelos seus adversários. Essa
situação se altera com a crise que
se inicia nos anos 70. A partir daí,
a exemplo do que ocorreu por toda parte, a ideologia neoliberal
começou a ter um peso considerável na construção da Europa, e
tal ideologia se reforçará depois
com a entrada dos países do leste.
Mas pouco a pouco, e mesmo se
os social-democratas no poder fizeram grandes concessões à filosofia econômica emergente, surgiu, na Comunidade como depois
na União, uma oposição constante entre uma esquerda social-democrata e uma direita neoliberal.
A atitude a tomar diante do tratado não representa nenhuma dificuldade para os adversários da
Europa. O problema se coloca para os verdadeiros pró-europeus
(os quais, no que se refere à esquerda, se encontram principalmente no PS ou entre os verdes,
além dos independentes). Esse
projeto é, no seu conteúdo e formas, um projeto aceitável. Mas
antes, e pelo próprio fato de que é
preciso distinguir os dois níveis, é
necessário voltar ao problema geral -quais as razões que devem
levar um socialista democrata a
apoiar a construção européia, razões que poderiam eventualmente contribuir para um posicionamento favorável em relação ao
tratado.
As razões são principalmente
três. Primeiro, como já foi dito, a
construção européia garantiu
uma conquista fundamental: a
paz entre as nações da Europa, em
particular entre os dois velhos inimigos que se digladiaram durante
75 anos. Só esse resultado, que,
claro, dependeu também de outras circunstâncias, já é um argumento de peso em favor do processo. A segunda razão é a de que
a criação de um espaço mais amplo e unificador cria condições
em última análise mais favoráveis
ao desenvolvimento das lutas sindicais e populares em geral. O velho argumento da tradição da esquerda, segundo o qual a ampliação e universalização do capitalismo criava condições para a revolução proletária, pode ser transposto, dentro de certos limites,
para uma situação em que não se
trata mais -para mim, pelo menos, não se trata- de revolução
proletária. Se não se conta mais
com esta, subsistem entretanto
objetivos a longo prazo, e entre
estes está, a meu ver, eminentemente, a redução radical da jornada de trabalho -única solução
para o problema aparentemente
insolúvel do desemprego. Ora,
uma mutação desse tipo não é
possível sem lutas integradas e
sem movimento sindical e popular em nível transnacional. A
construção européia, apoiada ou
não pelo patronato, serve a esses
objetivos.
A terceira razão é a de que no
plano internacional temos atualmente um grande poder hegemônico, os EUA, e um outro em ascensão rápida, a China. Tanto um
como outro (o segundo é pior do
que o primeiro, mas o primeiro é
por ora muito mais forte e toma
um rumo fundamentalista funesto que talvez não seja transitório)
são extremamente agressivos, autocráticos ou potencialmente antidemocráticos, além de irresponsáveis no que se refere à sobrevivência do planeta. A única possibilidade de ter uma alternativa a
esses dois poderes é uma Europa
forte. Essa Europa será capitalista,
sem dúvida, mas há capitalismos
e capitalismos, e existem em princípio possibilidades de que o capitalismo europeu, marcado até
aqui pela social-democracia, venha a mostrar uma face diferente.
Passando ao tratado. Deve-se
dizer que ele contém um número
importante de modificações reforçando os procedimentos democráticos e que a declaração de
direitos fundamentais nele incluída contém muitos elementos positivos -igualdade entre os sexos
e mesmo possibilidade de discriminação positiva em favor do "sexo sub-representado", reafirmação dos direitos do homem
(quem acha que isso é pouco importante pergunte aos tchecos,
poloneses ou bálticos), proscrição
da pena de morte (praticada amplamente pelos dois gigantes), defesa do meio ambiente, incluindo
o princípio de precaução etc.
Qual o problema então? Ele reside num número importante de
disposições no plano econômico,
que estão principalmente na terceira parte, e certos número de
princípios gerais sobre a ordem
econômica que aparecem desde a
primeira. Há no tratado um "leitmotiv" em torno da "concorrência não falseada" ou da "concorrência livre" que aflora pelo menos uma dezena de vezes. Dir-se-á
que isso não é grave, que já fora
aprovado anteriormente e, principalmente, que esse lado "neoliberal" é equilibrado pelas referências à "tendência ao pleno emprego", à Previdência Social, ao direito de greve (fala-se mesmo, uma
vez, de co-gestão), ao "direito a
trabalhar", aos serviços públicos,
além da idéia geral de "economia
social de mercado". De fato, o texto é o resultado de uma longa discussão entre duas tendências e de
compromissos entre elas. Porém
os adversários do tratado respondem que as concessões não modificam o essencial e que a hierarquia de exigências põe no topo a
estabilidade dos preços e a limitação dos déficits, além de acolher o
princípio da independência do
Banco Central europeu.
Quanto ao fato de a maioria
desses dispositivos já ter sido
aprovada, lembram que colocá-los num documento que se apresenta como uma Constituição
tem outro peso (negativo), acrescentando que a revisão do tratado
só poderia ser feita por unanimidade (o que já era o caso anteriormente, mas para uma Europa
muito menor e muito menos heterogênea). Resumindo a sua argumentação, eles insistem sobre a
idéia de que o Tratado Constitucional é perigoso -ele não se limita a incluir alguns princípios de
regulação da vida econômica (como ocorre em algumas outras
Constituições, em que se trata em
geral de proteger os economicamente frágeis); ele inclui como
princípio uma verdadeira filosofia econômica, senão uma política
econômica. O que instituiria um
ferrolho antidemocrático, cujas
conseqüências se pode imaginar.
Oito países já ratificaram o tratado por via parlamentar e um
por referendo. Restam 14 que ainda devem se manifestar através de
um ou de outro procedimento,
incluindo o Reino Unido. Mas o
resultado negativo dos referendos
francês e holandês pode interromper o processo para o melhor
ou para o pior.
Ruy Fausto, 70, filósofo, é professor
emérito da USP e ex-professor da Universidade de Paris 8.
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