São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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ARTIGO

A Europa e os referendos

RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O resultado negativo do referendo francês sobre o projeto de Tratado Constitucional europeu -referendo que provocou um interesse inédito; alguns compararam com o que suscitou o "caso Dreifus"-, confirmado pelo "não" holandês da última quarta-feira, representou um verdadeiro terremoto, que abalou o presidente Chirac, os dois partidos de centro-direita, o partido socialista e os verdes. Venceram as extremas direitas, a extrema esquerda (comunistas e trotskistas), os neojacobinos de Pierre Chevènement, os ultraliberais, e a parcela do PS e dos verdes que se dispôs a votar contra o tratado. Pela enumeração das tendências que sofreram uma derrota, e sobretudo das que saíram vitoriosas, vê-se a complexidade do fenômeno.
A meu ver, a questão geral da Unidade Européia e a do projeto de um Tratado Constitucional -dois problemas que é preciso não confundir sem mais- é de um interesse excepcional, não só por suas implicações, que seria um erro subestimar, mas porque ela põe à prova os quadros conceituais de leitura da política contemporânea (penso principalmente nas leituras de esquerda) e as perspectivas políticas que se traçam a partir deles (penso sobretudo nas perspectivas da esquerda e em particular na dos socialistas democráticos).
Estou convencido de que o problema da União Européia não pode ser entendido nem a partir da visão de uma esquerda radical clássica, que pensa o processo essencialmente em termos do choque de interesses econômico-políticos nacionais ou do movimento e dos interesses globais do capital, nem a partir de um ponto de vista simplesmente político, no estilo do discurso dominante, na França, nos meios de centro-esquerda, que faz tábula rasa daqueles elementos ou, pelo menos, subestima a sua relevância. Na realidade, a questão da União Européia é "estratégica" ("Un cas d'école", como diriam os franceses), no sentido de que ela revela as dificuldades tanto das explicações marxistas clássicas como as das análises e perspectivas dos liberalismos político, incluindo em certa medida os social-liberalismos.
A Europa do que se trata? Por que um certo número de homens políticos (democrata-cristãos, socialistas e outros), em oposição a gaulistas, comunistas, gauchistas, jacobinos, conservadores e parte dos socialistas, dispôs-se a começar o difícil trabalho de construção da unidade européia no início dos anos 50? Creio que houve dois motivos principais. Por um lado, a vontade de liquidar as guerras na Europa. Seria preciso lembrar que o mundo não esteve longe de uma repetição funesta do que aconteceu no primeiro após-guerra com o Tratado de Versailles e o pós-Versalhes, quando a imposição à Alemanha de cláusulas extremamente duras alimentou o militarismo alemão e contribuiu para a vitória de Hitler. De Gaulle era em princípio favorável a um desmantelamento da Alemanha. Foi contra esse revanchismo que lutaram os pró-europeus. Esses homens políticos eram adversários da política "soviética" -se do lado de cá o hegemonismo americano se desencadeava, do lado de lá era a época do "golpe de Praga" e da liquidação das democracias. Porém, se havia entre os "pais fundadores" uma atitude pró-americana, ela coexistia com uma tendência neutralista de recusa dos dois blocos.
O segundo motivo, e esse o decisivo, era a consciência de que, diante dos dois gigantes, as nações da Europa não tinham nenhum futuro, a menos que buscassem uma forma de integração. Foi a aspiração à grandeza política (não propriamente o amor pela humanidade, mas também não propriamente o interesse do capital) que impulsionou o projeto. Surgiu assim, no interior de filosofias econômicas e mesmo políticas muito próximas e atravessando tanto a direita como a esquerda, com exceção dos extremos, uma ruptura entre pró-europeus e antieuropeus.
Se a Europa nasceu no contexto da Guerra Fria, ela nasceu também no interior de um universo em que o Estado providência e uma economia "dirigista" eram aceitos, em alguma medida, mesmo pelos seus adversários. Essa situação se altera com a crise que se inicia nos anos 70. A partir daí, a exemplo do que ocorreu por toda parte, a ideologia neoliberal começou a ter um peso considerável na construção da Europa, e tal ideologia se reforçará depois com a entrada dos países do leste. Mas pouco a pouco, e mesmo se os social-democratas no poder fizeram grandes concessões à filosofia econômica emergente, surgiu, na Comunidade como depois na União, uma oposição constante entre uma esquerda social-democrata e uma direita neoliberal.
A atitude a tomar diante do tratado não representa nenhuma dificuldade para os adversários da Europa. O problema se coloca para os verdadeiros pró-europeus (os quais, no que se refere à esquerda, se encontram principalmente no PS ou entre os verdes, além dos independentes). Esse projeto é, no seu conteúdo e formas, um projeto aceitável. Mas antes, e pelo próprio fato de que é preciso distinguir os dois níveis, é necessário voltar ao problema geral -quais as razões que devem levar um socialista democrata a apoiar a construção européia, razões que poderiam eventualmente contribuir para um posicionamento favorável em relação ao tratado.
As razões são principalmente três. Primeiro, como já foi dito, a construção européia garantiu uma conquista fundamental: a paz entre as nações da Europa, em particular entre os dois velhos inimigos que se digladiaram durante 75 anos. Só esse resultado, que, claro, dependeu também de outras circunstâncias, já é um argumento de peso em favor do processo. A segunda razão é a de que a criação de um espaço mais amplo e unificador cria condições em última análise mais favoráveis ao desenvolvimento das lutas sindicais e populares em geral. O velho argumento da tradição da esquerda, segundo o qual a ampliação e universalização do capitalismo criava condições para a revolução proletária, pode ser transposto, dentro de certos limites, para uma situação em que não se trata mais -para mim, pelo menos, não se trata- de revolução proletária. Se não se conta mais com esta, subsistem entretanto objetivos a longo prazo, e entre estes está, a meu ver, eminentemente, a redução radical da jornada de trabalho -única solução para o problema aparentemente insolúvel do desemprego. Ora, uma mutação desse tipo não é possível sem lutas integradas e sem movimento sindical e popular em nível transnacional. A construção européia, apoiada ou não pelo patronato, serve a esses objetivos.
A terceira razão é a de que no plano internacional temos atualmente um grande poder hegemônico, os EUA, e um outro em ascensão rápida, a China. Tanto um como outro (o segundo é pior do que o primeiro, mas o primeiro é por ora muito mais forte e toma um rumo fundamentalista funesto que talvez não seja transitório) são extremamente agressivos, autocráticos ou potencialmente antidemocráticos, além de irresponsáveis no que se refere à sobrevivência do planeta. A única possibilidade de ter uma alternativa a esses dois poderes é uma Europa forte. Essa Europa será capitalista, sem dúvida, mas há capitalismos e capitalismos, e existem em princípio possibilidades de que o capitalismo europeu, marcado até aqui pela social-democracia, venha a mostrar uma face diferente.
Passando ao tratado. Deve-se dizer que ele contém um número importante de modificações reforçando os procedimentos democráticos e que a declaração de direitos fundamentais nele incluída contém muitos elementos positivos -igualdade entre os sexos e mesmo possibilidade de discriminação positiva em favor do "sexo sub-representado", reafirmação dos direitos do homem (quem acha que isso é pouco importante pergunte aos tchecos, poloneses ou bálticos), proscrição da pena de morte (praticada amplamente pelos dois gigantes), defesa do meio ambiente, incluindo o princípio de precaução etc.
Qual o problema então? Ele reside num número importante de disposições no plano econômico, que estão principalmente na terceira parte, e certos número de princípios gerais sobre a ordem econômica que aparecem desde a primeira. Há no tratado um "leitmotiv" em torno da "concorrência não falseada" ou da "concorrência livre" que aflora pelo menos uma dezena de vezes. Dir-se-á que isso não é grave, que já fora aprovado anteriormente e, principalmente, que esse lado "neoliberal" é equilibrado pelas referências à "tendência ao pleno emprego", à Previdência Social, ao direito de greve (fala-se mesmo, uma vez, de co-gestão), ao "direito a trabalhar", aos serviços públicos, além da idéia geral de "economia social de mercado". De fato, o texto é o resultado de uma longa discussão entre duas tendências e de compromissos entre elas. Porém os adversários do tratado respondem que as concessões não modificam o essencial e que a hierarquia de exigências põe no topo a estabilidade dos preços e a limitação dos déficits, além de acolher o princípio da independência do Banco Central europeu.
Quanto ao fato de a maioria desses dispositivos já ter sido aprovada, lembram que colocá-los num documento que se apresenta como uma Constituição tem outro peso (negativo), acrescentando que a revisão do tratado só poderia ser feita por unanimidade (o que já era o caso anteriormente, mas para uma Europa muito menor e muito menos heterogênea). Resumindo a sua argumentação, eles insistem sobre a idéia de que o Tratado Constitucional é perigoso -ele não se limita a incluir alguns princípios de regulação da vida econômica (como ocorre em algumas outras Constituições, em que se trata em geral de proteger os economicamente frágeis); ele inclui como princípio uma verdadeira filosofia econômica, senão uma política econômica. O que instituiria um ferrolho antidemocrático, cujas conseqüências se pode imaginar.
Oito países já ratificaram o tratado por via parlamentar e um por referendo. Restam 14 que ainda devem se manifestar através de um ou de outro procedimento, incluindo o Reino Unido. Mas o resultado negativo dos referendos francês e holandês pode interromper o processo para o melhor ou para o pior.


Ruy Fausto, 70, filósofo, é professor emérito da USP e ex-professor da Universidade de Paris 8.


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