São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Jordaniano de origem pobre e sem brilho intelectual desenvolveu o uso sistemático do terror em vídeo

Como Zarqawi virou o pior inimigo dos EUA

PATRICE CLAUDE
DO "LE MONDE"

Oum Sayed, a mãe, já morta, de Abu Musab al Zarqawi, fingia que seu filho era "uma pessoa terna, sentimental", quase incompreendida. Seria possível perdoar Nicholas Berg, Kim Sun-Il, Jack Hensley, Kenneth Bigley e outros tantos reféns infortunados que caíram em suas garras caso não percebessem a humanidade em seu carrasco. Todos pereceram, todos decapitados vivos pela mesma mão desse "rapaz gentil".
Zarqawi é sem dúvida o mais sanguinário dos guerreiros do Apocalipse surgidos no Iraque depois da invasão americana em 2003. Na semana passada, o mundo inteiro quase acreditou que estivesse à beira da morte. A Al Qaeda, dizia-se, buscava um sucessor.
Mas, em 27 de maio, Zarqawi ressuscitou. Seu grupo reivindicou a autoria de novos ataques e o homem "sentimental" enviou uma mensagem via internet ao "emir" que escolheu, Osama bin Laden. "Sofri um ferimento leve. Mantemos a jihad contra os judeus e os infiéis". O itinerário sangrento do "inimigo número um" dos EUA no Iraque não mudou.
Mas quem é esse homem? Imaginativo e inescrupuloso, Zarqawi desenvolveu o uso sistemático do terror em vídeo, difundindo pela internet inúmeras imagens das carnificinas praticadas por ele e por seus comandados. O ataque à missão da ONU em Bagdá, em agosto de 2003 -no qual morreram 23 pessoas, inclusive o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, representante de Kofi Annan-, foi obra sua. A democracia, que os enviados da ONU se esforçavam por preparar, "é uma religião de cruzados, um insulto ao islã", explica Zarqawi. O atentado que matou 85 peregrinos em agosto na cidade sagrada xiita de Najaf também foi obra dele. O aiatolá Mohamad Baqr al Hakim, então chefe da mais poderosa facção xiita do país, era o alvo principal.
Para Zarqawi, o assassino sunita jordaniano, os xiitas são "a escória da terra, um punhal cravado nas costas do islã". Porque são maioria no Iraque, tinham a ganhar com as futuras eleições e se recusaram a desencadear uma jihad contra a ocupação; por isso, viraram o alvo maior de Zarqawi.
Em março de 2004, uma série de atentados com carros-bomba contra os xiitas matou 181 pessoas. Menos de um ano mais tarde, um carro-bomba matou 125 pessoas em Hilla, outra cidade xiita. O objetivo declarado do assassino jordaniano é matar o maior número possível de seguidores do imã Ali, os xiitas, para incitá-los à vingança contra a minoria sunita, "adormecida", segundo ele, e assim desencadear uma guerra civil.

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Hoje, enquanto se multiplicam as mortes de sunitas e a hostilidade entre as duas comunidades cresce, é forçoso constatar que Zarqawi conseguiu plantar os germes de uma guerra fratricida.
Há sete meses, o Estado-Maior americano o considerou diretamente responsável pela morte de pelo menos 675 iraquianos e cerca de 40 estrangeiros. Há centenas de outras vítimas, iraquianos e não-iraquianos, soldados, policiais e civis, homens, mulheres e crianças, feridos ou mutilados em dezenas de atentados, que se deve acrescentar ao seu total de crimes.
O "Leão da Mesopotâmia", como o chamam seus seguidores, é selvagem, inescrupuloso. Sólido, severo, portador de uma barba espessa e de um olhar vazio. Impôs-se como "príncipe da Al Qaeda no país dos dois rios", o Iraque. Ele é o campeão do caos e o mestre inconteste do terror. Desde 30 de junho de 2004, na lista dos maiores inimigos dos EUA, a recompensa por Zarqawi é a mesma oferecida por Bin Laden: US$ 25 milhões.
Como um menino tímido das colinas jordanianas, sem dinheiro, sem profissão ou prestígio intelectual, se tornou, em menos de três anos, o inimigo número um da hiperpotência no Iraque?
Como é que Zarqawi, 39, sem título nem bagagem religiosa, conseguiu obter a notoriedade quase mítica de que desfruta em todos os meios, islâmicos e outros?
Muitos iraquianos pensam que são os EUA mesmos que "fabricaram" Zarqawi. Em documentário sobre ele, o autor jordaniano Fouad Hussein aponta para Colin Powell como o primeiro, "falsamente, à época", a mencionar o nome do assassino na tribuna do Conselho de Segurança da ONU.
Seis semanas antes da invasão do Iraque, o caso girava, para o então secretário de Estado americano, em torno de justificar a blitz iminente contra Bagdá. Além das famosas armas de destruição em massa, estava presente no Iraque "um certo senhor Abu Musab al Zarqawi", disse Powell, a peça que comprovava a aliança entre Saddam Hussein e a Al Qaeda.
Foram precisos 20 meses para que a CIA (agência de inteligência dos EUA) concluísse que "não havia provas conclusivas" dessa cumplicidade. Na verdade, o líder da Al Qaeda, com quem Zarqawi até então tivera consideráveis diferenças, só o anunciou oficialmente como líder da rede no Iraque em 17 de outubro de 2004.
Mas o mal estava feito. Publicamente identificado pelos americanos como o Darth Vader do Iraque, Zarqawi deixou de enfrentar dificuldades de recrutamento ou financiamento. Tornou-se rapidamente o maior ídolo de uma organização de guerrilha islâmica que sua celebridade e o medo que ele inspira ajudaram a criar, como anteparo por trás do qual grupos de resistência ligados ao extinto partido Baath dissimulam suas ações menos gloriosas, e pretexto às centenas de ataques e bombardeios dos EUA a todas as cidades do Iraque em que o fanático, jamais localizado com precisão, teria supostamente sido avistado.
O assassino jordaniano se tornou o fantasma do Iraque pós-Saddam Hussein. Sempre avistado, cercado por vezes, ou até ferido, mas jamais capturado.

Vocação
Mas de onde saiu esse sujeito, se perguntam os iraquianos?
Como no caso de numerosos jovens muçulmanos que se sentiam perdidos no final dos anos 80, tudo começou, para Zarqawi, no Afeganistão, a "terra da jihad".
Na época, seu nome era Ahmad Fadil Nazzal al Khalayleh. Nasceu em 20 de outubro de 1966 em uma família de beduínos pobres em Zarka (daí Zarqawi, o homem de Zarka), próxima a Amã, uma cidade de 800 mil habitantes. O pai de Ahmad era funcionário da prefeitura, sua mãe cuidava dos 10 filhos. A família vivia em um cubículo de cimento bruto. O quarto do futuro matador-chefe da Mesopotâmia tinha vista para um cemitério. Quando menino, brincava entre os túmulos.
Sabe-se, com certeza, que Ahmad se viu forçado a abandonar os estudos aos 17 anos e se uniu ao grande exército de desempregados da Jordânia, vagando desocupado pelas ruas com seus colegas, arrumando brigas, mexendo com as mulheres, embriagando-se constantemente e fazendo uma tatuagem, uma âncora. Anos mais tarde, o bandido tentaria apagar com ácido a imagem tatuada, um signo vergonhoso para "o verdadeiro crente" que ele pensava se ter tornado.
Ahmad estava com 22 anos. Seu pai, morto em 1994, o fez casar com uma prima. A família Khalayleh integra a poderosa tribo dos Bani Hassan, que conta com pelo menos 200 mil membros entre Jordânia, Síria e Iraque, o que permitiria a ele, mais tarde, cruzar essas fronteiras sem problema.
Ahmad teve dois filhos com a primeira mulher e dois com a segunda. Em 1989, ele prepara sua primeira partida para a "terra da jihad". Tarde demais, porque a guerra afegã contra os "malfeitores soviéticos" havia terminado.
Mas uma guerra civil estava começando. Em Peshawar, a cidade paquistanesa próxima à fronteira afegã onde os mujahidin (guerreiros islâmicos) costumavam se refugiar em grandes números, um encontro mudaria sua vida.
Seis anos mais velho que Ahmad, Abu Mohammed al Makdissi era um religioso com diploma universitário, feroz mas carismático. Ele pregava junto aos salafitas, muçulmanos que vivem sua fé como na era do Profeta, a mais obscurantista das facções islâmicas. Osama Bin Laden foi criado na versão wahhabita dessa mesma doutrina. Ahmad decidiu permanecer no Afeganistão.
De acordo com o livro bem documentado mas desigual de Jean-Charles Brissard, "Zarkaoui, le nouveau visage d'Al-Qaida" [Zarqawi, o novo rosto da Al Qaeda], o futuro Abu Musab participou, em 1991 e 1992, dos sangrentos combates entre facções afegãs rivais. Adquiriu experiência militar e voltou para seu país em 1993. Tornara-se "um afegão", nome que os moradores do Oriente Médio usam, com admiração, para designar todos os combatentes árabes que tinham "feito" a jihad naquele país, nas montanhas.
Voltando a Zarka com Makdissi, fundaram um grupo clandestino, o Beyt al Imam. Os dois foram detidos em 1994, carregando armas e explosivos. Condenado a 15 anos de prisão, Zarqawi passou oito meses em isolamento, e provavelmente sofreu torturas.
Encontrou refúgio na religião, memorizando os 6.236 versículos do Alcorão, e quando foi devolvido à cela comum, logo se impôs como emir, chefe de bando. "Fazia com que todos o obedecessem com um simples olhar", recorda o médico da prisão.

Encontro com Bin Laden
Em 18 de março de 1999, a Jordânia decidiu anistiar três mil prisioneiros. Os "afegãos" mais perigosos foram convidados a sair do país e não mais voltar. Makdissi se recusou e continuou preso. Zarqawi aceitou e retomou o caminho do Paquistão, prosseguindo de lá para o Afeganistão.
O país estava sob o domínio do Taleban, e Osama bin Laden instalou sua base em território afegão, desenvolvendo a Al Qaeda.
Zarqawi foi apresentado ao "xeque". Mas os dois não se entenderam. O saudita, que jamais viveu entre xiitas, queria a queda da casa de Saud e a guerra total contra o Ocidente. Obcecado por Israel, o jordaniano desejava derrubar primeiro o Estado judeu e a monarquia de seu país natal. Por isso, se transferiu da região controlada por Bin Laden, em torno de Kandahar, para a ponta oposta do país, em Herat, onde criou, com assistência material da Al Qaeda, mas sem uma aliança formal, seu campo de treinamento. Chamou seus amigos de Zarka, recrutou palestinos que haviam combatido na jihad, sírios e jordanianos.
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, seguidos da represália americana contra o Afeganistão, Zarqawi deixou Herat e participou dos combates finais em Tora Bora, onde, segundo escuta telefônica da CIA, foi ferido no estômago e na perna durante um ataque aéreo.
Entrou clandestinamente no Irã, onde passou quatro meses, mantendo contato com seus homens e recrutando novos membros, especialmente cidadãos da África do Norte vindos da Alemanha, Espanha e Itália, para onde retornaram a fim de criar células "adormecidas" que despertariam no futuro de modo espetacular.
Em julho de 2002, ele foi para o Curdistão iraquiano, perto da fronteira iraniana, em uma zona que não estava sob o controle de Saddam, mas de uma organização local de jihad, o Ansar al Islam. Uma aliança foi formada, e Zarqawi se preparou para a guerra, realizando viagens discretas a Bagdá, à Síria e à sua cidade.
Em 28 de outubro de 2002, um diplomata americano em Amã, Laurence Foley, foi assassinado. "Por ordem dele", disseram os assassinos presos. O FBI (polícia federal dos EUA) investigou. Em 6 de abril de 2004, um ano após a queda de Saddam, Zarqawi foi condenado à morte, in absentia.
Um mês depois, sua organização, inicialmente nomeada Tawhid Wal Jihad ("unicidade entre Deus e a Guerra Santa") estreou de modo sangrento no cenário iraquiano com a decapitação, em vídeo, do americano Nicholas Berg. O místico sanguinário da Jordânia e sua horda selvagem davam início a um reino de terror que perdura até hoje.


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