|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
IRAQUE SOB TUTELA
Jordaniano de origem pobre e sem brilho intelectual desenvolveu o uso sistemático do terror em vídeo
Como Zarqawi virou o pior inimigo dos EUA
PATRICE CLAUDE
DO "LE MONDE"
Oum Sayed, a mãe, já morta, de
Abu Musab al Zarqawi, fingia que
seu filho era "uma pessoa terna,
sentimental", quase incompreendida. Seria possível perdoar Nicholas Berg, Kim Sun-Il, Jack
Hensley, Kenneth Bigley e outros
tantos reféns infortunados que
caíram em suas garras caso não
percebessem a humanidade em
seu carrasco. Todos pereceram,
todos decapitados vivos pela mesma mão desse "rapaz gentil".
Zarqawi é sem dúvida o mais
sanguinário dos guerreiros do
Apocalipse surgidos no Iraque
depois da invasão americana em
2003. Na semana passada, o mundo inteiro quase acreditou que estivesse à beira da morte. A Al Qaeda, dizia-se, buscava um sucessor.
Mas, em 27 de maio, Zarqawi
ressuscitou. Seu grupo reivindicou a autoria de novos ataques e o
homem "sentimental" enviou
uma mensagem via internet ao
"emir" que escolheu, Osama bin
Laden. "Sofri um ferimento leve.
Mantemos a jihad contra os judeus e os infiéis". O itinerário sangrento do "inimigo número um"
dos EUA no Iraque não mudou.
Mas quem é esse homem? Imaginativo e inescrupuloso, Zarqawi
desenvolveu o uso sistemático do
terror em vídeo, difundindo pela
internet inúmeras imagens das
carnificinas praticadas por ele e
por seus comandados. O ataque à
missão da ONU em Bagdá, em
agosto de 2003 -no qual morreram 23 pessoas, inclusive o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, representante de Kofi Annan-, foi
obra sua. A democracia, que os
enviados da ONU se esforçavam
por preparar, "é uma religião de
cruzados, um insulto ao islã", explica Zarqawi. O atentado que
matou 85 peregrinos em agosto
na cidade sagrada xiita de Najaf
também foi obra dele. O aiatolá
Mohamad Baqr al Hakim, então
chefe da mais poderosa facção xiita do país, era o alvo principal.
Para Zarqawi, o assassino sunita
jordaniano, os xiitas são "a escória da terra, um punhal cravado
nas costas do islã". Porque são
maioria no Iraque, tinham a ganhar com as futuras eleições e se
recusaram a desencadear uma jihad contra a ocupação; por isso,
viraram o alvo maior de Zarqawi.
Em março de 2004, uma série de
atentados com carros-bomba
contra os xiitas matou 181 pessoas. Menos de um ano mais tarde, um carro-bomba matou 125
pessoas em Hilla, outra cidade xiita. O objetivo declarado do assassino jordaniano é matar o maior
número possível de seguidores do
imã Ali, os xiitas, para incitá-los à
vingança contra a minoria sunita,
"adormecida", segundo ele, e assim desencadear uma guerra civil.
Publicidade americana
Hoje, enquanto se multiplicam
as mortes de sunitas e a hostilidade entre as duas comunidades
cresce, é forçoso constatar que
Zarqawi conseguiu plantar os germes de uma guerra fratricida.
Há sete meses, o Estado-Maior
americano o considerou diretamente responsável pela morte de
pelo menos 675 iraquianos e cerca
de 40 estrangeiros. Há centenas
de outras vítimas, iraquianos e
não-iraquianos, soldados, policiais e civis, homens, mulheres e
crianças, feridos ou mutilados em
dezenas de atentados, que se deve
acrescentar ao seu total de crimes.
O "Leão da Mesopotâmia", como o chamam seus seguidores, é
selvagem, inescrupuloso. Sólido,
severo, portador de uma barba espessa e de um olhar vazio. Impôs-se como "príncipe da Al Qaeda no
país dos dois rios", o Iraque. Ele é
o campeão do caos e o mestre inconteste do terror. Desde 30 de junho de 2004, na lista dos maiores
inimigos dos EUA, a recompensa
por Zarqawi é a mesma oferecida
por Bin Laden: US$ 25 milhões.
Como um menino tímido das
colinas jordanianas, sem dinheiro, sem profissão ou prestígio intelectual, se tornou, em menos de
três anos, o inimigo número um
da hiperpotência no Iraque?
Como é que Zarqawi, 39, sem título nem bagagem religiosa, conseguiu obter a notoriedade quase
mítica de que desfruta em todos
os meios, islâmicos e outros?
Muitos iraquianos pensam que
são os EUA mesmos que "fabricaram" Zarqawi. Em documentário
sobre ele, o autor jordaniano
Fouad Hussein aponta para Colin
Powell como o primeiro, "falsamente, à época", a mencionar o
nome do assassino na tribuna do
Conselho de Segurança da ONU.
Seis semanas antes da invasão
do Iraque, o caso girava, para o
então secretário de Estado americano, em torno de justificar a blitz
iminente contra Bagdá. Além das
famosas armas de destruição em
massa, estava presente no Iraque
"um certo senhor Abu Musab al
Zarqawi", disse Powell, a peça que
comprovava a aliança entre Saddam Hussein e a Al Qaeda.
Foram precisos 20 meses para
que a CIA (agência de inteligência
dos EUA) concluísse que "não havia provas conclusivas" dessa
cumplicidade. Na verdade, o líder
da Al Qaeda, com quem Zarqawi
até então tivera consideráveis diferenças, só o anunciou oficialmente como líder da rede no Iraque em 17 de outubro de 2004.
Mas o mal estava feito. Publicamente identificado pelos americanos como o Darth Vader do Iraque, Zarqawi deixou de enfrentar
dificuldades de recrutamento ou
financiamento. Tornou-se rapidamente o maior ídolo de uma
organização de guerrilha islâmica
que sua celebridade e o medo que
ele inspira ajudaram a criar, como
anteparo por trás do qual grupos
de resistência ligados ao extinto
partido Baath dissimulam suas
ações menos gloriosas, e pretexto
às centenas de ataques e bombardeios dos EUA a todas as cidades
do Iraque em que o fanático, jamais localizado com precisão, teria supostamente sido avistado.
O assassino jordaniano se tornou o fantasma do Iraque pós-Saddam Hussein. Sempre avistado, cercado por vezes, ou até ferido, mas jamais capturado.
Vocação
Mas de onde saiu esse sujeito, se
perguntam os iraquianos?
Como no caso de numerosos jovens muçulmanos que se sentiam
perdidos no final dos anos 80, tudo começou, para Zarqawi, no
Afeganistão, a "terra da jihad".
Na época, seu nome era Ahmad
Fadil Nazzal al Khalayleh. Nasceu
em 20 de outubro de 1966 em uma
família de beduínos pobres em
Zarka (daí Zarqawi, o homem de
Zarka), próxima a Amã, uma cidade de 800 mil habitantes. O pai
de Ahmad era funcionário da prefeitura, sua mãe cuidava dos 10 filhos. A família vivia em um cubículo de cimento bruto. O quarto
do futuro matador-chefe da Mesopotâmia tinha vista para um cemitério. Quando menino, brincava entre os túmulos.
Sabe-se, com certeza, que Ahmad se viu forçado a abandonar
os estudos aos 17 anos e se uniu ao
grande exército de desempregados da Jordânia, vagando desocupado pelas ruas com seus colegas,
arrumando brigas, mexendo com
as mulheres, embriagando-se
constantemente e fazendo uma
tatuagem, uma âncora. Anos
mais tarde, o bandido tentaria
apagar com ácido a imagem tatuada, um signo vergonhoso para
"o verdadeiro crente" que ele
pensava se ter tornado.
Ahmad estava com 22 anos. Seu
pai, morto em 1994, o fez casar
com uma prima. A família Khalayleh integra a poderosa tribo
dos Bani Hassan, que conta com
pelo menos 200 mil membros entre Jordânia, Síria e Iraque, o que
permitiria a ele, mais tarde, cruzar
essas fronteiras sem problema.
Ahmad teve dois filhos com a
primeira mulher e dois com a segunda. Em 1989, ele prepara sua
primeira partida para a "terra da
jihad". Tarde demais, porque a
guerra afegã contra os "malfeitores soviéticos" havia terminado.
Mas uma guerra civil estava começando. Em Peshawar, a cidade
paquistanesa próxima à fronteira
afegã onde os mujahidin (guerreiros islâmicos) costumavam se refugiar em grandes números, um
encontro mudaria sua vida.
Seis anos mais velho que Ahmad, Abu Mohammed al Makdissi era um religioso com diploma universitário, feroz mas carismático. Ele pregava junto aos salafitas, muçulmanos que vivem
sua fé como na era do Profeta, a
mais obscurantista das facções islâmicas. Osama Bin Laden foi
criado na versão wahhabita dessa
mesma doutrina. Ahmad decidiu
permanecer no Afeganistão.
De acordo com o livro bem documentado mas desigual de Jean-Charles Brissard, "Zarkaoui, le
nouveau visage d'Al-Qaida" [Zarqawi, o novo rosto da Al Qaeda], o
futuro Abu Musab participou, em
1991 e 1992, dos sangrentos combates entre facções afegãs rivais.
Adquiriu experiência militar e
voltou para seu país em 1993. Tornara-se "um afegão", nome que
os moradores do Oriente Médio
usam, com admiração, para designar todos os combatentes árabes que tinham "feito" a jihad naquele país, nas montanhas.
Voltando a Zarka com Makdissi, fundaram um grupo clandestino, o Beyt al Imam. Os dois foram
detidos em 1994, carregando armas e explosivos. Condenado a 15
anos de prisão, Zarqawi passou
oito meses em isolamento, e provavelmente sofreu torturas.
Encontrou refúgio na religião,
memorizando os 6.236 versículos
do Alcorão, e quando foi devolvido à cela comum, logo se impôs
como emir, chefe de bando. "Fazia com que todos o obedecessem
com um simples olhar", recorda o
médico da prisão.
Encontro com Bin Laden
Em 18 de março de 1999, a Jordânia decidiu anistiar três mil prisioneiros. Os "afegãos" mais perigosos foram convidados a sair do
país e não mais voltar. Makdissi se
recusou e continuou preso. Zarqawi aceitou e retomou o caminho do Paquistão, prosseguindo
de lá para o Afeganistão.
O país estava sob o domínio do
Taleban, e Osama bin Laden instalou sua base em território afegão, desenvolvendo a Al Qaeda.
Zarqawi foi apresentado ao "xeque". Mas os dois não se entenderam. O saudita, que jamais viveu
entre xiitas, queria a queda da casa de Saud e a guerra total contra o
Ocidente. Obcecado por Israel, o
jordaniano desejava derrubar primeiro o Estado judeu e a monarquia de seu país natal. Por isso, se
transferiu da região controlada
por Bin Laden, em torno de Kandahar, para a ponta oposta do
país, em Herat, onde criou, com
assistência material da Al Qaeda,
mas sem uma aliança formal, seu
campo de treinamento. Chamou
seus amigos de Zarka, recrutou
palestinos que haviam combatido
na jihad, sírios e jordanianos.
Depois dos atentados de 11 de
setembro de 2001, seguidos da represália americana contra o Afeganistão, Zarqawi deixou Herat e
participou dos combates finais
em Tora Bora, onde, segundo escuta telefônica da CIA, foi ferido
no estômago e na perna durante
um ataque aéreo.
Entrou clandestinamente no
Irã, onde passou quatro meses,
mantendo contato com seus homens e recrutando novos membros, especialmente cidadãos da
África do Norte vindos da Alemanha, Espanha e Itália, para onde
retornaram a fim de criar células
"adormecidas" que despertariam
no futuro de modo espetacular.
Em julho de 2002, ele foi para o
Curdistão iraquiano, perto da
fronteira iraniana, em uma zona
que não estava sob o controle de
Saddam, mas de uma organização local de jihad, o Ansar al Islam. Uma aliança foi formada, e
Zarqawi se preparou para a guerra, realizando viagens discretas a
Bagdá, à Síria e à sua cidade.
Em 28 de outubro de 2002, um
diplomata americano em Amã,
Laurence Foley, foi assassinado.
"Por ordem dele", disseram os assassinos presos. O FBI (polícia federal dos EUA) investigou. Em 6
de abril de 2004, um ano após a
queda de Saddam, Zarqawi foi
condenado à morte, in absentia.
Um mês depois, sua organização, inicialmente nomeada Tawhid Wal Jihad ("unicidade entre
Deus e a Guerra Santa") estreou
de modo sangrento no cenário
iraquiano com a decapitação, em
vídeo, do americano Nicholas
Berg. O místico sanguinário da
Jordânia e sua horda selvagem
davam início a um reino de terror
que perdura até hoje.
Texto Anterior: Crise expõe dilemas da UE e agrava divisões internas Próximo Texto: Panorâmica - Europa: Incêndio mata duas pessoas em túnel Índice
|