São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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MÍDIA EM TRANSFORMAÇÃO

Emissora do australiano Rupert Murdoch mistura opinião com notícia e consegue roubar audiência das redes CBS, ABC e NBC

Nova fórmula da Fox muda a TV americana

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

No último dia 2 de novembro, a vida dos três principais executivos de jornalismo das três maiores emissoras abertas norte-americanas piorou, e não é porque o povo decidiu que George W. Bush ficaria mais quatro anos como inquilino da Casa Branca. Naquela noite, menos telespectadores buscaram a cobertura da ABC, CBS e NBC do que em 2000. Sim, as três juntas ainda atraíram quase 40 milhões de pessoas. Mas a ação mesmo estava na TV paga.
Enquanto o republicano contava os votos, a Fox News triplicava sua audiência. Mais de 8 milhões de telespectadores clicaram seus controles remotos na emissora do australiano Rupert Murdoch, que funciona como uma espécie de porta-voz eletrônico da administração Bush. Enquanto checavam os monitores de audiência, Roger Ailes, ex-assessor de Nixon, Reagan e Bush pai e atual presidente do canal noticioso, e o próprio Murdoch brindavam com Coca-Cola e cachorro-quente.
"Eles mudaram a natureza do jogo", afirmou Neal Shapiro, o presidente da divisão de notícias (o equivalente brasileiro a diretor de telejornalismo) da NBC, uma das "Três Grandes" -as outras são ABC, cuja divisão noticiosa é comandada por David Westin, e CBS, liderada por Andrew Heyward. Nos anos 70, os principais telejornais do trio chegaram a dominar 75% da audiência. Hoje, têm 19%. Para piorar, dois de seus âncoras estão se aposentando (leia texto na página seguinte).
A Folha conversou com os três jornalistas quando o trio esteve na Universidade Stanford, em Palo Alto, na Califórnia, para uma sessão de perguntas e respostas com os estudantes, da qual a reportagem também participou. Leia os principais tópicos da entrevista e do encontro:

FENÔMENO FOX NEWS
"A Fox News adicionou um novo ingrediente importante ao atual sistema: eles misturam notícia com opinião. Eles são uma mistura de noticiário e programa de rádio na TV. É uma fórmula poderosa." (Andrew Heyward, CBS)
"Tudo bem dar opinião, mas esta precisa ser identificada claramente. O problema é quando o noticiário e a opinião são apresentados como a mesma coisa, como eles fazem. Isso é querer empurrar uma opinião como fato, o que corrói nossa missão principal. Nós temos de manter a meta central, que é contar a verdade como a vemos." (David Westin, ABC)
"É importante olharmos para esta crescente cornucópia de opções, e a Fox News começou isso. Hoje é muito diferente do oligopólio confortável que prevaleceu no começo dos telejornais, quando você tinha as três principais emissoras com uma fatia de mercado enorme. Acho que essa mudança acaba beneficiando o telespectador, pois nos pressiona a buscar mais a excelência." (Heyward, CBS)
"Sim, eu dou à Fox News o crédito de mudar a natureza do jogo." (Neal Shapiro, NBC)

AUDIÊNCIA DAS "TRÊS IRMÃS"
"TV paga como a Fox News, blogs na internet, precisamos estar atentos a toda essa inovação tecnológica. Mas, por enquanto, uma boa parte do público ainda depende da TV aberta para se informar e nós temos de atender à essa demanda da melhor maneira possível." (Westin, ABC)
"Dezessete milhões de pessoas assistiram à cobertura das eleições na TV paga, o.k., mas 40 milhões acompanharam nas TVs abertas. É uma boa notícia para a TV paga, mas eles ainda têm menos do que um em cada três espectadores." (Heyward, CBS)
"Antes as pessoas organizavam sua vida de maneira a parar às 18h30 [horário em que os principais telejornais vão ao ar na TV norte-americana] para sentar em suas poltronas confortáveis e assistir a sua meia hora de notícias. O desafio agora é que nós temos de ir a esse telespectador, e não mais ele a nós. É conquistar o indivíduo numa sociedade saturada por emissoras noticiosas 24 horas por dia no ar, como a Fox News e a CNN, e sites noticiosos." (Westin, ABC)

GUERRA DO IRAQUE
"Algumas das coisas que cobrimos durante a guerra não tiveram repercussão. A NBC entrevistou várias vezes um militar de alta patente que dizia diariamente que não haveria tropas suficientes no Iraque no pós-invasão. Esse fato, por alguma razão, não causou o menor efeito no público." (Shapiro, NBC)
"Nós cansamos de noticiar que não havia a menor evidência de cumplicidade de Saddam Hussein no ataque terrorista de 11 de Setembro, assim como que não havia nenhuma evidência da existência de armas de destruição em massa. Mesmo assim, as pesquisas mostram que um alarmante número de pessoas ainda acredita que havia esse tipo de armas no Iraque... Sendo curto e grosso, nós decepcionamos o povo norte-americano na questão das armas de destruição em massa. Havia muitas questões e nós não fomos céticos o suficiente. Eu me arrependo sinceramente disso." (Westin, ABC)

COBERTURA DAS ELEIÇÕES 2004
"Cobrir uma eleição presidencial é um serviço público que as emissoras são obrigadas a oferecer a seus espectadores. Se a meta fosse audiência e lucro, nenhuma emissora faria esse tipo de cobertura." (Westin, ABC)
"Gostei muito da nossa cobertura nestas eleições. Foi um exemplo para as futuras. Fiquei feliz com a cautela dos repórteres em noticiar os resultados. Eles se contiveram e não cantaram vitória no meio do jogo. Que foi exatamente o que as emissoras fizeram em 2000." (Heyward, CBS)
"Não nos arrependemos de ter usado todo o tempo que foi necessário para obter o resultado correto desta vez." (Shapiro, NBC)

PESQUISAS DE BOCA-DE-URNA
"As pesquisas de boca-de-urna foram tendenciosas em relação ao candidato democrata [John Kerry]. É verdade." (Heyward, CBS)
"Discordo. A boca-de-urna é um instrumento importante, mas só se for interpretada corretamente. Não acho justo dizer que houve erro. Um levantamento desse tipo não é tão acurado quanto o resultado da eleição, é só uma mostra." (Westin, ABC)
"Não, nenhum de nós está contente com o fato de as pesquisas terem errado o resultado inicialmente. Todos nós estamos revisando a metodologia. Acho que houve, sim, erros, alguns dos quais conseguiremos sanar, outros não." (Shapiro, NBC)

FRAUDE NAS ELEIÇÕES
"Recebemos dezenas de denúncias de que houve fraude em algum lugar nestas eleições, a maioria vinda de blogs. Nenhuma era verdadeira. Acredite, eu adoraria reportar uma história cabeluda sobre a eleição. [Risos] Na Flórida, então, seria ótimo, mas simplesmente não aconteceu." (Shapiro, NBC)
COBERTURA DAS CONVENÇÕES
"Acho que as convenções dos partidos [democrata e republicano, que ratificam os candidatos à Presidência a cada quatro anos] estão tendo cada vez menos interesse noticioso. Nós todos cobrimos os discursos dos candidatos e dos políticos mais importantes, mas eu não me surpreenderia de ver cada vez menos cobertura desse tipo no futuro." (Heyward, CBS)
"A cobertura das emissoras da TV paga foi mais exaustiva porque incluiu detalhes que só importam ou interessam aos insiders ou aos que chamamos de "political junkies" [viciados em política]." (Shapiro, NBC)

FENÔMENO JON STEWART "Pessoas como o Jon Stewart só conseguem fazer o que fazem porque as emissoras sérias fizeram suas coberturas sérias antes. É saudável existir paródia e sátira, mas se isso é o futuro do noticiário como andam dizendo [uma das principais fontes de informação de adolescentes nestas eleições foram os chamados programas noticiosos cômicos], então não há motivo nenhum para dar risada." (Heyward, CBS)

FUTURO DAS "TRÊS IRMÃS"
"Há uma explosão no número de provedores noticiosos e seminoticiosos, há a banda larga, o "video-on-demand", os celulares... E nós, das grandes emissoras, temos de reconhecer isso. A tecnologia permite ao público querer que nós cheguemos a ele, em vez de fazê-lo vir a nós, como acontecia antes." (Westin, ABC)
"Sim, as pessoas podem acessar as notícias de diversas maneiras, mas acredito que sempre haverá um mercado para o telejornal noturno." (Heyward, CBS)
"Quanto mais o jornalismo migrar para o ambiente da internet, mais os telejornais serão relevantes. Porque aquela combinação mágica de palavras e imagens pode levar o espectador a algum lugar e fazê-lo ter uma experiência diferente. E isso só os telejornais fazem." (Shapiro, NBC)

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