São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

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GEOPOLÍTICA

"EUA devem privilegiar multilateralismo"

Para Joseph Nye, país deve redefinir seu papel e liderar a produção de bens públicos globais

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

No atual contexto geopolítico internacional, os EUA deveriam desempenhar um papel de liderança na produção de bens públicos globais, como conseguiu o Reino Unido durante o século 19, em áreas como o desenvolvimento socioeconômico, a segurança e o combate ao terrorismo.
Essa redefinição do papel americano requer uma ampla discussão sobre os interesses nacionais dos EUA e uma atitude mais multilateral do que a demonstrada nos primeiros meses da administração de George W. Bush.
A análise é de Joseph Nye, doutor em ciência política e reitor da Kennedy School of Government da Universidade Harvard (Massachusetts), que foi consultor do Departamento de Estado dos EUA de 1977 a 1979 durante o governo do ex-presidente Jimmy Carter e presidente do Conselho Nacional de Segurança dos EUA.
Para Nye, embora grandes potências globais -como a China e a Rússia- apóiem o combate ao terrorismo internacional liderado pelos EUA, ainda existem diferenças relevantes entre esses Estados. Assim, "seria prematuro proclamar uma nova ordem mundial" por causa dos atentados de 11 de setembro.
Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Após os atentados suicidas de 11 de setembro, seria correto afirmar que o "hard power" ganhou um novo impulso?
Joseph Nye -
O "hard power", ou a utilização de instrumentos militares e econômicos para coagir outros atores políticos, econômicos ou sociais a fazer o que eles não querem, sempre foi importante no cenário político internacional embora, é verdade, tenha ganho novo alento após os atentados suicidas ao Pentágono e ao World Trade Center. Aqueles que, durante o oba-oba dos anos 1990, acreditaram que a segurança e a força militar não fossem mais tão importantes se enganaram totalmente.
Todavia, como argumento em meu novo livro, "The Paradox of American Power" [o paradoxo do poder americano], o "soft power", ou a habilidade de conseguir que os outros façam o que você quer sobretudo por meio de influência cultural e ideológica, está-se tornando cada vez mais importante na era da informação global. Os eventos de 11 de setembro não alteraram essa tendência. Prova disso é a verdadeira batalha dos EUA para conquistar o coração e a mente dos muçulmanos.
Dado o papel que os EUA desempenham na cena internacional atualmente, creio que as previsões que fiz sobre o poder americano no século 21 em meu livro "Bound to Lead: The Changing Nature of American Power" [fadado a liderar: a transformação do poder americano" estivessem corretas. Afinal, é nele que dou destaque à magnitude do "soft power" americano.

Folha - Como os ataques terroristas influenciaram as relações internacionais? Seria exagerado afirmar que eles deram início a uma nova ordem mundial?
Nye -
Os ataques de 11 de setembro demonstraram que a tecnologia coloca poderes de destruição maciça nas mãos de atores não-governamentais, o que anteriormente era reservado somente aos Estados. Eles mostraram que uma ameaça real paira sobre a comunidade internacional.
Assim, Estados de peso, como os EUA, a Rússia e a China, decidiram alterar sua atitude tradicional no que se refere às relações internacionais e cooperar na luta contra o terrorismo. Porém diferenças em relação a outros temas continuam existindo entre esses países. Seria prematuro proclamar uma nova ordem mundial.

Folha - Que papel os EUA deveriam desempenhar na cena internacional? Washington deveria agora repensar sua política externa?
Nye -
Os EUA deveriam ser líderes na produção de bens públicos globais, como fez o Reino Unido durante o século 19, em áreas como o desenvolvimento, a segurança e o combate ao terrorismo.
Essa redefinição do papel americano requer uma ampla discussão sobre os interesses nacionais dos EUA e uma atitude mais multilateral do que a demonstrada nos primeiros meses do governo de George W. Bush. O país tem de privilegiar o multilateralismo.
Em assuntos específicos, no Oriente Médio particularmente, os EUA deveriam continuar a fazer pressão para que o processo de paz fosse retomado, como fizeram durante a administração de Bill Clinton. Não podemos esquecer, no entanto, que isso não poria fim ao terrorismo. Afinal, [Osama" bin Laden planejou os ataques terroristas quando o processo de paz entre palestinos e israelenses ainda estava em curso.

Folha - Muitos analistas afirmam que, após 11 de setembro, a Europa perdeu um pouco de sua influência e que a Rússia voltou a ter um papel crucial na cena internacional. O que o sr. pensa disso?
Nye -
Creio que seja um exagero dizer que a Europa perdeu parte de sua influência no período que se seguiu aos atentados. Por outro lado, os trágicos eventos expuseram os problemas que o continente europeu tem no que se refere a agir como uma só entidade. Ademais, ficou claro que a maior parte das forças de segurança européias é deficiente quando tem de agir de modo global.
Alguns Estados, como o Reino Unido, ganharam influência por meio de sua cooperação militar com os esforços americanos ou de sua atividade diplomática. Outros não o fizeram e deixaram de ganhar influência internacional. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, utilizou os eventos de 11 de setembro para ajustar a política externa do país, deixando-a mais próxima ao Ocidente, no entanto a influência da Rússia não aumentou tanto assim.

Folha - Como o sr. analisa a possibilidade de a guerra ao terrorismo internacional ser expandida a países como o Iraque, o Sudão, a Somália ou o Iêmen?
Nye -
As próximas etapas da guerra ao terrorismo deveriam ter como objetivo a continuação da destruição da rede terrorista Al Qaeda [de Bin Laden", que, aparentemente, tem células em dezenas de países. Na maioria dos casos, esse esforço englobará ações civis, não militares. Trata-se de medidas relacionadas à cooperação em áreas como a coleta de informações, a atividade policial, o sistema bancário e a alfândega.
Na Somália ou o no Iêmen, a força militar pode ser necessária se os governos locais não forem capazes de controlar as células da Al Qaeda ou se eles não demonstrarem interesse em fazê-lo.

Folha - O abandono americano do Tratado Antimísseis Balísticos pode pôr em xeque o equilíbrio geoestratégico internacional?
Nye -
Pessoalmente, não teria anunciado agora que os EUA abandonarão o TAB dentro de seis meses. Contudo não creio que esse abandono faça grande diferença no que se refere ao equilíbrio estratégico porque a natureza técnica do sistema [de defesa antimísseis, que os EUA pretendem desenvolver" é limitada demais para produzir esse efeito.


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