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SOCIEDADE
Guia de história que se autodefine como "politicamente incorreto" chegou à 8ª posição na lista do "New York Times"
Revisionismo histórico vira best-seller nos EUA
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Teses revisionistas são comuns
nos EUA, mas o livro "The Politically Incorrect Guide to American
History" (o guia politicamente incorreto da história americana), do
historiador Thomas Woods Jr.
-que, em sua introdução, se descreve como um esforço para "colocar as coisas no lugar"-, chegou ao oitavo lugar na lista de
best-sellers do "New York Times"
e tornou-se uma febre em universidades conservadoras do país.
Seu autor, que se diz "horrorizado com o que a "direita" americana se tornou nos últimos tempos", afirmou à Folha que sua
obra nada mais é do que uma tentativa de "expor os absurdos que
são ensinados como "história
americana", desmitificando eventos e personagens e desmascarando os simpatizantes do governo
que ditam as regras da historiografia tradicional dos EUA" (leia
entrevista na página seguinte).
Todavia sua interpretação revisionista da história, segundo a
qual, por exemplo, a Guerra da
Secessão não constituiu uma
guerra civil, mas uma agressão do
norte contra o sul, vem provocando controvérsia e atraindo leitores. Até a última quinta-feira, seu
guia -cujo objetivo não é oferecer uma "visão completa da história americana", segundo ele-
ainda estava em 17º lugar na lista
do "Times" dos livros não-ficcionais mais vendidos nos EUA.
"O resultado disso [do modo
como a história dos EUA é ensinada] é uma "história americana"
fictícia, uma leitura tão distante
da realidade que chega a ser risível. Alguém tinha de mostrar que
esse fenômeno não passa de pura
propaganda", afirmou Woods Jr.
Embora muitos dos temas por
ele abordados façam parte da miríade de causas aparentemente
"distantes da realidade" defendidas pela extrema direita americana, Woods Jr. admitiu estar "indignado" com a condução da política americana atualmente. Esta,
para ele, está sob a responsabilidade de "pseudoconservadores".
Questionado, por exemplo, sobre o escândalo de tortura de presos em Abu Ghraib, no Iraque, ele
declarou: "Os chamados "conservadores" pensam que a barbárie
seja algo que deve ser celebrado e
que só covardes de esquerda possam opor-se à tortura".
"Conservadores verdadeiros se
opuseram ao uso da bomba atômica contra o Japão no fim da Segunda Guerra porque se tratava
de uma ação moralmente repreensível, que nenhum cálculo
utilitário podia justificar. Os senhores da guerra que se dizem
conservadores hoje são uma vergonha para o pensamento conservador, que já foi nobre", acrescentou o polêmico historiador.
Mesmo assim, muitas de suas
teses são defendidas por personalidades ultraconservadoras, sobretudo no sul dos EUA. Um dos
pontos mais controversos de seu
guia discorre sobre a Guerra da
Secessão [1861-65]. "Uma guerra
civil envolve duas ou mais partes
que lutam pelo controle do mesmo governo. Ora, no caso da
Guerra da Secessão, o sul lutava
para deixar os EUA, não para dominá-los", explicou o historiador.
De acordo com David Herbert
Donald, professor emérito de história dos EUA na Universidade
Harvard e ganhador do Prêmio
Pulitzer em 1960 e em 1988, porém, a afirmação é "absurda".
"Os EUA eram um só país, a
União, e o sul tentou a separação.
O norte atacou, então, o sul para
manter a unidade nacional. É lógico que se tratou de uma guerra
civil, visto que foi protagonizada
por grupos de um mesmo povo, o
que define um conflito civil", afirmou o autor de, entre outros,
"Lincoln", o presidente que liderou o norte em sua vitória sobre o
sul na Guerra da Secessão.
Outros autores
Woods Jr. não é o único historiador revisionista que vem causando controvérsia nos círculos
acadêmicos americanos. Jim Powell, historiador e pesquisador do
Instituto Cato -um "think tank"
libertário de Washington-, e seu
livro "FDR's Folly" (a loucura de
Franklin Delano Roosevelt) também causam burburinho por onde passam (leia texto ao lado).
"A reputação das principais figuras históricas é sujeita a altos e
baixos com o passar do tempo.
Até a Guerra da Secessão, por
exemplo, Thomas Jefferson [terceiro presidente dos EUA, de 1801
a 1809] era o mais reverenciado
"fundador da América". Em seguida, entretanto, sua reputação piorou porque ele defendera o direito
dos Estados de se separarem da
União", apontou Powell.
"Alexander Hamilton, que defendia um governo forte e centralizado, tornou-se, então, o mais
reverenciado pelos historiadores.
A reputação de Jefferson somente
foi recuperada na década de 20,
depois da publicação de novas
biografias. Mais tarde, ele voltou à
moda não como "campeão das liberdades", mas como um exemplo de civismo. Não creio que
Roosevelt esteja imune a essas
tendências cíclicas. Escrevi meu
livro porque pouca gente tem coragem de desafiar o mito em que
ele se transformou", disse Powell.
Para Donald, todavia, trata-se
de uma tentativa de "reescrever
certos eventos históricos para
adequá-los a uma agenda política
bastante atual". "Ninguém discute o modo como foi adotada a 14ª
Emenda à Constituição, a abrangência da Primeira Emenda ou o
Civil Rights Act [lei de direitos civis] de 1964, como faz Woods Jr.,
se não tiver uma intenção velada
por trás da retórica", analisou.
Outra obra do gênero é "In Defense of Internment" (em defesa
do confinamento), de Michelle
Malkin, que expressa uma visão
relativamente positiva do confinamento de americanos de origem japonesa na Segunda Guerra.
O tema é tão delicado que até o
presidente republicano Ronald
Reagan (1981-89), um ícone do
conservadorismo americano,
condenou a política de confinamento de pessoas de origem japonesa durante a guerra e assinou
uma lei de reparação.
Mesmo assim, a lista de obras
revisionistas publicadas nos EUA,
nos últimos anos, é extensa. Mais
uma prova de que, apesar das
controversas interpretações da
história, a liberdade de expressão
ainda é um direito inalienável de
todos os cidadãos americanos,
como garante a Primeira Emenda
à Constituição. Esta, aliás, também é alvo de contestação por
parte dos revisionistas.
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