São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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SOCIEDADE

Guia de história que se autodefine como "politicamente incorreto" chegou à 8ª posição na lista do "New York Times"

Revisionismo histórico vira best-seller nos EUA

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Teses revisionistas são comuns nos EUA, mas o livro "The Politically Incorrect Guide to American History" (o guia politicamente incorreto da história americana), do historiador Thomas Woods Jr. -que, em sua introdução, se descreve como um esforço para "colocar as coisas no lugar"-, chegou ao oitavo lugar na lista de best-sellers do "New York Times" e tornou-se uma febre em universidades conservadoras do país.
Seu autor, que se diz "horrorizado com o que a "direita" americana se tornou nos últimos tempos", afirmou à Folha que sua obra nada mais é do que uma tentativa de "expor os absurdos que são ensinados como "história americana", desmitificando eventos e personagens e desmascarando os simpatizantes do governo que ditam as regras da historiografia tradicional dos EUA" (leia entrevista na página seguinte).
Todavia sua interpretação revisionista da história, segundo a qual, por exemplo, a Guerra da Secessão não constituiu uma guerra civil, mas uma agressão do norte contra o sul, vem provocando controvérsia e atraindo leitores. Até a última quinta-feira, seu guia -cujo objetivo não é oferecer uma "visão completa da história americana", segundo ele- ainda estava em 17º lugar na lista do "Times" dos livros não-ficcionais mais vendidos nos EUA.
"O resultado disso [do modo como a história dos EUA é ensinada] é uma "história americana" fictícia, uma leitura tão distante da realidade que chega a ser risível. Alguém tinha de mostrar que esse fenômeno não passa de pura propaganda", afirmou Woods Jr.
Embora muitos dos temas por ele abordados façam parte da miríade de causas aparentemente "distantes da realidade" defendidas pela extrema direita americana, Woods Jr. admitiu estar "indignado" com a condução da política americana atualmente. Esta, para ele, está sob a responsabilidade de "pseudoconservadores".
Questionado, por exemplo, sobre o escândalo de tortura de presos em Abu Ghraib, no Iraque, ele declarou: "Os chamados "conservadores" pensam que a barbárie seja algo que deve ser celebrado e que só covardes de esquerda possam opor-se à tortura".
"Conservadores verdadeiros se opuseram ao uso da bomba atômica contra o Japão no fim da Segunda Guerra porque se tratava de uma ação moralmente repreensível, que nenhum cálculo utilitário podia justificar. Os senhores da guerra que se dizem conservadores hoje são uma vergonha para o pensamento conservador, que já foi nobre", acrescentou o polêmico historiador.
Mesmo assim, muitas de suas teses são defendidas por personalidades ultraconservadoras, sobretudo no sul dos EUA. Um dos pontos mais controversos de seu guia discorre sobre a Guerra da Secessão [1861-65]. "Uma guerra civil envolve duas ou mais partes que lutam pelo controle do mesmo governo. Ora, no caso da Guerra da Secessão, o sul lutava para deixar os EUA, não para dominá-los", explicou o historiador.
De acordo com David Herbert Donald, professor emérito de história dos EUA na Universidade Harvard e ganhador do Prêmio Pulitzer em 1960 e em 1988, porém, a afirmação é "absurda".
"Os EUA eram um só país, a União, e o sul tentou a separação. O norte atacou, então, o sul para manter a unidade nacional. É lógico que se tratou de uma guerra civil, visto que foi protagonizada por grupos de um mesmo povo, o que define um conflito civil", afirmou o autor de, entre outros, "Lincoln", o presidente que liderou o norte em sua vitória sobre o sul na Guerra da Secessão.

Outros autores
Woods Jr. não é o único historiador revisionista que vem causando controvérsia nos círculos acadêmicos americanos. Jim Powell, historiador e pesquisador do Instituto Cato -um "think tank" libertário de Washington-, e seu livro "FDR's Folly" (a loucura de Franklin Delano Roosevelt) também causam burburinho por onde passam (leia texto ao lado).
"A reputação das principais figuras históricas é sujeita a altos e baixos com o passar do tempo. Até a Guerra da Secessão, por exemplo, Thomas Jefferson [terceiro presidente dos EUA, de 1801 a 1809] era o mais reverenciado "fundador da América". Em seguida, entretanto, sua reputação piorou porque ele defendera o direito dos Estados de se separarem da União", apontou Powell.
"Alexander Hamilton, que defendia um governo forte e centralizado, tornou-se, então, o mais reverenciado pelos historiadores. A reputação de Jefferson somente foi recuperada na década de 20, depois da publicação de novas biografias. Mais tarde, ele voltou à moda não como "campeão das liberdades", mas como um exemplo de civismo. Não creio que Roosevelt esteja imune a essas tendências cíclicas. Escrevi meu livro porque pouca gente tem coragem de desafiar o mito em que ele se transformou", disse Powell.
Para Donald, todavia, trata-se de uma tentativa de "reescrever certos eventos históricos para adequá-los a uma agenda política bastante atual". "Ninguém discute o modo como foi adotada a 14ª Emenda à Constituição, a abrangência da Primeira Emenda ou o Civil Rights Act [lei de direitos civis] de 1964, como faz Woods Jr., se não tiver uma intenção velada por trás da retórica", analisou.
Outra obra do gênero é "In Defense of Internment" (em defesa do confinamento), de Michelle Malkin, que expressa uma visão relativamente positiva do confinamento de americanos de origem japonesa na Segunda Guerra.
O tema é tão delicado que até o presidente republicano Ronald Reagan (1981-89), um ícone do conservadorismo americano, condenou a política de confinamento de pessoas de origem japonesa durante a guerra e assinou uma lei de reparação.
Mesmo assim, a lista de obras revisionistas publicadas nos EUA, nos últimos anos, é extensa. Mais uma prova de que, apesar das controversas interpretações da história, a liberdade de expressão ainda é um direito inalienável de todos os cidadãos americanos, como garante a Primeira Emenda à Constituição. Esta, aliás, também é alvo de contestação por parte dos revisionistas.

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