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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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BAGDÁ A CIDADE PROIBIDA

Controle de informações e inúmeros desmentidos fazem com que poucos realmente saibam o que acontece na capital iraquiana

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A AMÃ

Com seus trejeitos e humor ferino habituais, o ministro da Informação iraquiano, Mohammed Said Al-Sahaf, informava aos jornalistas reunidos na nova sede do Ministério da Informação, no próprio hotel Palestine onde a imprensa estrangeira está hospedada, que tinha notícias. Eram terríveis, dizia ele.
Dois ônibus de organizações não-governamentais que traziam escudos humanos de diversas partes do mundo de Amã, na Jordânia, para Bagdá tinham sido atingidos por bombas soltas pela coalizão anglo-americana.
"Há diversos feridos no hospital da cidade de Rutba, entre eles norte-americanos. Não sabemos ainda o número de mortos", disse Al-Sahaf. "É realmente incrível: agora, os bravos norte-americanos começaram a matar seus próprios compatriotas!".
Dois dias depois, um dos escudos humanos daria a seguinte entrevista: nunca houve bombardeio, mortos e nem mesmo ônibus. No caminho para Bagdá, disse, um carro que levava quatro voluntários, um deles realmente norte-americano, teve seu pneu furado por um prego bem no momento em que um avião da coalizão sobrevoava a rodovia.
O motorista, iraquiano, pensou que se tratava de um bombardeio, se assustou e jogou o carro para fora da estrada. Com isso, se machucou e feriu levemente os outros passageiros. Foi levado para o hospital de Rutba e lá espalhou que todos tinham sido vítimas de um ataque dos EUA.
Quem está falando a verdade?
A verdade é que poucas pessoas sabem o que realmente está acontecendo em Bagdá, e todas elas são membros do governo iraquiano. Nunca o que os britânicos chamam de "a névoa da guerra" esteve tão evidente quanto neste conflito, especialmente do lado dos invadidos, escolado pela estrutura montada por três décadas de uma ditadura que preza mais do que tudo o controle das informações e pratica uma censura ferrenha em todos os setores da imprensa.

"Da varanda do 11º andar"
O controle dos pouco mais de 120 jornalistas que continuam na capital iraquiana é cada dia pior e vem fazendo o veterano John F. Burns, do "New York Times", começar seus últimos textos citando sempre a frase: "Pelo menos o que consigo ver da varanda do décimo-primeiro andar de meu hotel em Bagdá".
Além de serem obrigados a andar com um guia apontado pelo governo e um motorista que não raro faz relatos de suas atividades para o serviço secreto, os jornalistas estrangeiros só podem se hospedar num único hotel, que é o mesmo onde agora está baseado o Ministério da Informação e sua onipresente polícia secreta.
Quando arriscam sair sozinhos, são presos e expulsos, como aconteceu na última segunda com um repórter australiano, que resolveu dar uma caminhada pela cidade sem o seu guia.
As saídas agora quase só acontecem em grupos, sempre em quatro ou cinco ônibus, e o destino é invariavelmente um alvo civil (nunca militar ou governamental, como os palácios atingidos, até ora inéditos para a imprensa) ou um dos hospitais da região que abriga as centenas de vítimas dos bombardeios.
Nas cerca de três ou quatro entrevistas coletivas diárias com um dos generais-ministros do governo Saddam Hussein, há um festival de contra-informações, negativas e desmentidos.
Não, os americanos não estão a 100 quilômetros de Bagdá (ou a 90, ou a 60...). Não, eles não dominaram o Aeroporto Internacional Saddam Hussein; o lugar que eles tomaram e estão confundindo é uma ex-base aérea britânica da Segunda Guerra Mundial. Sim, eles tomaram o aeroporto, mas nós estamos mandando milhares de soldados para tomá-lo de volta. Não, Saddam não está ferido.

Míssil identificado
Mesmo assim, é possível tentar contar o que acontece e até mesmo descobrir fatos que ambos os lados gostariam de ver continuarem escondidos.
Na última semana, por exemplo, o jornalista Robert Fisk, do londrino "The Independent", conseguiu confirmar que o ataque ao mercado Al Shaab, ocorrido no final da semana retrasada na capital iraquiana e que matou mais de 50 civis, foi mesmo um bombardeio de autoria da coalizão anglo-americana.
Ele achou no local um pedaço do míssil com o respectivo número de série, e a redação do jornal em Londres confirmou que se tratava realmente de um produto da fabricante de armas Raytheon, a mesma empresa de Tucson, no Arizona, que foi escolhida para implantar o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) no Brasil, num processo polêmico.
Todos os Tomahawk utilizados pelos EUA nesta guerra são de fabricação da Raytheon.
Antes, a reportagem da Folha havia revelado o caso de um ferido iraniano "hospitalizado" que saiu de carro logo após uma coletiva, numa armação evidente do governo.
Ainda, nos últimos dias, enquanto a coalizão dizia estar a menos de 10 km do centro de Bagdá, uma equipe da BBC que acompanha soldados britânicos, usando o aparelho de telefone por satélite Thuraya, conseguiu precisar que na verdade o destacamento distava 25 km da periferia da cidade.

"Traidores"
O precioso aparelho, que dá ao usuário sua localização exata, latitudinal e longitudinal, e funciona em virtualmente todo o Oriente Médio, desde que esteja ao ar livre, é um dos poucos pontos em comum entre as forças dos dois lados: ambos o odeiam em mãos civis e tentam controlar seu uso.
Na última quinta, o Comando Militar americano proibiu sua utilização pelos repórteres "embutidos" nos destacamentos.
No começo da semana, o governo iraquiano tinha levado ao ar na emissora estatal um comunicado em que relembrava aos cidadãos que era proibido o uso do telefone por satélite no país tanto por locais quanto por estrangeiros. Os flagrados, dizia o texto, seriam julgados como traidores em tempos de guerra.
O aviso ia além e se comprometia a recompensar com 5 milhões de dinares iraquianos (cerca de US$ 2.000) quem delatasse ao governo o nome e o endereço dos usuários clandestinos, "sejam eles traidores ou intrusos".

Toblerone na alfândega
A reportagem da Folha entrou no país com um deles, junto de um link de internet também por satélite. Vinham numa maleta tipo executivo. Como muitos outros antes, a equipe optou por não declará-los na fronteira iraquiana devido a relatos de outros jornalistas já em Bagdá que tiveram seus equipamentos confiscados, lacrados e entregues dias depois na então sede do Ministério da Informação, na capital.
Uma vez lá, o uso só era permitido nas dependências e no horário de funcionamento do órgão público, sob a supervisão de seus funcionários, o que limitaria ainda mais um trabalho já muito controlado. Quem seguiu essas regras não conseguiu transmitir, por exemplo, texto e fotos do começo da guerra, na madrugada do último dia 20 de março.
Na alfândega, um prosaico tablete do chocolate suíço Toblerone comprou a vista grossa do funcionário que revistaria as bagagens dos repórteres, presente aliás solicitado pelo próprio policial.
Uma vez no hotel em Bagdá, 600 quilômetros adiante, a maleta passava o dia escondida dentro da tubulação do ar-condicionado do quarto e seu funcionamento era restrito ao período noturno, entre as 19h e as 2h, sempre na parte baixa da varanda que dava vista para os guardas que vigiavam o edifício 24 horas por dia.
Na saída do país, no começo da semana que passou, com a maleta já deixada para trás no duto do ar-condicionado, o telefone e o link da internet por satélite viajaram num lugar inusitado: no lugar da placa de cerâmica que protege a parte da frente de um dos coletes à prova de bala comprados pela equipe da Folha em Londres antes da guerra.
A placa é o que faz o colete ser do tipo A3, ou seja, que suporta tiros de M16 e Kalashnikov, os fuzis utilizados respectivamente pela coalizão e pelo Exército iraquiano neste conflito. Por coincidência, é também exatamente do tamanho do aparelho.

Polícia secreta
Tanta preocupação se justificava. Durante as madrugadas, membros da polícia secreta que ficavam ostensivamente vigiando os corredores de todos os andares e o lobby de entrada do hotel da imprensa costumavam dar incertas nos quartos dos jornalistas em busca dos aparelhos proibidos. A mesma cena se repetia sempre: batidas violentas na porta, seguidas de gritos e truculência.
Muitos foram destruídos, e não poucos jornalistas foram presos e posteriormente expulsos do país por estarem desrespeitando a orientação do general-ministro, que por sua vez seguia ordens diretas de Saddam Hussein.
O quarto em que se hospedou a equipe da Folha foi visitado em duas noites diferentes. Os agentes não conseguiram entrar.
Nos quartos em que conseguiram, os policiais não deixaram um saldo agradável. Dois repórteres do tablóide nova-iorquino "Newsday" foram arrancados da cama no meio da noite, acusados de espionagem, e ficaram presos incomunicáveis por uma semana.
Uma equipe de TV italiana teve seus aparelhos destruídos e foi expulsa do país; uma fotógrafa que trabalhou na campanha do ex-vice-presidente americano Al Gore foi detida nas mesmas condições e continuava desaparecida até a conclusão desta edição.



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