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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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Falta míssil para ataque em massa, afirma brigadeiro

PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

O militar brasileiro que manteve os contatos mais próximos com o ditador Saddam Hussein avalia que o Iraque não tem tecnologia de mísseis de longo alcance, o que inviabilizaria na prática o uso de armas de destruição em massa, sejam nucleares, químicas ou biológicas.
"Armas nucleares os iraquianos não têm. Tenho certeza. Guerra química e bacteriológica, sem dúvida nenhuma, têm capacidade de fazer. Já a empregaram em pequena escala. O que eles não têm é veículo, vetor para lançar essas armas", afirma à Folha o major-brigadeiro reformado Hugo de Oliveira Piva, 75.
Piva tinha a segunda mais alta patente da Aeronáutica brasileira quando iniciou a negociação, no final da década de 80, do acordo de cooperação militar e tecnológica entre o Brasil e o regime de Saddam, que culminaria com a mudança para o Iraque de um grupo de 24 cientistas brasileiros.
O objetivo oficial era o desenvolvimento de um míssil ar-ar (armamento de aviões para serem usados contra outros aviões), de alcance restrito a 8 km. O Brasil entrava com a tecnologia, e o Iraque, com os petrodólares.
A operação, que inicialmente contava com o apoio político e financeiro dos Estados Unidos, tornou-se o ponto mais sensível e criticado das relações do Brasil com os norte-americanos.

Ajuda a Saddam
Autoridades dos EUA manifestaram publicamente temores de que a equipe de Piva tivesse contribuído para o desenvolvimento de armas de longo alcance por parte do Iraque e auxiliado o programa nuclear de Saddam Hussein, cujo objetivo final era a construção de ogivas nucleares.
Como relataram publicações como o jornal "The New York Times" e a especializada "The Risk Report", Piva foi chamado pelos Estados Unidos de "mercenário" e apelidado de o "dr. von Braun brasileiro", numa referência ao engenheiro espacial alemão Wernher von Braun (1912-1977), que criou o míssil balístico para os nazistas na Segunda Guerra e morreu trabalhando para o Exército americano e a Nasa.
Piva nega qualquer colaboração com o programa nuclear iraquiano ou com a transferência de tecnologia para armas de longo alcance. "Estávamos lá com o respaldo do governo brasileiro, não clandestinamente. No início da negociação, eu era um brigadeiro da ativa. O governo [administração José Sarney (1985-1990)" estava sabendo e obedecíamos às suas diretrizes", diz.

Contato direto
Entre 1989 e 1990, Piva reportava-se diretamente à cúpula do governo de Saddam. Primeiro como brigadeiro da ativa e depois como consultor privado. Teve dificuldades para deixar o país quando eclodiu a primeira guerra do Golfo, em 1990, mas retornou diversas vezes ao Iraque até meados daquela década.
"Chegou a ser discutida em profundidade a realização de um acordo entre Brasil e Iraque para o projeto do Veículo Lançador de Satélites, mas o governo achou melhor não prosseguir. Esse projeto daria capacidade ao Iraque para ter um vetor que levasse armas de destruição em massa a grandes distâncias", admite Piva.
O major-brigadeiro reformado afirma que a prova de que esse acordo não prosseguiu é o estágio atual das forças iraquianas.
"Ele têm ainda aqueles Scuds, vindos da extinta União Soviética. São mísseis que têm apenas um sistema de pilotagem, não possuem nem guiagem. Na pilotagem, consegue-se regular apenas a altitude. Na guiagem, pode-se fazer até correção de rotas. Então a precisão [dos Scuds" é muito baixa. O alcance deles era de 300 km, mas foi conseguida a ampliação para algo perto dos 900 km, por conta própria."

Longo alcance
Piva diz que os Estados Unidos têm conhecimento exato do que o Brasil desenvolveu com o Iraque. "Nosso grupo não se envolveu absolutamente em nada do programa deles de longo alcance. Não mexemos no Scud", contesta.
"Uma vez falei para um embaixador americano que a prova de que minha turma não participou do aperfeiçoamento do Scud foi sua precisão ser muito ruim. Se tivesse participado, o aperfeiçoamento teria sido muito melhor. Parece brincadeira, mas não é. Já naquela época, tínhamos condição de fazer guiagem de mísseis, com correção de rota, seguindo uma trajetória definida", diz.
Em setembro do ano passado, o jornal londrino "The Times" publicou entrevista em que o cientista iraquiano dissidente Khidir Hamza, que chefiou uma das áreas do programa nuclear de Saddam, afirmava que o Iraque poderia produzir bombas nucleares, usando equipamentos pirateados alemães e urânio contrabandeado do Brasil.
"Pode ser que tenham retomado o programa nuclear em 1998. Mas não eles não têm condições de construir um artefato decente. O Iraque talvez pudesse fazer uma bomba simples, fisicamente muito grande, com poder menor. Suja, com muita radiatividade. Poderiam ter feito uma ou duas bombas", relativiza Hugo Piva.
"Um programa nuclear de uma bomba de volume pequeno e menor radiação [que permitiria transporte e lançamento em alvos específicos" é projeto para dez anos. Reúne mais de mil cientistas, incluindo físicos, matemáticos, engenheiros, químicos etc. Isso não é muito fácil de esconder", afirma o major-brigadeiro.

Bomba brasileira
Piva presta consultoria atualmente para a Embraer. Vive em São José dos Campos (SP), numa cobertura decorada com tapetes comprados no Oriente Médio, e é presidente de uma confraria de admiradores de vinho na cidade.
Apesar de dizer que no trato pessoal Saddam era "afável e gentil", o brigadeiro é crítico do regime. Mas relativiza a ação norte-americana no Oriente Médio.
"A gente fala do Saddam, que é ruim também, mas os outros governantes dali não são melhores. São ditaduras terríveis. No entanto, são grandes amigos dos EUA."
Desde 1998, o Brasil comprometeu-se a não produzir armas nucleares, a partir da sua adesão ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas Piva se diz favorável à retomada do programa nuclear brasileiro, mesmo que sem se voltar especificamente para a produção de armas.
"Quem não tem tecnologia avançada vira vassalo. Tem de se submeter ao suserano", afirma. Invoca o pacifismo brasileiro como a garantia a ser oferecida à comunidade internacional.
"Quanto mais um país avança tecnologicamente mais apto está a fazer armas mais precisas e mais poderosas. Mas o Brasil é um país pacífico. Tivemos problemas de delimitação de fronteiras com todos os nossos vizinhos, mas todos eles foram resolvidos diplomaticamente. É um exemplo para o mundo", justifica.


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