UOL


São Paulo, sexta-feira, 06 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Saída marca o fim do flerte com o jornalismo pop

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Acompanhar uma reunião da Primeira Página do "New York Times", que acontece diariamente às 16h30 no terceiro andar do número 229 da rua 43, lado oeste, como fez a reportagem da Folha no fim de 2002, já dava uma idéia de quanto Howell Raines era um corpo estranho no organismo da velha senhora grisalha.
(O apelido do jornal, aliás, "old gray lady", no original, maneira carinhosa com que os nova-iorquinos chamam seu principal jornal, é um trocadilho com a cor do prédio-sede, mas também com a seriedade e o rigor com quem o "Times" trata as notícias e o conservadorismo com que encara as mudanças, especialmente mudanças no próprio jornal.)
Reunido com os editores de todos os cadernos, mais os chefes de sucursal em teleconferência e os secretários de Redação e seus assistentes, Raines era frequentemente ridicularizado e tinha de enfrentar comentários irônicos a cada intervenção. A exceção era seu braço direito, Gerald M. Boyd, o único que sempre o defendia.
O secretário de Redação, aliás, e um editor de arte eram também os únicos negros numa sala de 20 pessoas, e apenas cinco mulheres quebravam a homogeneidade da paisagem formada por homens beirando os 50 anos, que se dividiam entre calvos e grisalhos.
Haines andava em volta da mesa em que se sentavam os jornalistas e gesticulava muito, enquanto disparava perguntas. De baixa estatura, grisalho e com um jeito sulista que nunca o abandonou, era conhecido por seu aperto de mão fortíssimo e por citar o legendário ex-técnico de futebol americano Bear Bryant, do Alabama.
"Temos mesmo de dar esta foto de palestinos mortos?", perguntava ele, em relação a mais um ataque das forças israelenses em territórios ocupados. "Quem ainda aguenta palestinos mortos?" Silêncio. "Talvez os pais dos mortos?", pergunta o editor de exterior, em voz baixa. Risinhos.
A queda de Haines é o fim do flerte do "New York Times" com o jornalismo pop. Pelo menos, com o mais próximo que os Timesmen estão dispostos a chegar do jornalismo pop. Foi ele que chocou pelo menos duas gerações de repórteres ao colocar na Primeira Página do jornal um perfil da cantora Britney Spears.
Foi ele também que eriçou cabelos cinza-azulados ao dar uma manchete (o principal título da Primeira Página) em duas colunas para o fiasco do resultado da competição de patinação no gelo da Olimpíada de Inverno em Salt Lake City, no ano passado.
E reavivou no jornal o conceito de notícia-evento, quando pinçava um dos temas do noticiário do dia e investia ali toda a estrutura do jornal -o caso mais recente ficou famoso por ser idiossincrático, a recusa do tradicional Campeonato de Golfe de Augusta em admitir jogadoras mulheres.
No final daquele encontro, Raines veio conversar com o repórter da Folha. Disse que tinha visitado o Rio de Janeiro recentemente, em férias, e que considerava uma das cidades mais bonitas do mundo, e também a mais problemática. "O que vocês vão fazer com aqueles morros?", perguntou.
Falou ainda que pretendia voltar ao país em breve. Talvez agora tenha tempo de sobra.


Texto Anterior: Mídia: Fraude derruba editor do "New York Times"
Próximo Texto: Comentário: Escândalos gêmeos
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.