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Princípios, interesses e pessoas
JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE
As declarações do chanceler Lampreia foram unanimemente entendidas como uma
carta branca ao governo americano para
uma eventual intervenção armada no Iraque.
Já a nota da Embaixada dos EUA em Brasília
não permite uma interpretação tão incisiva.
Sugere o óbvio: o Brasil é favorável ao cumprimento das decisões do Conselho de Segurança (CS) e, se for necessário o uso da força
para cumpri-las, tais ações terão seu apoio.
Geralmente a opinião pública percebe uma
grande diferença entre dizer que "antes de
apoiar o uso da força militar, todos os meios
pacíficos serão esgotados" e dizer que "depois de esgotados todos os meios pacíficos, a
força militar será empregada", frases que denotam rigorosamente a mesma coisa. Uma
das funções da diplomacia é precisamente
empregar as mais diferentes maneiras de dizer a mesma coisa para conotar coisas diferentes. Portanto, as declarações do chanceler
brasileiro devem ser entendidas de acordo
com a mensagem unanimemente captada
pela opinião pública, e não por qualquer outro parâmetro, tal como seu conteúdo exato,
suas intenções ou o que seja.
Trata-se, portanto, de entender por que o
Itamaraty transmitiu a mensagem de que o
governo brasileiro estava dando carta branca
para a intervenção americana no Iraque.
Certamente não é em obediência aos ""princípios permanentes" de nossa diplomacia.
Um cínico diria que princípios são idéias
abstratas para justificar interesses concretos,
mas, pelo menos nesse caso, é difícil entender como justificar previamente a invasão
unilateral de um Estado soberano por meio
do princípio de não-intervenção ou do princípio de solução pacífica de controvérsias ou
daquele que condena a guerra de agressão.
Em situação análoga, igualmente coberta
por resolução aprovada pelo CS da ONU na
Guerra do Golfo, o governo brasileiro, por
intermédio do Itamaraty, preferiu manifestar sua fidelidade a esses mesmos princípios e
manter-se numa posição de distanciamento
com relação à coalizão comandada pelos
americanos, apesar do evidente isolamento
do Iraque diante do abandono de seus irmãos árabes, da então URSS e do resto do
mundo.
Acresce que, na Guerra do Golfo, a ameaça
representada por Saddam à paz mundial era
concretizada numa guerra contra o Kuait,
com ameaça à Arábia Saudita. No caso presente, temos um risco potencial não definido
de estocagem de armas de destruição em
massa e uma queda-de-braço entre os anglo-americanos e o ditador do Iraque em torno das equipe de inspeção da ONU.
Portanto, se não se pode falar em obediência a princípios, também não se pode falar
em inércia, isto é, continuidade de uma tendência empiricamente constatada. Na verdade, a diplomacia brasileira, a exemplo da
Guerra do Golfo, tem-se mostrado ""mal à
l'aise" com as iniciativas agressivas dos EUA,
por temer a consolidação de uma hegemonia
sem limites. No plano regional, mais ainda,
tem politizado as diferenças comerciais com
os EUA e constitui o principal obstáculo ao
projeto americano de integrar o mercado do
continente sob sua liderança. Recentemente
vetou a conclusão de acordos comerciais do
Mercosul com México e Canadá, sob o pretexto de que seriam pontas-de-lança dos interesses americanos em nossa região.
Também não se trata de uma resposta a
uma demanda da sociedade brasileira. A elite
e a população brasileiras nutrem um certo
sentimento antiamericano, fruto de conflitos
reais de interesse e mal-entendidos que marcaram os últimos 50 anos das relações bilaterais. Numa pesquisa recente, com uma
amostra de 800 empresas de todos os portes,
apenas 40% dos empresários conheciam as
discussões sobre a criação da Alca, e 64,3%
dentre eles achavam que a participação dos
EUA na Alca seria prejudicial ao Brasil. Compare-se com o Mercosul, que 90% conhecem
e 72,1% consideram benéfico para o Brasil.
Mudanças em política externa, que impliquem inflexões em tendências empiricamente observadas, podem ser explicadas por mudanças em princípios e idéias ou por razões
pragmáticas, resultantes de pressões internas
e externas. Como nenhuma dessas razões resiste à análise, restam explicações de caráter
pessoal, tais como ambições, vaidades, erros
de julgamento. Para não fazer julgamento de
intenções, prefiro pensar que se trata de um
episódio de caráter errático que não terá sequência nem consequências no futuro de
nossa política externa.
JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE, 57, é coordenador científico do Núcleo
de Pesquisa em Relações Internacionais da
USP e organizador da obra: ""Sessenta Anos
de Política Externa Brasileira".
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