São Paulo, sábado, 7 de fevereiro de 1998

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Princípios, interesses e pessoas

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

As declarações do chanceler Lampreia foram unanimemente entendidas como uma carta branca ao governo americano para uma eventual intervenção armada no Iraque. Já a nota da Embaixada dos EUA em Brasília não permite uma interpretação tão incisiva. Sugere o óbvio: o Brasil é favorável ao cumprimento das decisões do Conselho de Segurança (CS) e, se for necessário o uso da força para cumpri-las, tais ações terão seu apoio.
Geralmente a opinião pública percebe uma grande diferença entre dizer que "antes de apoiar o uso da força militar, todos os meios pacíficos serão esgotados" e dizer que "depois de esgotados todos os meios pacíficos, a força militar será empregada", frases que denotam rigorosamente a mesma coisa. Uma das funções da diplomacia é precisamente empregar as mais diferentes maneiras de dizer a mesma coisa para conotar coisas diferentes. Portanto, as declarações do chanceler brasileiro devem ser entendidas de acordo com a mensagem unanimemente captada pela opinião pública, e não por qualquer outro parâmetro, tal como seu conteúdo exato, suas intenções ou o que seja.
Trata-se, portanto, de entender por que o Itamaraty transmitiu a mensagem de que o governo brasileiro estava dando carta branca para a intervenção americana no Iraque. Certamente não é em obediência aos ""princípios permanentes" de nossa diplomacia.
Um cínico diria que princípios são idéias abstratas para justificar interesses concretos, mas, pelo menos nesse caso, é difícil entender como justificar previamente a invasão unilateral de um Estado soberano por meio do princípio de não-intervenção ou do princípio de solução pacífica de controvérsias ou daquele que condena a guerra de agressão.
Em situação análoga, igualmente coberta por resolução aprovada pelo CS da ONU na Guerra do Golfo, o governo brasileiro, por intermédio do Itamaraty, preferiu manifestar sua fidelidade a esses mesmos princípios e manter-se numa posição de distanciamento com relação à coalizão comandada pelos americanos, apesar do evidente isolamento do Iraque diante do abandono de seus irmãos árabes, da então URSS e do resto do mundo.
Acresce que, na Guerra do Golfo, a ameaça representada por Saddam à paz mundial era concretizada numa guerra contra o Kuait, com ameaça à Arábia Saudita. No caso presente, temos um risco potencial não definido de estocagem de armas de destruição em massa e uma queda-de-braço entre os anglo-americanos e o ditador do Iraque em torno das equipe de inspeção da ONU.
Portanto, se não se pode falar em obediência a princípios, também não se pode falar em inércia, isto é, continuidade de uma tendência empiricamente constatada. Na verdade, a diplomacia brasileira, a exemplo da Guerra do Golfo, tem-se mostrado ""mal à l'aise" com as iniciativas agressivas dos EUA, por temer a consolidação de uma hegemonia sem limites. No plano regional, mais ainda, tem politizado as diferenças comerciais com os EUA e constitui o principal obstáculo ao projeto americano de integrar o mercado do continente sob sua liderança. Recentemente vetou a conclusão de acordos comerciais do Mercosul com México e Canadá, sob o pretexto de que seriam pontas-de-lança dos interesses americanos em nossa região.
Também não se trata de uma resposta a uma demanda da sociedade brasileira. A elite e a população brasileiras nutrem um certo sentimento antiamericano, fruto de conflitos reais de interesse e mal-entendidos que marcaram os últimos 50 anos das relações bilaterais. Numa pesquisa recente, com uma amostra de 800 empresas de todos os portes, apenas 40% dos empresários conheciam as discussões sobre a criação da Alca, e 64,3% dentre eles achavam que a participação dos EUA na Alca seria prejudicial ao Brasil. Compare-se com o Mercosul, que 90% conhecem e 72,1% consideram benéfico para o Brasil.
Mudanças em política externa, que impliquem inflexões em tendências empiricamente observadas, podem ser explicadas por mudanças em princípios e idéias ou por razões pragmáticas, resultantes de pressões internas e externas. Como nenhuma dessas razões resiste à análise, restam explicações de caráter pessoal, tais como ambições, vaidades, erros de julgamento. Para não fazer julgamento de intenções, prefiro pensar que se trata de um episódio de caráter errático que não terá sequência nem consequências no futuro de nossa política externa.


JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE, 57, é coordenador científico do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP e organizador da obra: ""Sessenta Anos de Política Externa Brasileira".



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