São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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AMÉRICA DO SUL

Para o ex-responsável por processos contra o ex-ditador, parte do Judiciário chileno privilegia "questões de Estado"

Política não deixa julgar Pinochet, diz juiz

CAROLINA VILA-NOVA
DA REDAÇÃO


Poderia lhe dar cem razões pelas quais Pinochet tinha conhecimento do que ocorreu nesses anos. Ele até afirma, com arrogância, que não ocorria nada no Chile, não caía uma folha, sem que ele soubesse

Foi desmistificado o caráter de defensor da democracia, de restabelecedor da ordem e de intocável que tinha Pinochet. O trabalho da Justiça foi mais eficiente no Chile que nos demais países da América Latina
Nos últimos sete anos, o juiz Juan Guzmán Tapia, 66, colecionou uma série de feitos jurídicos antes impensáveis na história do Chile: com sua atuação na Corte de Apelação de Santiago, não só processou o ex-ditador Augusto Pinochet (1973-90), como conseguiu tirar seu foro privilegiado três vezes e colocá-lo em prisão domiciliar por dois períodos.
Apesar do histórico, Tapia é cético sobre as possibilidades de julgamento do ex-ditador. "Há tribunais aptos para julgá-lo, há juízes absolutamente preparados para julgá-lo, o país está nesse momento preparado para um julgamento de Pinochet", afirma. "Mas creio que não haja ambiente político."
Aposentado recentemente, Tapia acaba de assumir como decano da Faculdade de Direito da Universidade Central em Santiago. Também acaba de lançar no Chile e na Espanha o livro "En el Borde del Mundo", em que conta sua experiência à frente do caso Pinochet, sem previsão para lançamento no Brasil.
Leia a seguir trechos da entrevista que deu à Folha na sexta-feira, por telefone, de Santiago.

Folha - Em um país politicamente polarizado como o Chile, como está o clima em torno dos processos contra Augusto Pinochet?
Juan Guzmán Tapia
- Há sete anos, quando o processo começou, a situação era bastante mais difícil, porque até o momento não tinha havido abertura a respeito do que havia ocorrido no Chile durante 17 anos. Falava-se ainda de "excessos", em lugar de violações de direitos humanos.
Nesses sete anos, os detalhes do caso foram tornados públicos pelos advogados que tinham conhecimento do expediente, que é secreto. Ao mesmo tempo em que se instruía os processos, as pessoas foram se dando conta de que havia muito mais mortos e detidos do que se sabia.
Pouco a pouco, nos meus processos, foi-se descobrindo, através das testemunhas das famílias, das vítimas e mesmo do próprio Exército, das Forças Armadas em geral e dos carabineiros, que a maior parte do que os chilenos acreditavam que houvessem sido confrontos ou fugas de presos foram na verdade fuzilamentos sumários. Ou seja, eles eram levados a um lugar determinado e, com os olhos vendados e as mãos amarradas, fuzilados.
Tudo isso se desmistificou nos distintos processos, até que se chegou à conclusão de que todos esses foram fuzilamentos de extermínio contra pessoas de oposição ao governo militar e por razões absolutamente políticas.

Folha - E de 1998 para cá, o que mudou na percepção das chilenos em relação aos processos?
Tapia
- Houve várias etapas. Uma etapa de muita agressividade é quando começam as investigações, em 1998, até aproximadamente 2002. Nessa fase as pessoas agiam com bastante agressividade, muitos artigos foram publicados na mídia contra minha atuação e a dos magistrados, houve bastante antipatia demonstrada pelas pessoas nas ruas, muitas perguntas sobre "até quando vão continuar fazendo política quando o comunismo já terminou no Chile há muitos anos".
No fundo, como a sociedade está polarizada, um lado pensa que esses julgamentos sejam políticos, enquanto o outro lado se dá conta de que têm por objetivo descobrir a verdade. E, depois de 2002, já se abre uma nova perspectiva, porque o público em geral no Chile já sabe que houve realmente violações de direitos humanos, que houve mais de mil desaparecidos, mais de 3.000 mortos e mais de 40 mil pessoas torturadas.
Daí, com o descobrimento das contas secretas de Pinochet no Riggs Bank [EUA], já se desmistifica completamente Pinochet, não somente do ponto de vista de violações de direitos humanos mas como uma pessoa que eventualmente andou recebendo dinheiro de forma desonesta. Isso incomodou o resto das pessoas que se diziam incrédulas. E se diziam incrédulas por um princípio de polarização ou de conservadorismo socioeconômico, preferindo pensar que jamais houve violações de direitos humanos no Chile e que, se houve mortos ou detidos, tratava-se de uma guerra contra a subversão e o terrorismo.

Folha - O sr. tomou medidas históricas, que mudaram a perspectiva de um julgamento contra o ex-ditador. Que tipo de pressões o sr. sofreu nesse processo e por quem?
Tapia
- Essas pressões eu as denunciei várias vezes. Tive pressões da Corte Suprema mediante castigos, que implicam uma falta de independência interna do Poder Judiciário. A Corte começou a baixar minhas qualificações, e essa foi uma maneira de pressão que, se bem não me impediu, tinha a intenção de fazer com que eu me enquadrasse no bom proceder, segundo eles. Também houve pressões por parte do governo, que intervém na nomeação dos juízes. Recebi pressões do Ministério da Justiça, no sentido de tornar sem efeito o processo de Pinochet e para que não fosse feita a peritagem sobre suas faculdades mentais, mas apenas sobre suas faculdades físicas. Também houve pressões por pessoas do Parlamento, particularmente na questão da aplicação da lei de anistia. Consideravam que era preciso aplicar a lei de anistia para pôr fim a esses processos e, entre aspas, obter a paz pública, que para eles estava sendo vulnerada.

Nesse período, o que lhe causou maior impacto nas causas que investigou em relação a Pinochet?
Tapia
- Eu sou um juiz, e é muito difícil perguntar a um juiz o que lhe causou maior impacto. É como perguntar a um cirurgião o que achou pior nas diversas operações que fez. A única coisa que posso dizer é que juízes investigam cientificamente e objetivamente as causas, e o que vêem não os magnifica nem os apequena nem os impressiona. Simplesmente vão adquirindo a certeza ou não da realização dos crimes, a certeza de quem participa dos crimes ou não participa.
Agora, eu não tinha tido julgamentos em minha carreira como magistrado de causas por violações de direitos humanos até 1991, quando fui membro da Corte Marcial de Santiago, aí vi que havia não apenas abusos, mas violações de direitos humanos. E depois de 1998 me dei conta do grau de tortura, da quantidade de pessoas torturadas, das formas como se torturava, da maneira como desapareciam as pessoas e tudo o que denomino o círculo da morte: desde o momento em que a pessoa é detida até que morre violentamente pelas mãos do Estado ou simplesmente desaparece.

Folha - Pinochet diz em sua defesa que nunca deu ordens para que direitos humanos fossem violados e que isso foi uma iniciativa dos comandos intermediários. O que o sr. acha dessa afirmação?
Tapia
- Se em uma semana se matam 2.000 pessoas e se há informação de que isso foi produto de excessos cometidos pelos mandos intermediários, aí poderia haver uma dúvida de que o comandante-em-chefe do Exército não soubesse. Mas, se em um lapso de 17 anos acontecem mais de 3.000 homicídios, desaparecem mais de mil pessoas e são torturadas mais de 40 mil, é muito difícil que uma pessoa que foi comandante-em-chefe do Exército possa dizer que isso foi cometido pelos mandos intermediários, especialmente se a maior parte desses crimes ocorreu nos primeiros cinco anos de seu governo. Quer dizer que ou é cego ou é surdo ou não tem entendimento.
Por outro lado, a hierarquia e o sistema de comando que existem no Exército chileno são absolutamente prussianos. Um inferior não pode fazer nada que não tenha sido ordenado por um superior. E, no caso de isso ocorrer, as sanções são muito grandes. A pena contra quem tenha cometido esses excessos sem autorização ou sem ordens superiores é a morte. Nenhum militar teria se atrevido a executar esse "trabalho", digamos assim, com esses resultados de mortes, desaparecimentos forçados de pessoas e tortura, se não tivesse recebido uma ordem.
E há muitas razões mais. Há frases de Pinochet em que diz a sacerdotes que depuseram como testemunhas "por que se preocupam com essa pessoa, se não são seres humanos, são comunistas?". Eu poderia lhe dar cem razões pelas quais Pinochet tinha conhecimento do que ocorreu nesses anos. Pinochet até afirma, com bastante arrogância, que não ocorria nada no Chile, não caía uma folha, sem que ele soubesse.
Fora o vínculo que ele tinha com o diretor [coronel Manuel Contreras] da Dina [polícia secreta do regime]. Era uma comunicação diária. Ele ia buscar Pinochet em casa todos os dias para levá-lo até onde trabalhava e aí comunicava todas as ações, o que tinha de fazer e o que havia feito.
Há muitos documentos revelados nos EUA em que se fala dos bons termos em que se estava levando a Operação Condor. Nos arquivos do terror do Uruguai, há cartas assinadas por Contreras em que aparece convidando para uma reunião em Santiago ou agradecendo pelos trabalhos realizados nos distintos países. E, num Exército que tem a hierarquia em linha reta como o chileno, é impossível que essas reuniões tenham ocorrido sem o conhecimento de Pinochet. Há antecedentes de que Pinochet esteve em uma dessas reuniões com representantes dos seis países que participavam da Operação Condor.

Folha - O sr. teve contatos pessoais com Pinochet. Que impressão teve de sua saúde física e mental?
Tapia
- Se eu declarei que Pinochet se encontrava em um estado de saúde mental apto para ser processado e enfrentar julgamento, quer dizer que minha percepção foi de que estava em estado normal de saúde. Pude perceber que apresentava deterioração física, mas o interroguei em duas ocasiões e ele respondeu com bastante atinência, com correlação absoluta com as perguntas, demonstrando ter raciocínio e uma consciência clara entre o bem e o mal e, portanto, dando-se conta de que perguntas o prejudicavam ou o favoreciam. Tanto é que, nas duas ocasiões, ele jogou a culpa em pessoas inferiores e nunca admitiu ter tido participação nesses atos, o que revela discernimento e estratégia.
Também foi entrevistado por uma jornalista da Flórida e tratou de diversos temas bastante complexos, alguns relativos à política econômica do país durante os 17 anos de seu governo, e viu-se sua absoluta capacidade de abstração e atinência nas respostas.
Os relatórios neurológicos falam de maneira mais categórica de uma demência, mas os psiquiátricos, que avaliam as faculdades intelectuais e cognitivas, eram bastante bons. A demência que lhe é atribuída é de leve a moderada e subcortical, ou seja, não altera as funções intelectuais.

Folha - O que o sr. acha das internações de Pinochet às vésperas de decisões judiciais?
Tapia
- Eu pessoalmente creio na dignidade humana. Creio que essa suposta manobra para pressionar aos juízes não é certa. Uma pessoa que tem respeito próprio, por muito que seu advogado aconselhe, não vai incorrer nessas atuações infantis que obviamente não vão alterar a maneira de pensar de um juiz que tem de agir conforme a lei.

Folha - O sr. acredita que Pinochet realmente venha a ser condenado um dia?
Tapia
- Alguns juízes da Corte de Apelações decidiram que ele deve ser processado, outros dizem que não, ou seja, na Corte de Apelações houve decisões em dois sentidos. Mas uma decisão na Corte Suprema em 2002 disse que Pinochet carecia de faculdades mentais aptas para ser julgado. E, numa decisão recente, a Corte de Apelações de Santiago disse o mesmo, ou seja, invocou o princípio jurídico "da coisa julgada" para dizer que já se havia resolvido sobre suas faculdades mentais pelo tribunal máximo e que, portanto, se não estava apto para julgamento pela Caravana da Morte, também estava incapacitado para o processo sobre a Operação Condor. Mas nem todos os juízes pensam da mesma maneira.
Para saber se ele vai ser condenado é preciso ser adivinho, mas, se você me pergunta se há possibilidade de que seja julgado, penso que sejam poucas as probabilidades, segundo uma análise que qualquer pessoa pode fazer do sistema judicial chileno e de como foram as resoluções dos últimos anos.
Há tribunais aptos para julgá-lo, há juízes absolutamente preparados para julgá-lo, o país está nesse momento preparado para um julgamento de Pinochet. Mas ainda existem pessoas no Poder Judiciário que crêem em fatores como "coisas de Estado" pelos quais poderia ser inconveniente um julgamento. Resumidamente, existe o material humano e a infra-estrutura jurídica no Chile para julgar Pinochet, mas creio que não há ambiente político e que há pessoas que resolvem certos temas ainda com um critério político.

Folha - Que análise o sr. faz da maneira como o Chile tem trabalhado com seu passado autoritário? E os demais países do Cone Sul, como Argentina, Brasil e Uruguai?
Tapia
- No Uruguai não houve justiça, já que houve de imediato uma Lei de Ponto Final. Na Argentina tem havido ambivalência. Foi criada a Lei de Obediência Devida, mas depois outras normas dispondo investigações, e foram processados diversos generais e altos oficiais; enfim, é um vai-e-vem permanente de fundo político. No Brasil, não há antecedentes de julgamentos por violações de direitos humanos, em que pese o grande número de desaparecidos.
O Chile leva há sete anos processos contra o homem mais poderoso do país durante 17 anos. Demonstrou que a Justiça atuou com bastante severidade, independência e valentia. Pinochet perdeu o foro privilegiado três vezes, pelas operações Caravana da Morte, Condor e Colombo, e pela quarta vez pelo caso do Riggs Bank [do juiz Sergio Muñoz]. Foi submetido a processo duas vezes. Foi sujeito a prisão preventiva domiciliar durante dois períodos por ordem da Justiça chilena. Ou seja, foi desmistificado o caráter de defensor da democracia, de restabelecedor da ordem e de intocável que tinha Pinochet.
A equiparação da imagem de Pinochet com [o general Bernardo] O'Higgins, o libertador do Chile, já não existe. Também a imagem de que os mortos e torturados eram terroristas que agrediam o povo chileno e eram um perigo foi apagada. O trabalho da Justiça foi mais eficiente no Chile que nos demais países da América Latina, isso é evidente. Os únicos países que aplicaram justiça contra seus próprios hierarcas foram o Chile e a Argentina.

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