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AMÉRICA DO SUL
Para o ex-responsável por processos contra o ex-ditador, parte do Judiciário chileno privilegia "questões de Estado"
Política não deixa julgar Pinochet, diz juiz
CAROLINA VILA-NOVA
DA REDAÇÃO
Poderia lhe dar cem razões pelas quais Pinochet tinha conhecimento
do que ocorreu nesses anos. Ele até afirma, com arrogância, que não ocorria nada
no Chile, não caía uma folha, sem que ele soubesse
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Foi desmistificado o caráter de defensor da democracia, de restabelecedor da ordem e de intocável que tinha Pinochet. O trabalho da Justiça foi mais eficiente no Chile que nos demais países da América Latina
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Nos últimos sete anos, o juiz
Juan Guzmán Tapia, 66, colecionou uma série de feitos jurídicos
antes impensáveis na história do
Chile: com sua atuação na Corte
de Apelação de Santiago, não só
processou o ex-ditador Augusto
Pinochet (1973-90), como conseguiu tirar seu foro privilegiado
três vezes e colocá-lo em prisão
domiciliar por dois períodos.
Apesar do histórico, Tapia é cético sobre as possibilidades de julgamento do ex-ditador. "Há tribunais aptos para julgá-lo, há juízes absolutamente preparados
para julgá-lo, o país está nesse
momento preparado para um julgamento de Pinochet", afirma.
"Mas creio que não haja ambiente
político."
Aposentado recentemente, Tapia acaba de assumir como decano da Faculdade de Direito da
Universidade Central em Santiago. Também acaba de lançar no
Chile e na Espanha o livro "En el
Borde del Mundo", em que conta
sua experiência à frente do caso
Pinochet, sem previsão para lançamento no Brasil.
Leia a seguir trechos da entrevista que deu à Folha na sexta-feira, por telefone, de Santiago.
Folha - Em um país politicamente
polarizado como o Chile, como está
o clima em torno dos processos
contra Augusto Pinochet?
Juan Guzmán Tapia - Há sete
anos, quando o processo começou, a situação era bastante mais
difícil, porque até o momento não
tinha havido abertura a respeito
do que havia ocorrido no Chile
durante 17 anos. Falava-se ainda
de "excessos", em lugar de violações de direitos humanos.
Nesses sete anos, os detalhes do
caso foram tornados públicos pelos advogados que tinham conhecimento do expediente, que é secreto. Ao mesmo tempo em que
se instruía os processos, as pessoas foram se dando conta de que
havia muito mais mortos e detidos do que se sabia.
Pouco a pouco, nos meus processos, foi-se descobrindo, através das testemunhas das famílias,
das vítimas e mesmo do próprio
Exército, das Forças Armadas em
geral e dos carabineiros, que a
maior parte do que os chilenos
acreditavam que houvessem sido
confrontos ou fugas de presos foram na verdade fuzilamentos sumários. Ou seja, eles eram levados
a um lugar determinado e, com os
olhos vendados e as mãos amarradas, fuzilados.
Tudo isso se desmistificou nos
distintos processos, até que se
chegou à conclusão de que todos
esses foram fuzilamentos de extermínio contra pessoas de oposição ao governo militar e por razões absolutamente políticas.
Folha - E de 1998 para cá, o que
mudou na percepção das chilenos
em relação aos processos?
Tapia - Houve várias etapas.
Uma etapa de muita agressividade é quando começam as investigações, em 1998, até aproximadamente 2002. Nessa fase as pessoas
agiam com bastante agressividade, muitos artigos foram publicados na mídia contra minha atuação e a dos magistrados, houve
bastante antipatia demonstrada
pelas pessoas nas ruas, muitas
perguntas sobre "até quando vão
continuar fazendo política quando o comunismo já terminou no
Chile há muitos anos".
No fundo, como a sociedade está polarizada, um lado pensa que
esses julgamentos sejam políticos,
enquanto o outro lado se dá conta
de que têm por objetivo descobrir
a verdade. E, depois de 2002, já se
abre uma nova perspectiva, porque o público em geral no Chile já
sabe que houve realmente violações de direitos humanos, que
houve mais de mil desaparecidos,
mais de 3.000 mortos e mais de 40
mil pessoas torturadas.
Daí, com o descobrimento das
contas secretas de Pinochet no
Riggs Bank [EUA], já se desmistifica completamente Pinochet,
não somente do ponto de vista de
violações de direitos humanos
mas como uma pessoa que eventualmente andou recebendo dinheiro de forma desonesta. Isso
incomodou o resto das pessoas
que se diziam incrédulas. E se diziam incrédulas por um princípio
de polarização ou de conservadorismo socioeconômico, preferindo pensar que jamais houve violações de direitos humanos no Chile e que, se houve mortos ou detidos, tratava-se de uma guerra
contra a subversão e o terrorismo.
Folha - O sr. tomou medidas históricas, que mudaram a perspectiva de um julgamento contra o ex-ditador. Que tipo de pressões o sr.
sofreu nesse processo e por quem?
Tapia - Essas
pressões eu as denunciei várias vezes. Tive pressões
da Corte Suprema
mediante castigos, que implicam
uma falta de independência interna
do Poder Judiciário. A Corte começou a baixar minhas qualificações, e essa foi
uma maneira de
pressão que, se
bem não me impediu, tinha a intenção de fazer
com que eu me
enquadrasse no
bom proceder, segundo eles. Também houve pressões por parte do
governo, que intervém na nomeação dos juízes. Recebi pressões do
Ministério da Justiça, no sentido
de tornar sem efeito o processo de
Pinochet e para que não fosse feita
a peritagem sobre suas faculdades
mentais, mas apenas sobre suas
faculdades físicas. Também houve pressões por pessoas do Parlamento, particularmente na questão da aplicação da lei de anistia.
Consideravam que era preciso
aplicar a lei de anistia para pôr fim
a esses processos e, entre aspas,
obter a paz pública, que para eles
estava sendo vulnerada.
Nesse período, o que lhe causou
maior impacto nas causas que investigou em relação a Pinochet?
Tapia - Eu sou um juiz, e é muito
difícil perguntar a um juiz o que
lhe causou maior impacto. É como perguntar a um cirurgião o
que achou pior nas diversas operações que fez. A única coisa que
posso dizer é que juízes investigam cientificamente e objetivamente as causas, e o que vêem não
os magnifica nem os apequena
nem os impressiona. Simplesmente vão adquirindo a certeza
ou não da realização dos crimes, a
certeza de quem participa dos crimes ou não participa.
Agora, eu não tinha tido julgamentos em minha carreira como
magistrado de causas por violações de direitos humanos até 1991,
quando fui membro da Corte
Marcial de Santiago, aí vi que havia não apenas
abusos, mas violações de direitos
humanos. E depois de 1998 me
dei conta do grau
de tortura, da
quantidade de
pessoas torturadas, das formas
como se torturava, da maneira como desapareciam
as pessoas e tudo
o que denomino o
círculo da morte:
desde o momento
em que a pessoa é
detida até que
morre violentamente pelas mãos
do Estado ou simplesmente desaparece.
Folha - Pinochet
diz em sua defesa
que nunca deu ordens para que direitos humanos
fossem violados e que isso foi uma
iniciativa dos comandos intermediários. O que o sr. acha dessa afirmação?
Tapia - Se em uma semana se
matam 2.000 pessoas e se há informação de que isso foi produto
de excessos cometidos pelos
mandos intermediários, aí poderia haver uma dúvida de que o comandante-em-chefe do Exército
não soubesse. Mas, se em um lapso de 17 anos acontecem mais de
3.000 homicídios, desaparecem
mais de mil pessoas e são torturadas mais de 40 mil, é muito difícil
que uma pessoa que foi comandante-em-chefe do Exército possa
dizer que isso foi cometido pelos
mandos intermediários, especialmente se a maior parte desses crimes ocorreu nos primeiros cinco
anos de seu governo. Quer dizer
que ou é cego ou é surdo ou não
tem entendimento.
Por outro lado, a hierarquia e o
sistema de comando que existem
no Exército chileno são absolutamente prussianos. Um inferior
não pode fazer nada que não tenha sido ordenado por um superior. E, no caso de isso ocorrer, as
sanções são muito grandes. A pena contra quem tenha cometido
esses excessos sem autorização ou
sem ordens superiores é a morte.
Nenhum militar teria se atrevido
a executar esse "trabalho", digamos assim, com esses resultados
de mortes, desaparecimentos forçados de pessoas e
tortura, se não tivesse recebido
uma ordem.
E há muitas razões mais. Há frases de Pinochet
em que diz a sacerdotes que depuseram como
testemunhas "por
que se preocupam
com essa pessoa,
se não são seres
humanos, são comunistas?". Eu
poderia lhe dar
cem razões pelas
quais Pinochet tinha conhecimento do que ocorreu
nesses anos. Pinochet até afirma,
com bastante arrogância, que não
ocorria nada no
Chile, não caía
uma folha, sem que ele soubesse.
Fora o vínculo que ele tinha
com o diretor [coronel Manuel
Contreras] da Dina [polícia secreta do regime]. Era uma comunicação diária. Ele ia buscar Pinochet em casa todos os dias para levá-lo até onde trabalhava e aí comunicava todas as ações, o que tinha de fazer e o que havia feito.
Há muitos documentos revelados nos EUA em que se fala dos
bons termos em que se estava levando a Operação Condor. Nos
arquivos do terror do Uruguai, há
cartas assinadas por Contreras
em que aparece convidando para
uma reunião em Santiago ou
agradecendo pelos trabalhos realizados nos distintos países. E,
num Exército que tem a hierarquia em linha reta como o chileno, é impossível que essas reuniões tenham ocorrido sem o conhecimento de Pinochet. Há antecedentes de que Pinochet esteve
em uma dessas reuniões com representantes dos seis países que
participavam da Operação Condor.
Folha - O sr. teve contatos pessoais com Pinochet. Que impressão
teve de sua saúde física e mental?
Tapia - Se eu declarei que Pinochet se encontrava em um estado
de saúde mental apto para ser
processado e enfrentar julgamento, quer dizer que minha percepção foi de que estava em estado
normal de saúde.
Pude perceber
que apresentava
deterioração física, mas o interroguei em duas ocasiões e ele respondeu com bastante
atinência, com
correlação absoluta com as perguntas, demonstrando ter raciocínio e uma consciência clara entre
o bem e o mal e,
portanto, dando-se conta de que
perguntas o prejudicavam ou o
favoreciam. Tanto é que, nas duas
ocasiões, ele jogou a culpa em
pessoas inferiores
e nunca admitiu
ter tido participação nesses atos, o
que revela discernimento e estratégia.
Também foi entrevistado por
uma jornalista da Flórida e tratou
de diversos temas bastante complexos, alguns relativos à política
econômica do país durante os 17
anos de seu governo, e viu-se sua
absoluta capacidade de abstração
e atinência nas respostas.
Os relatórios neurológicos falam de maneira mais categórica
de uma demência, mas os psiquiátricos, que avaliam as faculdades intelectuais e cognitivas,
eram bastante bons. A demência
que lhe é atribuída é de leve a moderada e subcortical, ou seja, não
altera as funções intelectuais.
Folha - O que o sr. acha das internações de Pinochet às vésperas de
decisões judiciais?
Tapia - Eu pessoalmente creio
na dignidade humana. Creio que
essa suposta manobra para pressionar aos juízes não é certa. Uma
pessoa que tem respeito próprio,
por muito que seu advogado
aconselhe, não vai incorrer nessas
atuações infantis que obviamente
não vão alterar a maneira de pensar de um juiz que tem de agir
conforme a lei.
Folha - O sr. acredita que Pinochet realmente venha a ser condenado um dia?
Tapia - Alguns juízes da Corte de
Apelações decidiram que ele deve
ser processado, outros dizem que
não, ou seja, na Corte de Apelações houve decisões em dois sentidos. Mas uma decisão na Corte
Suprema em 2002 disse que Pinochet carecia de faculdades mentais aptas para ser julgado. E, numa decisão recente, a Corte de
Apelações de Santiago disse o
mesmo, ou seja, invocou o princípio jurídico "da coisa julgada" para dizer que já se havia resolvido
sobre suas faculdades mentais pelo tribunal máximo e que, portanto, se não estava apto para julgamento pela Caravana da Morte,
também estava incapacitado para
o processo sobre a Operação Condor. Mas nem todos os juízes pensam da mesma maneira.
Para saber se ele vai ser condenado é preciso ser adivinho, mas,
se você me pergunta se há possibilidade de que seja julgado, penso
que sejam poucas as probabilidades, segundo uma análise que
qualquer pessoa pode fazer do sistema judicial chileno e de como
foram as resoluções dos últimos
anos.
Há tribunais aptos para julgá-lo,
há juízes absolutamente preparados para julgá-lo, o país está nesse
momento preparado para um julgamento de Pinochet. Mas ainda
existem pessoas no Poder Judiciário que crêem em fatores como
"coisas de Estado" pelos quais poderia ser inconveniente um julgamento. Resumidamente, existe o
material humano e a infra-estrutura jurídica no Chile para julgar
Pinochet, mas creio que não há
ambiente político e que há pessoas que resolvem certos temas
ainda com um critério político.
Folha - Que análise o sr. faz da
maneira como o Chile tem trabalhado com seu passado autoritário? E os demais países do Cone Sul,
como Argentina, Brasil e Uruguai?
Tapia - No Uruguai não houve
justiça, já que houve de imediato
uma Lei de Ponto Final. Na Argentina tem havido ambivalência.
Foi criada a Lei de Obediência Devida, mas depois outras normas
dispondo investigações, e foram
processados diversos generais e
altos oficiais; enfim, é um vai-e-vem permanente de fundo político. No Brasil, não há antecedentes
de julgamentos por violações de
direitos humanos, em que pese o
grande número de desaparecidos.
O Chile leva há sete anos processos contra o homem mais poderoso do país durante 17 anos. Demonstrou que a Justiça atuou
com bastante severidade, independência e valentia. Pinochet
perdeu o foro privilegiado três vezes, pelas operações Caravana da
Morte, Condor e Colombo, e pela
quarta vez pelo caso do Riggs
Bank [do juiz Sergio Muñoz]. Foi
submetido a processo duas vezes.
Foi sujeito a prisão preventiva domiciliar durante dois períodos
por ordem da Justiça chilena. Ou
seja, foi desmistificado o caráter
de defensor da democracia, de
restabelecedor da ordem e de intocável que tinha Pinochet.
A equiparação da imagem de
Pinochet com [o general Bernardo] O'Higgins, o libertador do
Chile, já não existe. Também a
imagem de que os mortos e torturados eram terroristas que agrediam o povo chileno e eram um
perigo foi apagada. O trabalho da
Justiça foi mais eficiente no Chile
que nos demais países da América
Latina, isso é evidente. Os únicos
países que aplicaram justiça contra seus próprios hierarcas foram
o Chile e a Argentina.
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