São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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HISTÓRIA

Cidadãos da China querem que japoneses paguem por danos da guerra

Armas químicas do Japão ainda afetam os chineses

MURE DICKIE
DO "FINANCIAL TIMES"

Ding Shuwen se recorda de, dois anos atrás, sentir um cheiro picante saindo de três barris enferrujados que ele pôs sobre seu "pedicab" (um riquixá puxado por bicicleta) na cidade de Qiqihar, na Província de Heilongjiang, nordeste da China. Mas ele não se lembra de ter pressentido nenhum perigo. Tudo parecia estar bem quando ele e um colega encontraram um comprador para os barris e gastaram o que ganharam com a venda em cigarros, garrafas de água e uma refeição.
Na mesma noite, porém, Ding já estava gravemente doente -vomitando, os olhos lacrimejando e grandes bolhas se formando nas partes de seu corpo que encostaram nos barris, retirados de um canteiro de obras.
Só mais tarde é que Ding ficaria sabendo que se tornara vítima dos despojos de um depósito secreto de gás mostarda deixado por soldados japoneses ao final da Segunda Guerra, parte de um legado de guerra química grande, mas escondido; algo que ainda coloca em risco a vida de inúmeros chineses. "Eu nunca tinha ouvido falar em armas envenenadas -essa idéia nunca tinha vindo à minha cabeça", recorda Ding, em quem o gás mostarda deixou cicatrizes. O homem para quem ele vendeu os barris, Li Guizhen, acabou morrendo mais tarde.
Nesta semana, Ding e outros oito sobreviventes do incidente em Qiqihar estão visitando o Japão para tentar chamar a atenção internacional para sua situação. Na quinta-feira, segundo aniversário da descoberta dos barris de veneno, eles pretendem entregar uma petição ao primeiro-ministro japonês, Junichiro Koizumi. "Vamos ao Japão na esperança de que os japoneses recordem sua história e o mal que foi feito", disse Chen Rongxi, que, com sua família, foi envenenado por solo contaminado usado em seu jardim.

Culpa
A visita das vítimas também coloca em destaque as tensões sino-japonesas, poucos meses depois dos protestos em toda a China alimentados pelo sentimento de que Tóquio ainda não expiou sua culpa pela invasão de 1931-45. Para advogados chineses, os incidentes envolvendo armas químicas ocorridos nos últimos anos abriram o que talvez seja a mais promissora frente legal para os esforços em obrigar o Japão a compensar os estrangeiros prejudicados por suas ações durante a guerra.
As autoridades japonesas dizem que reivindicações desse tipo não terão validade porque, após a guerra, a China renunciou ao direito a reparações. Contudo, numa ação legal movida em 2003, um tribunal de Tóquio considerou que o governo foi negligente na recuperação das armas químicas, concedendo a um grupo de chineses o pagamento de US$ 1,7 milhão de indenização por danos.
Su Xiangxiang, um advogado chinês que vai acompanhar as vítimas de Qiqihar, diz que a ação, que se encontra em apelação, criou um precedente para que outras pessoas prejudicadas por armas químicas movam ações. Su também acusa Tóquio de relutar em dar informações sobre as armas e sua localização.
Keiji Ide, da Embaixada do Japão em Pequim, considera essas alegações "totalmente infundadas". Ele diz que Tóquio lamenta a situação das vítimas e se solidariza com elas, mas que as informações sobre a localização das armas químicas se perderam no caos que se seguiu à guerra.
Tóquio afirma que está comprometida com a promessa que fez em 1997 de remover os vestígios de todas as armas químicas deixadas na China. Já está claro que o trabalho não estará concluído até o prazo final fixado para isso, em 2007, embora especialistas japoneses acreditem que talvez só restem 300 mil armas químicas na China, um número muito inferior às 700 mil estimadas alguns anos atrás e aos 2 milhões anunciados pela mídia estatal chinesa.
Pequim vem exigindo ações mais rápidas, mas Tóquio diz que o atraso não é sua culpa. Os planos de construir uma instalação grande para desmontar as armas em segurança foram atrasados em parte pela insistência de Pequim em impor impostos de importação sobre os caros equipamentos necessários.
O Japão já se desculpou várias vezes por ter usado e abandonado armas químicas e já pagou valores consideráveis às vítimas, embora Tóquio se negue a descrever esses pagamentos como indenizações.
Ding conta que já recebeu de Tóquio um pouco mais de US$ 123 mil, uma quantia considerável na China, mas disse que não ousa gastar esse dinheiro porque sua saúde está estragada e ele não pode mais trabalhar. "Quero que o governo japonês nos dê uma garantia de que vamos ter o suficiente para viver", disse ele.
Outras vítimas em Qiqihar já deixaram claro que os pagamentos não compraram seu perdão.
Quando Gao Ming, 9, estava recebendo tratamento hospitalar por envenenamento, sua mãe recorda que autoridades de Tóquio visitaram o hospital e chegaram a deixar flores para a menina. "Mas não nos disseram uma única palavra de consolo", ela comentou.


Tradução de Clara Allain

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