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ENSAIO
Após o ataque de Berlusconi ao islã, Eco discute a relação ocidental com outras culturas
Simplificação gera guerras santas
UMBERTO ECO
Que alguém tenha, nos últimos
dias, pronunciado palavras inoportunas sobre a superioridade
da cultura ocidental é um fato secundário. É secundário que alguém diga algo que considere
correto, mas no momento errado,
e é secundário que alguém acredite em algo injusto ou mesmo errado, porque o mundo está cheio de
gente que acredita em coisas injustas e erradas, até mesmo um
senhor que se chama Bin Laden,
que talvez seja mais rico que o
nosso primeiro-ministro, Silvio
Berlusconi, e tenha estudado em
universidades melhores. O que
não é secundário -e que deve
preocupar um pouco a todos- é
que expressões, ou mesmo artigos
inteiros e apaixonados que de algum modo as legitimaram, tornem-se objeto de discussão geral,
ocupem a mente dos jovens e talvez os induzam a conclusões passionais ditadas pela emoção do
momento. Preocupo-me com os
jovens porque a cabeça dos velhos
não se muda mais.
As guerras de religiões que ensanguentaram o mundo por séculos nasceram de adesões passionais a contraposições simplistas,
como nós e os outros, bons e
maus, brancos e negros.
Se a cultura ocidental demonstrou-se fecunda (não só do Iluminismo até hoje, mas antes disso,
quando o franciscano Roger Bacon nos convidava a aprender línguas porque temos algo a aprender, mesmo dos infiéis), é também porque esforçou-se para
"dissolver", à luz de investigação e
espírito crítico, simplificações danosas.
Naturalmente, não fez isso sempre, porque também fazem parte
da história da cultura ocidental
Hitler, que queimava os livros,
condenava a arte "degenerada",
matava os pertencentes às raças
"inferiores", ou o fascismo, que
me ensinava na escola a recitar
"Deus amaldiçoe os ingleses",
porque eram "o povo das cinco
refeições" e, portanto, gulosos, inferiores ao italiano parco e espartano. Mas são os melhores aspectos de nossa cultura que devemos
discutir com os jovens, de qualquer cor, se não quisermos que
desabem novas torres nos dias
que eles viverão depois de nós.
Um elemento de confusão é
que, frequentemente, não se consegue compreender a diferença
entre a identificação com as próprias raízes, o entendimento de
quem tem outras raízes e o julgamento de o que é bem ou mal.
Quanto às raízes, se me perguntassem se preferiria passar os anos
de aposentadoria numa cidadezinha em Monferrato, na majestosa
região do parque nacional de
Abruzzo, ou nas doces colinas da
região de Siena, escolheria Monferrato. Mas isso não permite que
julgue outras regiões italianas como inferiores ao Piemonte.
Dessa forma, se, com suas palavras, o primeiro-ministro queria
dizer que prefere viver em Arcore
do que em Cabul e tratar-se num
hospital milanês do que num hospital em Bagdá, eu estaria pronto
para aderir à sua opinião (com a
exceção de Arcore). E isso mesmo
que dissessem que em Bagdá fundaram o hospital mais equipado
do mundo: em Milão me sentiria
mais em casa, e isso também influiria na minha capacidade de recuperação. As raízes podem ser
até mais amplas do que as regionais ou nacionais. Preferiria viver
em Limoges, por assim dizer, do
que em Moscou. Mas como, Moscou não é uma cidade belíssima?
Certamente, mas em Limoges eu
entenderia a língua.
Em suma, cada um se identifica
com a cultura em que cresceu, e os
casos de transplante radical, que
também existem, são uma minoria. Lawrence da Arábia até se vestia como os árabes, mas, no final,
voltou para sua própria casa.
Passemos agora ao confronto
de civilizações, porque é essa a
questão. O Ocidente, seja apenas e
frequentemente por razões de expansão econômica, foi curioso em
relação a outras civilizações. Muitas vezes as liquidou com desprezo: os gregos chamavam de bárbaros, ou seja, de balbuciantes
aqueles que não falavam sua língua, e, por isso, era como se aqueles não falassem em absoluto. Mas
gregos mais maduros, como os
estóicos (talvez porque alguns
fossem de origem fenícia), bem
cedo advertiram que os bárbaros
usavam palavras diferentes das
gregas, mas se referiam aos mesmos pensamentos. Marco Polo
procurou descrever com grande
respeito os usos e costumes chineses; os grandes mestres da tecnologia cristã medieval procuravam
fazer com que fossem traduzidos
os textos de filósofos, médicos e
astrólogos árabes; os homens do
Renascimento até exageraram na
sua tentativa de recuperar a sabedoria oriental perdida, dos caldeus aos egípcios; Montesquieu
procurou entender como um persa poderia ver os franceses; e os
antropólogos modernos conduziram seus primeiros estudos sobre
as relações dos salesianos, que, de
fato, aproximavam-se dos Bororos para convertê-los, mas também para entender qual era o seu
modo de pensar e de viver -talvez por lembrar que missionários
de séculos antes não tinham conseguido entender as civilizações
ameríndias e haviam, assim, encorajado seu extermínio.
Fiz menção aos antropólogos.
Não falo nada de novo se lembro
que, da metade do século 19 em
diante, a antropologia cultural desenvolveu-se como tentativa de
sanar o remorso do Ocidente em
relação aos Outros, e especialmente àqueles Outros que eram
considerados selvagens, sociedades sem história, povos primitivos. O Ocidente não fora sensível
com os selvagens: havia-os "descoberto", tentado evangelizá-los,
explorá-los e reduzir muitos à escravidão, aliás, com a ajuda dos
árabes, porque os navios dos escravos eram descarregados em
Nova Orleans por traficantes muçulmanos. A antropologia cultural (que pôde prosperar graças à
expansão colonial) procurava reparar os pecados do colonialismo,
mostrando que aquelas culturas
"outras" eram justamente culturas, com suas crenças, seus ritos,
seus hábitos, bastante razoáveis
no contexto em que haviam se desenvolvido e absolutamente orgânicas, ou seja, se sustentavam sobre uma lógica interna. A tarefa
do antropólogo cultural era a de
demonstrar que existiam lógicas
diferentes da ocidental, que deviam ser levadas a sério, não desprezadas e reprimidas.
Isso não queria dizer que os antropólogos, uma vez explicada a
lógica dos Outros, decidissem viver como eles; pelo contrário, terminado seu trabalho de muitos
anos além-mar, voltavam para
passar uma serena velhice em Devonshire ou na Picardia. Mas, lendo seus livros, alguém poderia
pensar que a antropologia cultural defende uma posição relativista e que afirma que uma cultura
equivale a outra. Não me parece.
No máximo, o antropólogo dizia
que, enquanto os Outros estivessem em sua própria casa, era preciso respeitar seu modo de viver.
A verdadeira lição que se deve
tirar da antropologia cultural é
que, para dizer se uma cultura é
superior a outra, é preciso fixar
parâmetros. Uma coisa é dizer o
que é uma cultura, outra é dizer
com base em quais parâmetros a
julgamos. Uma cultura pode ser
descrita de forma aceitavelmente
objetiva: essas pessoas comportam-se assim, crêem nos espíritos
ou numa única divindade que deriva de si toda a natureza, unem-se em clãs de parentesco segundo
essas regras, consideram que seja
bonito transpassar o nariz com
anéis (poderia ser uma descrição
da cultura jovem no Ocidente),
consideram impura a carne de
porco, circuncidam-se, criam
cães para colocá-los na panela em
dias festivos ou, como ainda dizem os americanos sobre os franceses, comem rãs. O antropólogo
obviamente sabe que a objetividade é sempre posta em crise por
tantos fatores. No ano passado,
estive em Dogon (Camarões) e
perguntei a um garotinho se ele
era muçulmano. Ele respondeu
em francês: "Não, sou animista".
Ora, acreditem, um animista não
se define animista se não tiver pelo menos obtido um diploma na
Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), e, portanto, a
criança falava da própria cultura
da forma como a haviam definido
os antropólogos.
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