São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CORDA BAMBA

Francês que cruzou, num cabo de aço, o vão entre as torres do WTC espera que as reconstruam

"Gostaria de fazer aquilo outra vez"

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Se reconstruírem o World Trade Center, gostaria de fazer aquilo outra vez." Aquilo, no caso, exige determinação e muita coragem: estender um cabo de aço entre as duas torres gêmeas do conjunto comercial nova-iorquino e percorrer o fio metálico bem devagar, equilibrando-se sobre o nada.
O francês Philippe Petit, 52, realizou a proeza em agosto de 1974. Eram 7h do dia 7. Petit encontrava-se no topo da torre sul. De lá, podia avistar perfeitamente a torre norte. Idênticas, cada uma tinha 110 andares e 417 m de altura. Só o vazio as separava -um vazio de 60 passos largos, se tanto, que naquela manhã ganhara uma ponte inusitada: o cabo de aço, tão espesso quanto o dedo polegar de um adulto.
Petit respirou fundo e iniciou a travessia às 7h15, sem rede de segurança. Manejava uma vara flexível, que o ajudava a manter o equilíbrio. Do solo, uma pequena multidão aplaudiu quando o francês chegou à torre norte. Imaginavam que o passeio havia terminado. Não: Petit ainda cruzaria o cabo (ou arame, como ele prefere chamar) mais seis vezes.
Toda a performance demorou 45 minutos. E não se limitou propriamente à caminhada -de tempos em tempos, sobre a precária ponte, o equilibrista saudava o céu, acenava para o público, sorria, deitava-se, inventava coreografias graciosas.
Com os atentados terroristas do último dia 11, as torres gêmeas deixaram de existir. O francês, no entanto, alimenta a esperança de que as reconstruam. Deseja repetir, agora cinquentão, a façanha que protagonizou aos 25 anos.
"Se arruinassem o seu lar", explicou à Folha, por telefone, durante entrevista de 40 minutos, "você teria duas opções: ou iria embora e tentaria viver sem sua casa ou decidiria reerguê-la, como uma expressão de vitória, revolta e idealismo. Na minha opinião, as torres deveriam ressurgir, sim -não iguais às anteriores, mas no mesmíssimo lugar de onde as extraíram."

Vôo sem asas
Petit associa o WTC a um lar porque mora em Manhattan desde aquele agitado 1974. Desembarcou na ilha com uma única intenção: concretizar a travessia sobre a metrópole. Não falava inglês direito, não trazia dinheiro, não conhecia ninguém. "Quando consegui o que buscava, pensei: já posso partir. Passaram-se uns dias e não arrumei as malas. Uma semana, um mês, um ano... Acabei permanecendo."
Nascido em Nemours, cidade próxima a Paris, evita se definir simplesmente como equilibrista. Prefere que o considerem "um artista do arame". "Não se trata de loucura, aventura ou exibicionismo. O que faço é arte."
Uma "arte" que aprendeu sozinho. "Não venho de família circense e nunca frequentei escolas do gênero." Menino, sonhava em se tornar um pássaro. "Escalava árvores, rochas, tudo." Provavelmente, herdou do pai -um piloto de aviões militares- o fascínio por altura.
De tanto subir aqui e ali, "de tanto cair e levantar", condicionou o próprio corpo "a voar sem asas". "Vôo há quase quatro décadas." E ganha a vida principalmente assim, com os espetáculos de equilibrismo. "Também sou malabarista, mágico e escritor." Está preparando mais um livro, o oitavo, sobre "a arte de flutuar".

Crime perfeito
Em 1971, fez a primeira "decolagem" radical. Fixou o arame entre duas torres da catedral parisiense de Notre Dame e saiu andando, a 73 m do chão. Por não pedir permissão para nenhuma autoridade, terminou preso.
Dois anos depois, em Sydney, repetiu a dose entre os arcos de uma ponte. "Naquele tempo, já cismava com o World Trade Center." Recém-inauguradas, as torres gêmeas o atraíam "pela beleza". "Resolvi que iria cruzá-las. Não por heroísmo, mas como um ato de poesia."
Secretamente, começou a projetar o que, à época, chamou de "crime perfeito". "Imaginei que iria assaltar um banco." Teve de agir às escondidas porque sabia que não lhe dariam autorização para a caminhada.
Três amigos franceses -"meus cúmplices"- o auxiliaram. "Instalamos o cabo à noite, no cume das torres, agachados, sem luz e praticamente sem barulho."
Como conseguiram subir com uma tonelada de equipamentos? Petit não entra em detalhes. "O fato é que, de manhã, pude iniciar a travessia."
Enquanto se equilibrava, experimentou uma espécie de transe. Não sentiu os minutos correrem, não contou as idas e vindas no arame, não premeditou o delicado balé que ofereceu à platéia. "Entreguei-me ao improviso."
Logo a polícia apareceu. Aguardou que encerrasse a performance e o prendeu, alegando invasão de propriedade e perturbação da ordem. Também o submeteu a exames psiquiátricos.
"Acontece que eu não havia causado estrago algum nem machucado ninguém. Cometi apenas um crime artístico." Aplicaram-lhe, então, uma penalidade artística. "Mandaram que me apresentasse de graça no Central Park." Vinte mil pessoas o prestigiaram. "Andei em um arame inclinado, sobre o Belvedere Lake."
O passeio entre as torres gêmeas rendeu-lhe a primeira página dos jornais americanos. Disputou as manchetes com o escândalo de Watergate -que, um dia depois da travessia, iria obrigar o presidente Richard Nixon à renúncia.

Lindamente simples
Nunca mais Petit enfrentou alturas tão gigantescas quanto à do WTC nem precisou retomar as artimanhas de fora-da-lei. "Virei celebridade e agora costumo me exibir a convite de políticos e empresários." Já soma 80 espetáculos nos cinco continentes.
Quando Paris festejou o bicentenário da Revolução Francesa, por exemplo, o equilibrista meteu-se em um cabo inclinado e caminhou do rio Sena até o segundo andar da torre Eiffel. No ano que vem, pretende encenar uma ópera solitária sobre o rio Colorado, no Grand Canyon.
"É uma profissão perigosa, claro. Só que também é simples, lindamente simples. Cerco-me dos cuidados necessários e sigo adiante. Não me tornei um homem rico, mas atendi à minha vocação."
A respeito dos ataques terroristas, discorre muito pouco. "O que dizer? Não entendo de política. O mundo dos políticos não me interessa. Foi pela televisão que vi o WTC desabar. E pensei no horror, na tristeza, no inverso de tudo o que sempre cultivei. Mal pude acreditar."
Solteiro, sem filhos, não cogita sair de Manhattan mesmo depois do que ocorreu. "Vou ficar." Quanto à vontade de escalar novamente as torres gêmeas e pender sem nenhuma proteção entre o norte e o sul, justifica-a com apenas um argumento: "Quero que as pessoas voltem a olhar para o céu".


Texto Anterior: Mistério: Disparo acidental de míssil não derrubou avião, diz presidente da Ucrânia
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.