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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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COMENTÁRIO

Perigo: o materialismo ameaça nosso bem-estar

RICHARD TOMKINS
DO ""FINANCIAL TIMES"

Será que é ir longe demais afirmar que, até muito recentemente, o motivo condutor da história humana sempre foi a miséria? É fácil imaginar o passado como alguma espécie de idílio bucólico, mas apenas se ignorarmos o sofrimento perpétuo provocado pelas guerras, as pestes e a fome. Entre uma coisa e outra, você poderia ter a esperança de não viver sob a sombra excessiva do medo, das superstições e da perseguição religiosa, mas não haveria maneira de escapar daquilo que o economista John Maynard Keynes descreveu como o problema permanente da humanidade: a luta pela subsistência.
Uma das conquistas mais espantosas da história econômica recente é o fato de esse problema aparentemente permanente ter sido resolvido no mundo industrializado avançado. A maior parte das pessoas nos países desenvolvidos vive não num estado de carência, mas de superabundância. As pessoas não se preocupam mais em saber se poderão pôr comida na mesa dos filhos ou manter um teto sobre suas cabeças, mas qual pacote de canais a cabo devem assinar, onde passar suas férias ou que grifes vestir.
Mas algumas pessoas não ficam satisfeitas nunca. Apesar de estarem mais ricas, mais saudáveis e em maior segurança do que nunca, e apesar de gozarem mais liberdades e oportunidades, continuam a se queixar: sobre os índices crescentes de depressão e suicídio, sobre a criminalidade, sobre o fato de os bons modos estarem caindo em desuso, sobre a obesidade, os maus motoristas, o abuso de drogas, a hipercompetitividade, o materialismo crescente e, sobretudo, sobre o spam.
O fato é que, no Ocidente, o aumento da produção econômica e do consumo já deixou de ser acompanhado por um aumento no índice de felicidade das pessoas. E, à medida que a distância entre as duas coisas aumenta, ela chega perto de virar obsessão.
A Fundação Nova Economia, de Londres, e o Instituto Austrália, de Canberra, fizeram relatórios sobre a busca da felicidade. Na semana passada a Royal Society, a mais importante academia científica britânica, promoveu uma conferência de dois dias sobre a ciência do bem-estar. No mês passado, a revista ""New Scientist" dedicou uma série em duas partes ao tema. E assim por diante.

Nível de exigência
As principais descobertas resultantes das pesquisas sobre felicidade podem ser resumidas em poucas frases. Embora mais dinheiro seja garantia de um grande aumento de felicidade quando se é pobre, cada dólar a mais faz cada vez menos diferença a partir do momento em que as necessidades básicas das pessoas foram satisfeitas. São muito mais importantes coisas não materiais, tais como um casamento feliz e passar tempo com as pessoas que se ama.
Mas o dinheiro e os bens materiais fazem diferença, sim, em um ponto: as pessoas tendem a buscar status e, portanto, se julgam comparando-se com os sinais visíveis do sucesso das outras.
Infelizmente, como observa o relatório da Fundação Nova Economia, essa é uma competição que nunca tem fim, porque o nível de exigências não pára de subir. Antigamente, possuir uma casa era sinal de status; hoje, menos do que duas não serve.
Se as pessoas pudessem superar sua preocupação com o status, ficaria claro qual é o caminho que leva à felicidade: elas deveriam trabalhar menos, aceitando receber menos, em troca de mais tempo para passar com seus familiares e amigos. Talvez você ache que isso nunca vai acontecer. Mas, de acordo com Clive Hamilton, autor do relatório do Instituto Austrália, nada menos do que 25% dos britânicos na faixa dos 30 aos 59 anos fizeram exatamente isso nos últimos dez anos, aceitando voluntariamente ter seus ganhos reduzidos para poderem melhorar sua qualidade de vida.
Nosso sistema econômico inteiro, com seus aumentos anuais de PIB programados, é fundamentado no conceito de satisfazer o desejo por mais, e a publicidade existe exclusivamente para ajudar a gerar esse desejo. Mas o que aconteceria se as pessoas se convencessem de que o desejo de possuir mais, em lugar de aumentar sua felicidade, na verdade constitui obstáculo a ela?
As pessoas sempre tiveram uma atitude ambivalente em relação à publicidade, temendo que ela as ludibriasse, convencendo-as a comprar coisas de que não precisam. Talvez isso explique um paradoxo: o de que, à medida que a sociedade vem se tornando mais liberal, as atitudes em relação à publicidade tenham evoluído no sentido oposto. Hoje não é mais possível fazer publicidade de qualquer produto que possa ser vendido legalmente. As pessoas estão exigindo que a publicidade opere dentro dos parâmetros de objetivos sociais, até mesmo morais. Às proibições da publicidade de cigarros agora se seguem chamados pela imposição de limites à publicidade de outros produtos ""indesejáveis", tais como bebidas alcoólicas e fast food. E cresce o clamor para que seja proibida a publicidade voltada às crianças, movido em boa parte pelo temor de que elas estejam sofrendo lavagem cerebral, com o intuito de levá-las ao consumismo.
Partindo disso, será apenas um passo curto defender a proibição da publicidade voltada aos adultos, alegando que ela os faz infelizes. Isso nunca vai acontecer, é claro; as pessoas sempre vão desejar bens materiais, de modo que a publicidade sempre vai exercer um papel necessário. Mas será que é possível imaginar um dia em que cada anúncio seja obrigatoriamente acompanhado de um aviso do governo, algo como ""Perigo: -o materialismo pode prejudicar seu bem-estar"?
A propensão a adquirir sempre mais é, afinal, muito semelhante ao tabagismo: faz mal às pessoas, cria dependência e é muito mais fácil de ser abandonada se todos o fizerem ao mesmo tempo. Assim, o interesse da felicidade da maioria das pessoas seria mais bem atendido se a política social fosse dirigida no sentido de marginalizar as pessoas que buscam status, transformando-as em párias, de modo que os outros pudessem começar a trabalhar e ganhar menos, tranquilos por saber que não apenas seriam a maioria, como estariam fazendo a coisa certa.


Tradução de Clara Allain


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