São Paulo, quinta-feira, 08 de janeiro de 2004

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AMÉRICAS

Governo Bush se diz decepcionado com "giro à esquerda" de Kirchner; Buenos Aires cobra respeito à sua autodeterminação

EUA e Argentina trocam acusações

CAROLINA VILA-NOVA
DE BUENOS AIRES

No momento de maior tensão nas relações entre Argentina e EUA desde o início do mandato do presidente Néstor Kirchner (maio), o governo argentino rebateu ontem críticas feitas pelo secretário-assistente de Estado para as Américas, Roger Noriega, de que o país estaria fazendo um "giro à esquerda" que "decepcionou" a Casa Branca.
Durante uma conferência no Conselho das Américas, anteontem em Nova York, Noriega afirmou ainda que os EUA estão "preocupados" com a política de Kirchner em relação a Cuba.
No ano passado, após décadas de desavenças, a Argentina reatou relações diplomáticas com Cuba. Em fevereiro, Kirchner deve fazer sua primeira visita à ilha.
"Tem havido incidentes, instâncias particulares, nos quais temos estado decepcionados com as decisões das autoridades argentinas", disse Noriega. "Notei que a política argentina parece ter feito um giro à esquerda, o que é desconcertante porque a Argentina é um país importante que deveria estar conosco na promoção dos direitos humanos."
"Quando o chanceler [Rafael] Bielsa viajou a Havana [em outubro de 2003] e não se reuniu com nenhum dos dissidentes, enviou uma imagem muito ruim da política externa argentina", criticou.
As críticas ocorrem dias após declarações do porta-voz do Departamento de Estado dos EUA Adam Ereli de que Cuba e Venezuela estão fomentando um sentimento antiamericano na região que incomodaria "vizinhos".
Segundo Ereli, a estratégia dos dois países teria como base treinamentos e doutrinação política financiados com dinheiro do petróleo venezuelano, com objetivo de "trocar experiências" e eventualmente infiltrar pessoas e militares em outros países.
Na semana passada, Noriega - um cubano-americano anticastrista - acusou o ditador Fidel Castro de querer "desestabilizar governos eleitos democraticamente" na região.
O presidente venezuelano, Hugo Chávez, aproveitou a ocasião para colocar lenha na fogueira. "Há um eixo que está se formando, um eixo Caracas-Brasília-Buenos Aires, um eixo em torno do qual se está desenvolvendo uma nova visão geopolítica, econômica, de integração", afirmou, ao tratar da expectativa em torno da reunião da Cúpula das Américas na próxima semana, em Monterrey (México).
As declarações de Noriega, que coincidiram com um pedido do presidente George W. Bush para um encontro privado com Kirchner na terça-feira, em Monterrey, provocaram fortes reações por parte do governo argentino.

"Nocaute"
"Ganharemos por nocaute", reagiu Kirchner, questionado sobre o encontro com Bush.
"Deixamos de ser um tapete. Podemos aceitar e realizar reuniões, mas ninguém nos convoca, muito menos para nos desafiar, porque somos um país independente e com dignidade", disse.
"Me chama a atenção que em um país que se importa com a democracia e levanta a bandeira dos direitos humanos se rechace a autodeterminação de um país democrático como a Argentina", disse o chanceler Rafael Bielsa.
O governo ressaltou ainda que "já não existem mais relações carnais nem alinhamento automático", em referência ao ex-presidente Carlos Menem (1989-99), que adotou posicionamento fortemente atrelado aos EUA.
A Argentina, por exemplo, foi o único país da América do Sul a participar da coalização anti-Iraque, junto aos EUA, durante a Guerra do Golfo (1991).
Mas, desde a profunda crise política e econômica do final de 2001, que culminou com a queda do governo De la Rúa, a Argentina mudou de posição, sentindo-se abandonada pelos EUA, que teria deixado o país "quebrar".


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