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NORMAN PATTIZ
Para idealizador da rede Al Hurra, americanos levam visão "equilibrada e confiável" ao Oriente Médio
Moderados agora têm voz, diz criador de TV árabe dos EUA
LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO
Quando a rede qatariana de TV
Al Jazira entrou no ar, em 1996,
para transmitir 24 horas por dia
de notícias aos países árabes, foi
inevitável vê-la como uma resposta local à CNN e sua eficácia
em difundir o noticiário de abordagem americana. O tempo passou e a rede se fixou: se na Guerra
do Golfo (1991) a americana ganhou notoriedade com sua cobertura espetaculosa, no ano passado, com a Guerra do Iraque, a qatariana disputou audiência ao
lançar seu canal em inglês.
Sob o nome de Al Hurra (do
árabe "aquela que é livre"), a resposta americana veio neste mês.
Chegou com atraso, segundo seu
criador, mas com um objetivo claro: dar voz -e conseqüentemente poder- aos moderados da região. "É importante podermos ao
menos competir no mercado
ideológico", diz o radialista americano Norman Pattiz, 61, que desenvolveu a rede americana voltada ao público árabe. "Mas só tentamos persuadir os persuasíveis."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Pattiz, presidente da comissão de Oriente
Médio do Conselho Regulador da
Radiodifusão, concedeu à Folha,
por telefone, de Los Angeles.
Folha- Como ocorreu a decisão de
criar um canal de TV americano para o Oriente Médio?
Norman Pattiz - Qualquer um familiarizado com a mídia na região
sabe que há um alto teor de discursos de ódio disseminado no
rádio e na televisão, de incitação à
violência, desinformação, censura estatal e até mesmo autocensura entre os jornalistas. Até a criação da rádio Sawa [2002], os EUA
não tinham quase acesso à região.
E a Sawa começou a fazer sucesso,
uma estação claramente americana, que se tornou a mais ouvida
por seu público-alvo, de até 25
anos, que a considera confiável...
Folha - Como foi vista a cobertura
da Guerra do Iraque pela Sawa?
Pattiz -Eu diria que foi bem
equilibrada. Nossa missão, do
Conselho Regulador da Radiodifusão e das transmissões internacionais americanas, é dar um
exemplo de imprensa livre. Nossos espectadores não são burros.
Não estamos no negócio da propaganda ideológica nem no de
operações psicológicas. Se tivermos um produto que os espectadores acham crível e confiável,
eles continuarão nos ouvindo.
Folha - Mas o conselho é ligado ao
governo. Não há pressões?
Pattiz - Um de nossos principais
papéis é servir como uma espécie
de filtro protetor entre a independência dos jornalistas e as pressões que nos são impostas pelo
governo ou pelo Congresso.
Folha - A Sawa ou a Al Hurra poderiam se ver na mesma situação
da britânica BBC, acusada de conduzir uma campanha contra o governo que incluiu acusações falsas?
Pattiz -É óbvio que nenhuma
organização de notícias com credibilidade quer divulgar informações incorretas, mas coisas assim
acontecem às vezes. Nunca estivemos nessa posição e estamos há
60 anos nesse negócio... Mas lidamos com seres humanos, sempre
há possibilidade de acontecer.
Folha - Mas, se houvesse informações críveis de fontes confiáveis
negativas ao governo, vocês divulgariam sem problemas?
Pattiz -Se é notícia, nós cobrimos. Acho bom lançarmos a Al
Hurra em um ano eleitoral nos
EUA, porque na cobertura da
campanha haverá uma boa dose
de crítica ao presidente pelos democratas, assim como haverá aos
democratas pelo governo, e as
pessoas poderão entender rapidamente o processo democrático
numa sociedade livre.
Folha - Como está a aceitação do
canal pela população da região?
Pattiz -Não temos como saber
ainda, pois só estamos no ar há
três semanas. O que sabemos é
que a imprensa árabe foi extremamente dura com a Al Hurra, mas
grande parte dessas críticas começou antes de irmos ao ar. Parece que há grande preocupação da
mídia controlada pelo governo
com a chegada da Al Hurra. Também recebemos milhares de e-mails positivos de gente que está
assistindo ao canal. Como nosso
público-alvo não é a mídia, são as
pessoas, neste momento nos interessa qualquer coisa que faça as
pessoas saberem que estamos lá.
Folha - Já há números?
Pattiz - Não, é cedo. Só começaremos a medir audiência quando
estivermos no ar 24 horas por dia
[a partir de 15 de março].
Folha - Qual é a relação de vocês
com a Al Jazira?
Pattiz - Eu os conheço bem. O
xeque Hamad al Thani, diretor da
Al Jazira, foi o primeiro a dar permissão para a Rádio Sawa ter uma
freqüência FM, e o pessoal da Al
Jazira rompeu alguns tabus muito
importantes na
região -sobretudo o da imprensa
estatal não criticar
outros governos.
A Al Jazira critica
todo mundo. Exceto Qatar.
Folha - Onde eles
estão baseados.
Pattiz -O Qatar
tem de ter muito
jogo de cintura...
Por um lado, é o
maior aliado militar dos EUA na região, por outro,
tem a Al Jazira,
que o liga ao sentimento das ruas...
Folha - Se não
houvesse Al Jazira
seria mais difícil
para a Al Hurra?
Pattiz - Com certeza a ascensão
da TV por satélite na região, da
qual a Al Jazira é o melhor exemplo, não só tornou possível como
também necessária a criação da
Al Hurra. Mas provavelmente deveríamos ter criado a Al Hurra
anos atrás, quando esse tecnologia surgiu. Cerca de 60% da população dessa região tem menos de
25 anos, uma bolha populacional
enorme que não tem ainda um
bom senso de história. Aí vem a
TV por satélite, capaz de cobrir
todos os países da região, apresentando informações de uma
maneira até então inédita e que,
na nossa opinião, pode radicalizar
essa população que está crescendo e criar grandes problemas. É
por isso que é tão importante podermos ao menos competir no
mercado ideológico.
Folha - A cobertura do conflito israelo-palestino pelo canal é tida como enviesada por
alguns críticos. Como o sr. a vê?
Pattiz - Não acho
enviesada, acho
precisa. Uma vez
o correspondente
palestino da Al Jazira disse que,
muitas vezes, era
difícil ser objetivo
quando se vive lá e
se vê tudo por
uma lente de aumento. Também é
difícil ser objetivo
quando a informação vem de
uma única fonte.
Além disso, a
abordagem da crise israelo-palestina pela imprensa tem base no que
ocorre hoje, com pouco contexto.
Mas a crise não surgiu hoje, ela
surgiu em 1948 [com a criação de
Israel] e tomou maior proporção
em 1967 [com a Guerra dos Seis
Dias]. Antes de 1967 não eram os
israelenses que estavam nessas
áreas, mas os egípcios e os jordanianos, que podiam ter criado um
Estado palestino a qualquer hora,
mas não o fizeram. Quando seis
países invadiram Israel, em 1967,
Israel teve que se mudar para o
que hoje são os territórios ocupados. Acho que esse tipo de informação deve ser acrescido ao debate. Sem contexto histórico, o
que sobra são apenas paixões.
Folha - A Al Hurra vai dar exatamente esse contexto?
Pattiz - Sim. Queremos vender o
quadro geral, para que as pessoas
julguem com o máximo de informação possível. O
que esperamos é
ser um canal que
dê voz aos moderados, que na região não têm muito espaço.
Folha - Isso é um
meio de dar poder
a eles.
Pattiz - Sim, com
certeza.
Folha - É uma meta dos EUA?
Pattiz - É... Quer
dizer, conseguir
expor a visão dos
moderados é nosso objetivo, mas
pretendemos promover debates
acirrados entre
pessoas com pontos de vista mais
radicais e mais moderados.
Folha - A Al Hurra transmite para
22 países diferentes, com graus diferentes de liberalização. Como
funciona a programação?
Pattiz - Fazemos o mesmo que a
Al Jazira e a Al Arabyia: temos alguns programas específicos para
determinados países, mas também tratamos de assuntos pan-árabes. É mais fácil no rádio, que é
mais local e pode ter programações diferentes. Na TV por satélite
não há essa flexibilidade.
Folha - Haverá espaço para falar
de religião?
Pattiz - Com certeza noticiaremos eventos religiosos importantes, por serem notícia, mas não
promoveremos nenhuma religião. Podemos ter mesas redondas sobre aspectos religiosos envolvendo um determinado fato.
Folha - Os jornalistas vão aparecer no vídeo no estilo ocidental?
Pattiz -A maioria sim, mas há alguns que preferem roupas tradicionais islâmicas,
inclusive que cobrem a cabeça.
Nossos convidados se vestem como bem entendem. Mas temos
sucursais na região, então haverá
muita gente vestida conforme a tradição local. Já os
apresentadores
devem optar pelo
estilo ocidental.
Folha - Vocês estão recebendo críticas por isso?
Pattiz -Recebemos alguns e-mails bem fortes, embora as mensagens negativas sejam uns 2% do
total. Há quem ache que somos
controlados pelos israelenses ou
fazemos parte de uma operação
da CIA [serviço secreto dos EUA].
Folha - Mas esse tipo de reação já
era esperado, não?
Pattiz -Sim, já passamos por tudo isso com a Rádio Sawa. O que
nos anima é que tudo isso foi dito
antes, e a Sawa é a rádio mais popular entre seu público-alvo.
Folha- O sr. acha que o mesmo
acontecerá com a Al Hurra?
Pattiz -Acho que a Al Hurra vai
ter uma audiência considerável.
Folha- Qual a expectativa?
Pattiz -A Al Jazira diz ter 30 milhões de telespectadores. É o número que pretendemos atingir.
Folha- Recentemente, uma reação negativa do público árabe tirou do ar a versão local do "Big Brother", um programa de formato
ocidental. Como a Al Hurra vai lidar
com uma platéia mais sensível em
termos comportamentais?
Pattiz - Bom, já teve até "fatwas"
[decretos religiosos] emitidos por
líderes islâmicos proibindo os
fiéis de ver a Al Hurra.
Folha- Onde?
Pattiz - Na Arábia Saudita e mais
uns dois lugares -só que toda
vez que alguém diz para outra
pessoa não fazer algo, aí é que ela
faz. Mas só tentamos persuadir os
persuasíveis. Não é nosso trabalho promover a política americana, e sim descrevê-la precisamente, debater seus prós e contras para que as pessoas entendam que,
em uma democracia, você pode
discordar do governo. Só que as
políticas desse governo são extremamente impopulares, e nós seremos vistos, inicialmente, como
uma organização de propaganda
ideológica. O único jeito de contestar isso é mostrar imparcialidade todo dia. Sem credibilidade
com os telespectadores, estaremos fadados ao fracasso.
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