São Paulo, segunda-feira, 08 de março de 2004

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NORMAN PATTIZ

Para idealizador da rede Al Hurra, americanos levam visão "equilibrada e confiável" ao Oriente Médio

Moderados agora têm voz, diz criador de TV árabe dos EUA

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

Quando a rede qatariana de TV Al Jazira entrou no ar, em 1996, para transmitir 24 horas por dia de notícias aos países árabes, foi inevitável vê-la como uma resposta local à CNN e sua eficácia em difundir o noticiário de abordagem americana. O tempo passou e a rede se fixou: se na Guerra do Golfo (1991) a americana ganhou notoriedade com sua cobertura espetaculosa, no ano passado, com a Guerra do Iraque, a qatariana disputou audiência ao lançar seu canal em inglês.
Sob o nome de Al Hurra (do árabe "aquela que é livre"), a resposta americana veio neste mês. Chegou com atraso, segundo seu criador, mas com um objetivo claro: dar voz -e conseqüentemente poder- aos moderados da região. "É importante podermos ao menos competir no mercado ideológico", diz o radialista americano Norman Pattiz, 61, que desenvolveu a rede americana voltada ao público árabe. "Mas só tentamos persuadir os persuasíveis."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Pattiz, presidente da comissão de Oriente Médio do Conselho Regulador da Radiodifusão, concedeu à Folha, por telefone, de Los Angeles.

 

Folha- Como ocorreu a decisão de criar um canal de TV americano para o Oriente Médio?
Norman Pattiz -
Qualquer um familiarizado com a mídia na região sabe que há um alto teor de discursos de ódio disseminado no rádio e na televisão, de incitação à violência, desinformação, censura estatal e até mesmo autocensura entre os jornalistas. Até a criação da rádio Sawa [2002], os EUA não tinham quase acesso à região. E a Sawa começou a fazer sucesso, uma estação claramente americana, que se tornou a mais ouvida por seu público-alvo, de até 25 anos, que a considera confiável...

Folha - Como foi vista a cobertura da Guerra do Iraque pela Sawa?
Pattiz -
Eu diria que foi bem equilibrada. Nossa missão, do Conselho Regulador da Radiodifusão e das transmissões internacionais americanas, é dar um exemplo de imprensa livre. Nossos espectadores não são burros. Não estamos no negócio da propaganda ideológica nem no de operações psicológicas. Se tivermos um produto que os espectadores acham crível e confiável, eles continuarão nos ouvindo.

Folha - Mas o conselho é ligado ao governo. Não há pressões?
Pattiz -
Um de nossos principais papéis é servir como uma espécie de filtro protetor entre a independência dos jornalistas e as pressões que nos são impostas pelo governo ou pelo Congresso.

Folha - A Sawa ou a Al Hurra poderiam se ver na mesma situação da britânica BBC, acusada de conduzir uma campanha contra o governo que incluiu acusações falsas?
Pattiz -
É óbvio que nenhuma organização de notícias com credibilidade quer divulgar informações incorretas, mas coisas assim acontecem às vezes. Nunca estivemos nessa posição e estamos há 60 anos nesse negócio... Mas lidamos com seres humanos, sempre há possibilidade de acontecer.

Folha - Mas, se houvesse informações críveis de fontes confiáveis negativas ao governo, vocês divulgariam sem problemas?
Pattiz -
Se é notícia, nós cobrimos. Acho bom lançarmos a Al Hurra em um ano eleitoral nos EUA, porque na cobertura da campanha haverá uma boa dose de crítica ao presidente pelos democratas, assim como haverá aos democratas pelo governo, e as pessoas poderão entender rapidamente o processo democrático numa sociedade livre.

Folha - Como está a aceitação do canal pela população da região?
Pattiz -
Não temos como saber ainda, pois só estamos no ar há três semanas. O que sabemos é que a imprensa árabe foi extremamente dura com a Al Hurra, mas grande parte dessas críticas começou antes de irmos ao ar. Parece que há grande preocupação da mídia controlada pelo governo com a chegada da Al Hurra. Também recebemos milhares de e-mails positivos de gente que está assistindo ao canal. Como nosso público-alvo não é a mídia, são as pessoas, neste momento nos interessa qualquer coisa que faça as pessoas saberem que estamos lá.

Folha - Já há números?
Pattiz -
Não, é cedo. Só começaremos a medir audiência quando estivermos no ar 24 horas por dia [a partir de 15 de março].

Folha - Qual é a relação de vocês com a Al Jazira?
Pattiz -
Eu os conheço bem. O xeque Hamad al Thani, diretor da Al Jazira, foi o primeiro a dar permissão para a Rádio Sawa ter uma freqüência FM, e o pessoal da Al Jazira rompeu alguns tabus muito importantes na região -sobretudo o da imprensa estatal não criticar outros governos. A Al Jazira critica todo mundo. Exceto Qatar.

Folha - Onde eles estão baseados.
Pattiz -
O Qatar tem de ter muito jogo de cintura... Por um lado, é o maior aliado militar dos EUA na região, por outro, tem a Al Jazira, que o liga ao sentimento das ruas...

Folha - Se não houvesse Al Jazira seria mais difícil para a Al Hurra?
Pattiz -
Com certeza a ascensão da TV por satélite na região, da qual a Al Jazira é o melhor exemplo, não só tornou possível como também necessária a criação da Al Hurra. Mas provavelmente deveríamos ter criado a Al Hurra anos atrás, quando esse tecnologia surgiu. Cerca de 60% da população dessa região tem menos de 25 anos, uma bolha populacional enorme que não tem ainda um bom senso de história. Aí vem a TV por satélite, capaz de cobrir todos os países da região, apresentando informações de uma maneira até então inédita e que, na nossa opinião, pode radicalizar essa população que está crescendo e criar grandes problemas. É por isso que é tão importante podermos ao menos competir no mercado ideológico.

Folha - A cobertura do conflito israelo-palestino pelo canal é tida como enviesada por alguns críticos. Como o sr. a vê?
Pattiz -
Não acho enviesada, acho precisa. Uma vez o correspondente palestino da Al Jazira disse que, muitas vezes, era difícil ser objetivo quando se vive lá e se vê tudo por uma lente de aumento. Também é difícil ser objetivo quando a informação vem de uma única fonte. Além disso, a abordagem da crise israelo-palestina pela imprensa tem base no que ocorre hoje, com pouco contexto. Mas a crise não surgiu hoje, ela surgiu em 1948 [com a criação de Israel] e tomou maior proporção em 1967 [com a Guerra dos Seis Dias]. Antes de 1967 não eram os israelenses que estavam nessas áreas, mas os egípcios e os jordanianos, que podiam ter criado um Estado palestino a qualquer hora, mas não o fizeram. Quando seis países invadiram Israel, em 1967, Israel teve que se mudar para o que hoje são os territórios ocupados. Acho que esse tipo de informação deve ser acrescido ao debate. Sem contexto histórico, o que sobra são apenas paixões.

Folha - A Al Hurra vai dar exatamente esse contexto?
Pattiz -
Sim. Queremos vender o quadro geral, para que as pessoas julguem com o máximo de informação possível. O que esperamos é ser um canal que dê voz aos moderados, que na região não têm muito espaço.

Folha - Isso é um meio de dar poder a eles.
Pattiz -
Sim, com certeza.

Folha - É uma meta dos EUA?
Pattiz -
É... Quer dizer, conseguir expor a visão dos moderados é nosso objetivo, mas pretendemos promover debates acirrados entre pessoas com pontos de vista mais radicais e mais moderados.

Folha - A Al Hurra transmite para 22 países diferentes, com graus diferentes de liberalização. Como funciona a programação?
Pattiz -
Fazemos o mesmo que a Al Jazira e a Al Arabyia: temos alguns programas específicos para determinados países, mas também tratamos de assuntos pan-árabes. É mais fácil no rádio, que é mais local e pode ter programações diferentes. Na TV por satélite não há essa flexibilidade.

Folha - Haverá espaço para falar de religião?
Pattiz -
Com certeza noticiaremos eventos religiosos importantes, por serem notícia, mas não promoveremos nenhuma religião. Podemos ter mesas redondas sobre aspectos religiosos envolvendo um determinado fato.

Folha - Os jornalistas vão aparecer no vídeo no estilo ocidental?
Pattiz -
A maioria sim, mas há alguns que preferem roupas tradicionais islâmicas, inclusive que cobrem a cabeça. Nossos convidados se vestem como bem entendem. Mas temos sucursais na região, então haverá muita gente vestida conforme a tradição local. Já os apresentadores devem optar pelo estilo ocidental.

Folha - Vocês estão recebendo críticas por isso?
Pattiz -
Recebemos alguns e-mails bem fortes, embora as mensagens negativas sejam uns 2% do total. Há quem ache que somos controlados pelos israelenses ou fazemos parte de uma operação da CIA [serviço secreto dos EUA].

Folha - Mas esse tipo de reação já era esperado, não?
Pattiz -
Sim, já passamos por tudo isso com a Rádio Sawa. O que nos anima é que tudo isso foi dito antes, e a Sawa é a rádio mais popular entre seu público-alvo.

Folha- O sr. acha que o mesmo acontecerá com a Al Hurra?
Pattiz -
Acho que a Al Hurra vai ter uma audiência considerável.

Folha- Qual a expectativa?
Pattiz -
A Al Jazira diz ter 30 milhões de telespectadores. É o número que pretendemos atingir.

Folha- Recentemente, uma reação negativa do público árabe tirou do ar a versão local do "Big Brother", um programa de formato ocidental. Como a Al Hurra vai lidar com uma platéia mais sensível em termos comportamentais?
Pattiz -
Bom, já teve até "fatwas" [decretos religiosos] emitidos por líderes islâmicos proibindo os fiéis de ver a Al Hurra.

Folha- Onde?
Pattiz -
Na Arábia Saudita e mais uns dois lugares -só que toda vez que alguém diz para outra pessoa não fazer algo, aí é que ela faz. Mas só tentamos persuadir os persuasíveis. Não é nosso trabalho promover a política americana, e sim descrevê-la precisamente, debater seus prós e contras para que as pessoas entendam que, em uma democracia, você pode discordar do governo. Só que as políticas desse governo são extremamente impopulares, e nós seremos vistos, inicialmente, como uma organização de propaganda ideológica. O único jeito de contestar isso é mostrar imparcialidade todo dia. Sem credibilidade com os telespectadores, estaremos fadados ao fracasso.



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