São Paulo, sexta-feira, 08 de abril de 2005

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A MORTE DO PAPA

D. Cláudio é a abertura, diz Ricupero

Diplomata participou em março de conferência no Vaticano em que o cardeal brasileiro defendeu a modernidade e o indivíduo

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O embaixador Rubens Ricupero, 68, foi convidado no mês passado para participar de uma conferência no Vaticano em comemoração aos 40 anos de um documento ("Gaudium et Spes") sobre a doutrina social da igreja.
Diz que o encontro, com a presença de oito cardeais da cúria, foi dominado pela intervenção de outro orador, o arcebispo de São Paulo, d. Cláudio Hummes. Ele se posicionou claramente como alguém compromissado com um "espírito de abertura", inexistente no final do pontificado de João Paulo 2º. Foi uma maneira corajosa se o papável se deixar conhecer.
Ricupero, que foi ministro da Fazenda (1994), embaixador do Brasil na ONU, nos Estados Unidos e em Roma, e secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), é hoje, em São Paulo, diretor da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Faap.
Eis trechos de sua entrevista.

 

Folha - Com que setores do Vaticano o sr. tem tido contatos?
Rubens Ricupero -
Sou amigo pessoal do cardeal Martino, presidente do Conselho Justiça e Paz. É um dos homens da cúria mais abertos à realidade do mundo moderno, por seis anos embaixador do Vaticano na ONU.

Folha - Foi ele quem organizou a conferência sobre conquistas sociais do Concílio Vaticano 2º?
Ricupero -
Justamente. Foi no mês passado, quando o papa já estava bastante enfermo. Ele organizou uma conferência sobre os 40 anos da "Gaudium et Spes" (alegria e esperança). Eu também participei desse encontro, com uma conferência, "O Apelo à Justiça na Ordem Política". Mas foi d. Cláudio Hummes o principal conferencista. Ele foi encarregado de discorrer sobre os fundamentos teológicos e eclesiológicos.

Folha - D. Cláudio e d. Martino são agora papáveis, não é?
Ricupero -
Fiquei muito impressionado. O ambiente nessa conferência já era o da próxima morte do papa. Eu falei no dia 17 de março. D. Cláudio, no dia 16. Estava também presente o cardeal Angelo Sodano, o secretário de Estado.

Folha - O sr. conferenciou como leigo ou como diplomata?
Ricupero -
Como "um pouco tudo". Nos últimos anos já fiz conferência no Vaticano sobre a economia à luz da fé, participei de um debate sobre os transgênicos.

Folha - Voltemos a d. Cláudio.
Ricupero -
Eu percebi que o momento era importante justamente por causa dele. Estavam presentes oito cardeais da cúria para ouvi-lo. Fiquei impressionado pelo fato de, sem falar na primeira pessoa, d. Cláudio ter demonstrado que é muito diferente do espírito que dominou esse final de pontificado. Seu espírito é de abertura.

Folha - De que maneira?
Ricupero -
Ele falou do mundo moderno, do mundo contemporâneo. Mas no sentido positivo, sem medo ou condenação. Ele disse que o Concílio "afirmou a autonomia da realidades terrestres, essa visão positiva da criação, das atividades humanas, das ciências, da técnica".

Folha - São temas tabus?
Ricupero -
D. Cláudio falou da biologia, que hoje no Vaticano é um tema tabu. O texto tem essa visão positiva do mundo moderno. Ele também dá ênfase ao respeito da dignidade da consciência individual, mesmo quando essa consciência comete erros.

Folha - Não é a temática atual?
Ricupero -
Não. A temática atual tem sido a de procurar limitar as esferas em que se possa aplicar o julgamento da consciência individual. D. Cláudio, ao contrário, amplia essa esfera.

Folha - Um posicionamento dele?
Ricupero -
Foi. Na política de escolha de um novo papa os candidatos não procuram aparecer com um perfil muito acentuado. As pessoas procuram ser menos conhecidas.

Folha - Não seria dar murro em ponto de faca, contra uma mentalidade conservadora?
Ricupero -
Eu não sei interpretar a subjetividade dele, de d. Cláudio. Mas ele fez isso com coragem. Embora sua conferência não seja provocativa, os temas são claros. Tanto assim que havia uma energia eletrizante. Um clima de Concílio Ecumênico.

Folha - Não haveria uma armadilha do cardeal Martino para "queimar" d. Cláudio?
Ricupero -
Sou amigo do cardeal Martino. Não é um homem disso. Mas acho que d. Cláudio claramente assumiu uma atitude de dizer: "Eu sou isso, eu sou um homem de esperança, sou um homem que acredita na liberdade da consciência individual". Não quis enganar ninguém.

Folha - Não seria contraproducente para um papável?
Ricupero -
Pode ser em termos de cálculo. Mas eu o admirei muito como ser humano, que tem a sua coerência e, com toda a serenidade, a capacidade de dizer aquilo que ele é.

Folha - O sr. tem afinidades com d. Cláudio?
Ricupero -
Eu sou mais dessa ala. Para mim a grande figura do século 20 na igreja foi João 23. Respeito profundamente o papa que acaba de morrer, que irradiava uma grande força espiritual.

Folha - O que se diz no Vaticano de um modo mais geral?
Ricupero -
O que se diz é que o próximo papa será "pastoral". Talvez seja, num modo codificado, uma referência ao cardeal Dionigi Tettamanzi, de Milão. É um pastor da igreja, com forte preocupação social. Uma segunda interpretação seria a de um papa que volte o olhar para dentro da igreja, que pense em nas crises internas, nos seminários desertos, sem novos padres.

Folha - O vaticanista Giancarlo Zizola escreveu há dias que até o celibato conjugal poderia ser discutido nesse próximo conclave.
Ricupero -
Esses homens [os cardeais do conclave] podem ser tudo, mas não são estúpidos. Conhecem a realidade de suas próprias dioceses. Um dos problemas que eles seguramente devem perceber é que a mera afirmação de certeza antigas não detém a crise de vocações.

Folha - Voltando duas décadas, como foi o encontro de João Paulo 2º com Tancredo Neves?
Ricupero -
Depois de eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo fez uma viagem ao exterior. Eu o acompanhei como assessor diplomático. Tancredo primeiro conversou com o cardeal Agostino Casaroli, secretário de Estado do Vaticano. Tancredo pensou que estivesse diante de um prelado tradicional. Disse que vinha, como filho da igreja, testemunhar a devoção do povo brasileiro, um povo obediente à igreja e ao santo padre. Eis que Casaroli respondeu: "Sr. presidente, o Santo Padre ficará muito contente de ouvir essas expressões de amor filial, mas dirá que não basta a devoção. É preciso fazer a reforma social, distribuir a renda, fazer a reforma agrária."

Folha - E quando Tancredo foi recebido pelo papa?
Ricupero -
A primeira parte do encontro foi apenas entre os dois. Eu não participei. Mas Tancredo comentou que o papa também se referiu à reforma agrária.

Folha - João Paulo 2º também recebeu Sarney, numa viagem da qual o sr., também participou.
Ricupero -
Em 1986 o papa rezou uma missa para o presidente Sarney e sua comitiva. Na missa, todos os textos eram da campanha da fraternidade da arquidiocese de Olinda, ainda na época com d. Helder Câmara. E os textos eram todos de um engajamento pela reforma social e pela mudança das estruturas. Eram lidos por seminaristas do Colégio Pio Brasileiro. O papa fez uma homilia na mesma linha. Sarney sentiu claramente que não era mais a igreja do passado, a igreja que jogava água para apagar o incêndio. Sarney comentou conosco. Embora preocupada com possíveis desvios da teologia da libertação, ela continuava a ser social.

Folha - Por que será que o papa não deu ênfase a essas questões em suas viagens ao Brasil?
Ricupero -
Não sei dizer exatamente. Mas não há dúvida que ele também se preocupa com a moral, com a família, com o ensino nos seminários. Mas deve ter achado que, ao conversar com presidentes, era preciso dar ênfase aos problemas sociais e desfazer a impressão de que o Vaticano estava ao lado do imobilismo.


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