Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A MORTE DO PAPA
D. Cláudio é a abertura, diz Ricupero
Diplomata participou em março de conferência no Vaticano em que o cardeal brasileiro defendeu a modernidade e o indivíduo
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O embaixador Rubens Ricupero, 68, foi convidado no mês passado para participar de uma conferência no Vaticano em comemoração aos 40 anos de um documento ("Gaudium et Spes") sobre
a doutrina social da igreja.
Diz que o encontro, com a presença de oito cardeais da cúria, foi
dominado pela intervenção de
outro orador, o arcebispo de São
Paulo, d. Cláudio Hummes. Ele se
posicionou claramente como alguém compromissado com um
"espírito de abertura", inexistente
no final do pontificado de João
Paulo 2º. Foi uma maneira corajosa se o papável se deixar conhecer.
Ricupero, que foi ministro da
Fazenda (1994), embaixador do
Brasil na ONU, nos Estados Unidos e em Roma, e secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento), é hoje, em São
Paulo, diretor da Faculdade de
Economia e Relações Internacionais da Faap.
Eis trechos de sua entrevista.
Folha - Com que setores do Vaticano o sr. tem tido contatos?
Rubens Ricupero - Sou amigo
pessoal do cardeal Martino, presidente do Conselho Justiça e Paz. É
um dos homens da cúria mais
abertos à realidade do mundo
moderno, por seis anos embaixador do Vaticano na ONU.
Folha - Foi ele quem organizou a
conferência sobre conquistas sociais do Concílio Vaticano 2º?
Ricupero - Justamente. Foi no
mês passado, quando o papa já
estava bastante enfermo. Ele organizou uma conferência sobre os
40 anos da "Gaudium et Spes"
(alegria e esperança). Eu também
participei desse encontro, com
uma conferência, "O Apelo à Justiça na Ordem Política". Mas foi d.
Cláudio Hummes o principal
conferencista. Ele foi encarregado
de discorrer sobre os fundamentos teológicos e eclesiológicos.
Folha - D. Cláudio e d. Martino
são agora papáveis, não é?
Ricupero - Fiquei muito impressionado. O ambiente nessa conferência já era o da próxima morte
do papa. Eu falei no dia 17 de março. D. Cláudio, no dia 16. Estava
também presente o cardeal Angelo Sodano, o secretário de Estado.
Folha - O sr. conferenciou como
leigo ou como diplomata?
Ricupero - Como "um pouco tudo". Nos últimos anos já fiz conferência no Vaticano sobre a economia à luz da fé, participei de um
debate sobre os transgênicos.
Folha - Voltemos a d. Cláudio.
Ricupero - Eu percebi que o momento era importante justamente
por causa dele. Estavam presentes
oito cardeais da cúria para ouvi-lo. Fiquei impressionado pelo fato
de, sem falar na primeira pessoa,
d. Cláudio ter demonstrado que é
muito diferente do espírito que
dominou esse final de pontificado. Seu espírito é de abertura.
Folha - De que maneira?
Ricupero - Ele falou do mundo
moderno, do mundo contemporâneo. Mas no sentido positivo,
sem medo ou condenação. Ele
disse que o Concílio "afirmou a
autonomia da realidades terrestres, essa visão positiva da criação,
das atividades humanas, das ciências, da técnica".
Folha - São temas tabus?
Ricupero - D. Cláudio falou da
biologia, que hoje no Vaticano é
um tema tabu. O texto tem essa
visão positiva do mundo moderno. Ele também dá ênfase ao respeito da dignidade da consciência
individual, mesmo quando essa
consciência comete erros.
Folha - Não é a temática atual?
Ricupero - Não. A temática atual
tem sido a de procurar limitar as
esferas em que se possa aplicar o
julgamento da consciência individual. D. Cláudio, ao contrário,
amplia essa esfera.
Folha - Um posicionamento dele?
Ricupero - Foi. Na política de escolha de um novo papa os candidatos não procuram aparecer
com um perfil muito acentuado.
As pessoas procuram ser menos
conhecidas.
Folha - Não seria dar murro em
ponto de faca, contra uma mentalidade conservadora?
Ricupero - Eu não sei interpretar
a subjetividade dele, de d. Cláudio. Mas ele fez isso com coragem.
Embora sua conferência não seja
provocativa, os temas são claros.
Tanto assim que havia uma energia eletrizante. Um clima de Concílio Ecumênico.
Folha - Não haveria uma armadilha do cardeal Martino para "queimar" d. Cláudio?
Ricupero - Sou amigo do cardeal
Martino. Não é um homem disso.
Mas acho que d. Cláudio claramente assumiu uma atitude de dizer: "Eu sou isso, eu sou um homem de esperança, sou um homem que acredita na liberdade da
consciência individual". Não quis
enganar ninguém.
Folha - Não seria contraproducente para um papável?
Ricupero - Pode ser em termos
de cálculo. Mas eu o admirei muito como ser humano, que tem a
sua coerência e, com toda a serenidade, a capacidade de dizer
aquilo que ele é.
Folha - O sr. tem afinidades com
d. Cláudio?
Ricupero - Eu sou mais dessa ala.
Para mim a grande figura do século 20 na igreja foi João 23. Respeito profundamente o papa que
acaba de morrer, que irradiava
uma grande força espiritual.
Folha - O que se diz no Vaticano
de um modo mais geral?
Ricupero - O que se diz é que o
próximo papa será "pastoral".
Talvez seja, num modo codificado, uma referência ao cardeal
Dionigi Tettamanzi, de Milão. É
um pastor da igreja, com forte
preocupação social. Uma segunda interpretação seria a de um papa que volte o olhar para dentro
da igreja, que pense em nas crises
internas, nos seminários desertos,
sem novos padres.
Folha - O vaticanista Giancarlo Zizola escreveu há dias que até o celibato conjugal poderia ser discutido
nesse próximo conclave.
Ricupero - Esses homens [os cardeais do conclave] podem ser tudo, mas não são estúpidos. Conhecem a realidade de suas próprias dioceses. Um dos problemas
que eles seguramente devem perceber é que a mera afirmação de
certeza antigas não detém a crise
de vocações.
Folha - Voltando duas décadas,
como foi o encontro de João Paulo
2º com Tancredo Neves?
Ricupero - Depois de eleito pelo
Colégio Eleitoral, Tancredo fez
uma viagem ao exterior. Eu o
acompanhei como assessor diplomático. Tancredo primeiro conversou com o cardeal Agostino
Casaroli, secretário de Estado do
Vaticano. Tancredo pensou que
estivesse diante de um prelado
tradicional. Disse que vinha, como filho da igreja, testemunhar a
devoção do povo brasileiro, um
povo obediente à igreja e ao santo
padre. Eis que Casaroli respondeu: "Sr. presidente, o Santo Padre ficará muito contente de ouvir
essas expressões de amor filial,
mas dirá que não basta a devoção.
É preciso fazer a reforma social,
distribuir a renda, fazer a reforma
agrária."
Folha - E quando Tancredo foi recebido pelo papa?
Ricupero - A primeira parte do
encontro foi apenas entre os dois.
Eu não participei. Mas Tancredo
comentou que o papa também se
referiu à reforma agrária.
Folha - João Paulo 2º também recebeu Sarney, numa viagem da
qual o sr., também participou.
Ricupero - Em 1986 o papa rezou
uma missa para o presidente Sarney e sua comitiva. Na missa, todos os textos eram da campanha
da fraternidade da arquidiocese
de Olinda, ainda na época com d.
Helder Câmara. E os textos eram
todos de um engajamento pela reforma social e pela mudança das
estruturas. Eram lidos por seminaristas do Colégio Pio Brasileiro.
O papa fez uma homilia na mesma linha. Sarney sentiu claramente que não era mais a igreja do
passado, a igreja que jogava água
para apagar o incêndio. Sarney
comentou conosco. Embora
preocupada com possíveis desvios da teologia da libertação, ela
continuava a ser social.
Folha - Por que será que o papa
não deu ênfase a essas questões
em suas viagens ao Brasil?
Ricupero - Não sei dizer exatamente. Mas não há dúvida que ele
também se preocupa com a moral, com a família, com o ensino
nos seminários. Mas deve ter
achado que, ao conversar com
presidentes, era preciso dar ênfase aos problemas sociais e desfazer a impressão de que o Vaticano
estava ao lado do imobilismo.
Texto Anterior: "Deposito-me à mercê da graça de Deus" Próximo Texto: Trechos Índice
|