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ÉTICA
Publicação de documentos secretos lançou debate sobre legitimidade de divulgar informações obtidas de forma ilegal
EUA celebram 30 anos dos "Documentos do Pentágono"
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O trigésimo aniversário do caso
"Documentos do Pentágono"
(Pentagon Papers) é comemorado nos EUA quando, no Brasil,
dois dos principais debates que
ele suscitou entraram na agenda
pública: a legitimidade de a imprensa divulgar informações obtidas de forma ilegal e o padrão de
moralidade que a sociedade pode
exigir dos detentores do poder
político.
Em 13 de junho de 1971, o jornal
"The New York Times" deu início
à publicação de uma série de reportagens sobre 7.000 páginas de
documentos secretos do Departamento de Defesa dos EUA (o Pentágono) a respeito da Guerra do
Vietnã.
Os documentos haviam sido
produzidos a partir de 1967 por
uma equipe de 36 funcionários, a
pedido do então secretário da Defesa, Robert McNamara, que os
incumbiu de responder a cerca de
cem perguntas "sujas", como as
chamou Leslie Gelb, a líder do
grupo (hoje presidente do prestigioso Council on Foreign Relations).
McNamara queria saber até que
ponto o governo dos EUA, desde
a administração de Harry Truman (1945-1953) até a de Lyndon
Johnson (1963-1969), à qual servia, tinha mentido ao público sobre o envolvimento americano no
Sudeste asiático.
Um dos pesquisadores que trabalharam na elaboração dos documentos foi o economista e cientista político Daniel Ellsberg, que,
embora funcionário do Pentágono, tornou-se crítico da política
de seu país no conflito vietnamita.
Durante algumas semanas em
1971, Ellsberg retirou aos poucos
as 7.000 páginas dos documentos
que ele havia ajudado a elaborar e
as fotocopiou.
Depois, entregou todo o material ao repórter Neil Sheehan, do
"Times", que, com uma equipe de
jornalistas, o analisou, interpretou e organizou para publicação.
Dois dias depois de a primeira
reportagem aparecer, o governo
Nixon obteve de uma corte federal ordem que proibiu o jornal de
continuar a publicação da série.
Ellsberg passou os documentos
sucessivamente aos jornais "The
Washington Post" e "The Los Angeles Times", que também os editaram até serem impedidos pela
Justiça.
Finalmente, a Suprema Corte
acatou recurso interposto pelo
"The New York Times" e garantiu
o direito de os jornais publicarem
a integralidade dos documentos.
Ellsberg foi processado por roubo, espionagem e conspiração.
Mas, em 1973, um juiz federal descartou as acusações porque as
provas apresentadas haviam sido
obtidas de maneira ilegal por policiais que grampearam seu telefone sem ordem judicial e invadiram o consultório de seu psicanalista para roubar fichas médicas
que o comprometessem.
A primeira questão levantada
pelo caso é se o "Times" agiu de
maneira ilegal ou antiética ao disseminar documentos secretos e
potencialmente lesivos ao interesse e segurança nacionais (a Guerra do Vietnã ainda estava em curso em 1971).
A conclusão da Justiça americana foi negativa. "A segurança da
nação também se assegura nos
valores de nossas instituições livres. Os que estão no poder devem sofrer os efeitos de uma imprensa impertinente, obstinada,
onipresente, para que se possam
preservar os valores ainda maiores da liberdade de expressão e do
direito de o povo saber o que
ocorre", disse um dos juízes
(Murray Gurfein) que decidiram
a favor do "Times".
O episódio, no entanto, não se
compara a outros na história recente do jornalismo em que, na
ânsia de obter revelações sensacionais, alguns repórteres realizam eles próprios ações ilegais,
como Mike Gallagher, do "Enquirer" de Cincinnati, Ohio, que surrupiou fitas de secretárias eletrônicas de uma empresa para provar que ela infringia leis.
Nessas situações, fica difícil justificar o comportamento do jornalista. Mas não impossível: muita gente se disporia a defender o
jornalista que denunciasse, mesmo após obter provas de modo
ilegal, por exemplo, uma rede de
prostituição infantil em escolas de
primeiro grau.
Os "Documentos do Pentágono" também têm pouco a ver com
o que acontece no Brasil quando
jornalistas recebem informações
de fontes policiais e as divulgam
com nenhuma ou muito pouca
contribuição própria para a apuração dos fatos.
Nessas situações, em vez de
exercer seu legítimo papel de
guardião da sociedade, o jornalismo pode apenas servir de instrumento de uma instituição ou de
alguns policiais ou procuradores.
Ainda mais distante do modelo
do "Times" é o comportamento
do jornalista que publica, sem
pesquisar, contextualizar ou interpretar de maneira independente, documentos obtidos ilegalmente por uma das partes envolvidas em disputas empresariais
ou jurídicas.
O ensinamento dos "Documentos do Pentágono" é que o direito
à liberdade de expressão se sobrepõe aos interesses do Estado, mas
nem sempre legitima os atos de
jornalistas que se limitam a trabalhar como intermediários.
Como, aliás, prova o desastrado
desempenho do próprio "New
York Times" no caso do cientista
Wen Ho Lee, no ano passado,
quando o jornal corroborou acriticamente a acusação de espionagem feita contra ele pelo FBI (polícia federal) e, depois, viu-se
constrangido a publicar humilhante nota da Redação em que se
desculpava aos leitores por ter publicado informações erradas.
Quanto ao segundo tema: até
que ponto os governantes americanos tinham o direito de omitir e
ocultar fatos ou simplesmente
mentir ao público ao conduzir a
participação dos EUA no conflito
do Sudeste asiático?
Leslie Gelb, atualmente respeitada cientista social, escreveu na
semana passada no "Times" sobre sua participação no episódio.
Afirmou ter sido contra a publicação dos documentos que ela havia
elaborado: "Achava que eles poderiam ser mal representados se
não chegassem ao público a não
ser sob uma forma que respeitasse o rigor acadêmico. As pessoas
poderiam pensar que nossos estudos provavam que a Guerra do
Vietnã era principalmente a história de governos mentindo ao
povo americano. Na minha opinião, eles demonstravam um
ponto mais importante".
Esse ponto, segundo Gelb, era o
de que os governos podiam ter
mentido em momentos específicos, mas, em geral, haviam agido
de acordo com princípios e crenças nobres, na defesa do que achavam ser o interesse maior do país.
Em suma, Gelb parece corroborar, com outras palavras, a teoria
de que a moral do indivíduo difere da moral do Estado. As famílias
dos 58.193 americanos que morreram no Vietnã ou dos 153.363
que de lá voltaram mutilados talvez não concordem.
A divulgação dos "Documentos
do Pentágono" ajudou a mudar a
opinião pública sobre a presença
dos EUA no Sudeste asiático e
apressou o seu fim porque as pessoas comuns puderam analisar as
"razões de Estado" sob a ótica dos
seus princípios morais de indivíduos e as rejeitaram.
Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor".
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