São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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ÉTICA

Publicação de documentos secretos lançou debate sobre legitimidade de divulgar informações obtidas de forma ilegal

EUA celebram 30 anos dos "Documentos do Pentágono"

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O trigésimo aniversário do caso "Documentos do Pentágono" (Pentagon Papers) é comemorado nos EUA quando, no Brasil, dois dos principais debates que ele suscitou entraram na agenda pública: a legitimidade de a imprensa divulgar informações obtidas de forma ilegal e o padrão de moralidade que a sociedade pode exigir dos detentores do poder político.
Em 13 de junho de 1971, o jornal "The New York Times" deu início à publicação de uma série de reportagens sobre 7.000 páginas de documentos secretos do Departamento de Defesa dos EUA (o Pentágono) a respeito da Guerra do Vietnã.
Os documentos haviam sido produzidos a partir de 1967 por uma equipe de 36 funcionários, a pedido do então secretário da Defesa, Robert McNamara, que os incumbiu de responder a cerca de cem perguntas "sujas", como as chamou Leslie Gelb, a líder do grupo (hoje presidente do prestigioso Council on Foreign Relations).
McNamara queria saber até que ponto o governo dos EUA, desde a administração de Harry Truman (1945-1953) até a de Lyndon Johnson (1963-1969), à qual servia, tinha mentido ao público sobre o envolvimento americano no Sudeste asiático.
Um dos pesquisadores que trabalharam na elaboração dos documentos foi o economista e cientista político Daniel Ellsberg, que, embora funcionário do Pentágono, tornou-se crítico da política de seu país no conflito vietnamita.
Durante algumas semanas em 1971, Ellsberg retirou aos poucos as 7.000 páginas dos documentos que ele havia ajudado a elaborar e as fotocopiou.
Depois, entregou todo o material ao repórter Neil Sheehan, do "Times", que, com uma equipe de jornalistas, o analisou, interpretou e organizou para publicação.
Dois dias depois de a primeira reportagem aparecer, o governo Nixon obteve de uma corte federal ordem que proibiu o jornal de continuar a publicação da série.
Ellsberg passou os documentos sucessivamente aos jornais "The Washington Post" e "The Los Angeles Times", que também os editaram até serem impedidos pela Justiça.
Finalmente, a Suprema Corte acatou recurso interposto pelo "The New York Times" e garantiu o direito de os jornais publicarem a integralidade dos documentos.
Ellsberg foi processado por roubo, espionagem e conspiração. Mas, em 1973, um juiz federal descartou as acusações porque as provas apresentadas haviam sido obtidas de maneira ilegal por policiais que grampearam seu telefone sem ordem judicial e invadiram o consultório de seu psicanalista para roubar fichas médicas que o comprometessem.
A primeira questão levantada pelo caso é se o "Times" agiu de maneira ilegal ou antiética ao disseminar documentos secretos e potencialmente lesivos ao interesse e segurança nacionais (a Guerra do Vietnã ainda estava em curso em 1971).
A conclusão da Justiça americana foi negativa. "A segurança da nação também se assegura nos valores de nossas instituições livres. Os que estão no poder devem sofrer os efeitos de uma imprensa impertinente, obstinada, onipresente, para que se possam preservar os valores ainda maiores da liberdade de expressão e do direito de o povo saber o que ocorre", disse um dos juízes (Murray Gurfein) que decidiram a favor do "Times".
O episódio, no entanto, não se compara a outros na história recente do jornalismo em que, na ânsia de obter revelações sensacionais, alguns repórteres realizam eles próprios ações ilegais, como Mike Gallagher, do "Enquirer" de Cincinnati, Ohio, que surrupiou fitas de secretárias eletrônicas de uma empresa para provar que ela infringia leis.
Nessas situações, fica difícil justificar o comportamento do jornalista. Mas não impossível: muita gente se disporia a defender o jornalista que denunciasse, mesmo após obter provas de modo ilegal, por exemplo, uma rede de prostituição infantil em escolas de primeiro grau.
Os "Documentos do Pentágono" também têm pouco a ver com o que acontece no Brasil quando jornalistas recebem informações de fontes policiais e as divulgam com nenhuma ou muito pouca contribuição própria para a apuração dos fatos.
Nessas situações, em vez de exercer seu legítimo papel de guardião da sociedade, o jornalismo pode apenas servir de instrumento de uma instituição ou de alguns policiais ou procuradores.
Ainda mais distante do modelo do "Times" é o comportamento do jornalista que publica, sem pesquisar, contextualizar ou interpretar de maneira independente, documentos obtidos ilegalmente por uma das partes envolvidas em disputas empresariais ou jurídicas.
O ensinamento dos "Documentos do Pentágono" é que o direito à liberdade de expressão se sobrepõe aos interesses do Estado, mas nem sempre legitima os atos de jornalistas que se limitam a trabalhar como intermediários.
Como, aliás, prova o desastrado desempenho do próprio "New York Times" no caso do cientista Wen Ho Lee, no ano passado, quando o jornal corroborou acriticamente a acusação de espionagem feita contra ele pelo FBI (polícia federal) e, depois, viu-se constrangido a publicar humilhante nota da Redação em que se desculpava aos leitores por ter publicado informações erradas.
Quanto ao segundo tema: até que ponto os governantes americanos tinham o direito de omitir e ocultar fatos ou simplesmente mentir ao público ao conduzir a participação dos EUA no conflito do Sudeste asiático?
Leslie Gelb, atualmente respeitada cientista social, escreveu na semana passada no "Times" sobre sua participação no episódio. Afirmou ter sido contra a publicação dos documentos que ela havia elaborado: "Achava que eles poderiam ser mal representados se não chegassem ao público a não ser sob uma forma que respeitasse o rigor acadêmico. As pessoas poderiam pensar que nossos estudos provavam que a Guerra do Vietnã era principalmente a história de governos mentindo ao povo americano. Na minha opinião, eles demonstravam um ponto mais importante".
Esse ponto, segundo Gelb, era o de que os governos podiam ter mentido em momentos específicos, mas, em geral, haviam agido de acordo com princípios e crenças nobres, na defesa do que achavam ser o interesse maior do país.
Em suma, Gelb parece corroborar, com outras palavras, a teoria de que a moral do indivíduo difere da moral do Estado. As famílias dos 58.193 americanos que morreram no Vietnã ou dos 153.363 que de lá voltaram mutilados talvez não concordem.
A divulgação dos "Documentos do Pentágono" ajudou a mudar a opinião pública sobre a presença dos EUA no Sudeste asiático e apressou o seu fim porque as pessoas comuns puderam analisar as "razões de Estado" sob a ótica dos seus princípios morais de indivíduos e as rejeitaram.


Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor".


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