São Paulo, domingo, 08 de julho de 2007

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Aulas de "cidadania" dividem a Espanha

Escolas ensinarão as crianças a respeitar as diferenças e a serem pacifistas, entre outros valores antes fora do currículo

Grupos conservadores, como a igreja, vêem em tópicos como tolerância ao homossexualismo tentativa de desvirtuar a boa moral

RAUL JUSTE LORES
EM MADRI

Uma nova disciplina escolar sobre o respeito ao diferente, seja ele um imigrante muçulmano ou um casal homossexual, e que ensina o pacifismo e a vida em comunidade se tornou uma das maiores polêmicas do governo do premiê espanhol, o socialista José Luis Rodríguez Zapatero.
Expert em controvérsias, o governo aprovou no Congresso, dentro de uma reforma educacional, uma disciplina chamada Educação para a Cidadania. Como aulas de ética ou moral e cívica, a nova cadeira pretende ensinar às crianças espanholas valores constitucionais e direitos humanos. Os conteúdos da nova matéria, que pode ser bem-intencionada ou abstrata demais, provocam debates calorosos na Espanha.
No site do Centro Nacional de Informação e Comunicação Educativa do Ministério da Educação da Espanha, há uma lista de sugestões de livros e filmes que os professores podem apresentar em classe.
Estão lá "O Grande Ditador", de Chaplin, o documentário "Shoah" e o cubano "Morango e Chocolate", além de filmes controvertidos como "Faça a Coisa Certa", de Spike Lee, sobre distúrbios raciais nos EUA.

Novas famílias
Textos da nova cadeira tratam da desigualdade entre homens e mulheres, combatem os estereótipos da mulher como dona-de-casa e falam de feminismo, exploração sexual e violência de gênero. E dizem que novos "tipos de família" estão surgindo.
O ministério sugere, por exemplo, que professoras usem um livro de quadrinhos, "Ali Babá e os 40 Maricas", sobre a vida de amigos gays em Barcelona, para falar de homossexualidade.
Outros materiais didáticos falam das desigualdades no mundo e da pobreza e até criticam o "possível erro" da transição espanhola, que "colocou ponto final nos crimes da ditadura franquista, como foi feito em vários países latino-americanos". Vários textos falam da "educação para a paz", tema caro a Zapatero, que retirou as tropas espanholas do Iraque assim que assumiu o governo, em 2004.
O programa da nova disciplina deliciou todas as ONGs possíveis -o governo adotou as sugestões de leitura do Comitê Espanhol da Campanha Européia da Juventude contra o Racismo, a Xenofobia, o Anti-Semitismo e a Intolerância.
Como 10% da população espanhola é formada por imigrantes, a maioria deles vinda a partir de 2001, o governo fala de esforço em adaptar as crianças recém-chegadas aos valores espanhóis.

Criar esquerdistas
O problema é que grupos que vão da Igreja Católica a organizações conservadoras acusam Zapatero de querer formar uma "geração de esquerdistas" e de impor uma moral, substituindo a família.
A igreja espanhola conclamou os fiéis a uma rebelião. "Lutaremos com todos os meios legítimos para impedir que seja lecionada (...); querem doutrinar as crianças em um laicismo radical", criticou o arcebispo de Madri, Antonio Rouco Varela.
A associação católica Fórum da Família pediu que seus membros retirem seus filhos dessas aulas, em um movimento de objeção de consciência.
O governo regional de Madri, da oposição conservadora, prometeu substituir a cadeira de cidadania por trabalho voluntário, mas teve que voltar atrás após uma repreensão do Ministério da Cultura, órgão que decide qual será o programa das escolas. "Quem não a cursar não terá o diploma", ameaçou a ministra da Educação, Mercedes Cabrera.
A disciplina será dividida em três tópicos: indivíduos e relações interpessoais; vida em comunidade, com respeito, tolerância e cultura da paz; e viver em sociedade (com normas da Constituição). Boa parte das aulas será dada no quinto e no sexto anos do ensino fundamental espanhol. Cobrirá uma a duas horas das 35 horas semanais do currículo básico.
A pergunta que fica, além da polêmica, é se a disciplina é útil. "Boa parte da Europa tem matérias similares e acho interessante que ética e direitos humanos estejam em sala de aula. Mas podemos viver sem essa matéria", disse à Folha o sociólogo Emilio Lamo de Espinosa, catedrático da Universidade Complutense de Madri. "A direita católica se sente ameaçada em seus valores, então o debate se politizou. É bom ver a educação ser tão discutida, mas estamos longe de um pacto nos conteúdos."


O jornalista Raul Juste Lores viajou à Espanha a convite do Grupo Santander


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