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ENTREVISTA
SÉRGIO SERRA
Brasil terá compromissos ambiciosos sobre o clima
Recém-designado embaixador especial do país para mudança climática diz que é possível adotar meta interna de redução do desmate, com crivo internacional
O BRASIL tem condições de adotar uma meta interna de redução de desmatamento
na Amazônia, e poderá usá-la como parte
de seu compromisso no acordo internacional contra o aquecimento global a ser adotado após
2012, em substituição ao Protocolo de Kyoto. Quem
dá o recado é Sérgio Serra, 65, recém-designado pelo
ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) como
embaixador do Brasil para mudanças climáticas.
CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA
"Os nossos compromissos
serão mais ambiciosos do que
os que nós temos até agora. Você pode até definir como metas", afirma o embaixador,
apressando-se em deixar claro
que não gosta do termo.
As declarações de Serra sinalizam que o Brasil está mudando seu discurso sobre o combate ao efeito estufa e cedendo a
um dado de realidade: para que
o mundo tenha alguma chance
de se livrar dos cenários dantescos pintados pelo IPCC (o
painel do clima das Nações
Unidas) de aquecimento da
Terra em 2100, todos os países
terão de cortar emissões.
A diplomacia brasileira tem
resistido a aceitar cortes, escorada nos princípios que nortearam o Protocolo de Kyoto: os
países ricos poluíram mais portanto, têm o ônus de resolver o
problema, reduzindo o uso de
combustíveis fósseis (com custo para suas economias). Os
países pobres têm o direito de
se desenvolver, portanto franquia para poluir. Por Kyoto,
eles estão dispensados de metas. Brasil, China e Índia não arredam o pé dessa posição.
Acontece que o grosso das
emissões brasileiras (75%) não
vem de atividades industriais
que geram riqueza, como no caso da China. Vem de uma atividade que pouco ou nada contribui com o desenvolvimento do
país: a destruição da Amazônia,
em grande parte ilegal.
No entanto, a ligação entre
florestas e clima sempre foi assunto-tabu no Itamaraty. Afinal, admitir que o mau uso da
terra no norte do Brasil tem alguma ligação com o maior dos
problemas globais seria admitir também algum grau de ingerência internacional na maior
floresta tropical do mundo.
Adotar metas obrigatórias de
redução de desmatamento, raciocina a chancelaria, seria perder a soberania sobre uma porção do território nacional.
Essa resistência ainda existe.
Mas, segundo uma fonte graduada da área ambiental, ela
tem sido quebrada ao longo dos
últimos dois anos.
Em entrevista à Folha, Serra,
um carioca de 65 anos que serviu na Nova Zelândia, diz que o
Brasil está disposto a ter metas
internas de redução do desmatamento que possam ter "accountability" [responsabilização] internacional. "Estamos
dispostos a ter o crivo internacional quanto a isso."
Diplomaticamente, o embaixador também alfineta a União
Européia e comenta a aparente
conversão do presidente dos
EUA, George W. Bush, à causa
climática. Leia a entrevista.
FOLHA - A União Européia, especialmente depois que os EUA se retiraram de Kyoto, tem assumido uma
liderança na questão climática. O
que eles esperam do Brasil?
SERRA - A UE anunciou metas
que são aparentemente ambiciosas mas, que se você for ver
no papel, não são tão ambiciosas assim. Se você fizer 20% a
mais [de corte de emissão até
2020] não há muita diferença
em relação ao que eles se comprometeram por Kyoto.
FOLHA - Não?
SERRA - O primeiro período de
Kyoto estabelece 8% de corte
de emissões até 2012 em relação a 1990 para a UE. O que eles
se propõem além de 2012 não é
um ritmo maior, é um prosseguimento desse processo. Mas
foi anunciado como se fosse um
grande avanço.
FOLHA - Mas mesmo considerando
que vários países da UE tiveram
crescimento em suas emissões?
SERRA - Mas outros tiveram
queda. Aquelas economias que
em 1990 ainda eram do Leste
Europeu tiveram uma queda,
porque aquelas indústrias poluentes fecharam. Enfim, o fato
é que houve um dado novo antes da última reunião do G8 [o
clube dos países mais ricos na
Alemanha, no mês passado],
que foi o anúncio dos EUA de
que teriam um plano de diminuição de emissões, reconhecendo o problema. Acabou
saindo uma declaração que eu
pessoalmente não acho muito
ruim, mas que é um pouco diluída, e não tão ambiciosa
quanto pretendia a chanceler
[alemã Angela] Merkel.
FOLHA - Essa declaração tem algum efeito sobre a negociação do
regime substituto de Kyoto, que começará em Bali no fim deste ano?
SERRA - Há um dado novo aí
que pode vir a ser positivo, que
é o fato de os EUA estarem dispostos a algum tipo de ação. A
decepção maior para nós, os
cinco países convidados [Brasil, Índia, China, México e África do Sul], foi que a declaração
foi negociada sem nós. Você é
convidado e chega para a sobremesa. Isso, como forma, não é
apropriado. A próxima reunião
vai ser no Japão. E em princípio
os cinco emergentes serão convidados. Há uma tendência a
não se aceitar participar se não
forem mudadas essas regras.
Mas houve coisas positivas. Reconhece-se a prevalência das
Nações Unidas. Não se ficou
muito naquela idéia da Angela
Merkel de limitar o aquecimento da Terra em 2100 a 2C .
FOLHA - O Brasil não concorda?
SERRA - Não é que concorde ou
deixe de concordar. Achamos
que não há base científica para
que esse seja o parâmetro. E,
depois, aparentemente até
mesmo esses 2C seriam excessivos para a sobrevivência de
vários países que são membros
da comunidade internacional.
FOLHA - Mas o IPCC, o painel do clima da ONU, diz que essa é a estabilização factível.
SERRA - O IPCC não é assim tão
categórico.
FOLHA - O Brasil então não trabalha com metas de estabilização de
gases-estufa na atmosfera?
SERRA - Não chegamos a um
número. Da nossa parte, nós
estamos, principalmente depois do relatório do IPCC,
conscientes da nossa responsabilidade. E vamos dar a nossa
contribuição a esse processo.
Agora, exatamente o que será a
nossa contribuição ainda precisamos definir. Pergunta-se se o
Brasil vai ter metas de redução
de emissões. Metas, no sentido
como a Convenção do Clima da
ONU as define, as metas compulsórias, nós não aturaríamos.
FOLHA - Por quê?
SERRA - A convenção divide os
países segundo o princípio das
responsabilidades comuns mas
diferenciadas. Se os países em
desenvolvimento adotarem cotas ou metas como as dos países
desenvolvidos, o Mecanismo
de Desenvolvimento Limpo
acaba. Afinal, ele é feito para
compensar os países desenvolvidos que invistam no desenvolvimento limpo de países em
desenvolvimento, abatendo isso de suas metas.
FOLHA - Mas existem mecanismos
do tipo funcionando entre países
desenvolvidos. Quando se fala em
metas para os países pobres, isso
não quer dizer que eles precisem
adotar metas tão rígidas quanto as
dos países desenvolvidos.
SERRA - Sem dúvida. A convenção prevê que os países em desenvolvimento assumam compromissos. E eu acho que os
nossos compromissos serão
mais ambiciosos do que os que
nós temos até agora. Você pode
até definir como metas. O problema é que a palavra meta tem
uma conotação muito particular nessa negociação. Como você sabe, 75% das nossas emissões vêm do desmatamento. O
desmatamento, por causa de
uma série de medidas, caiu 52%
nos últimos três anos. Nós podemos ir além disso. Não é fácil,
porque sabemos que o desmatamento na Amazônia obedece
a uma série de variáveis. Será
um esforço danado combatê-lo.
Mas já se fez muito, no combate
à grilagem, na criação de unidades de conservação. E temos
um dos sistemas mais sofisticados do mundo de monitoramento do desmatamento. E eu
acho que podemos assumir
compromissos conosco mesmos, voluntários, mas que possam ser apresentados à comunidade internacional, de uma
queda no desmatamento.
FOLHA - O sr. acha então que o Brasil tem condições de assumir metas
de redução de desmatamento?
SERRA - Metas internas. Eu não
gosto da palavra "metas". Eu
acho que são políticas que levem a uma redução maior ainda do desmatamento.
FOLHA - Mas que possam ter uma
"accountability" [dever de prestar
contas] internacional?
SERRA - Sim, sim, sem dúvida!
Que possam ter uma "accountability" internacional que ainda está por definir, mas estamos dispostos a ter o crivo internacional quanto a isso.
FOLHA - O Itamaraty tem sido criticado por jogar muito na defensiva e
pelo discurso de que não aceita metas obrigatórias por não querer abrir
mão do desenvolvimento. A chancelaria está mudando sua visão?
SERRA - Há um entendimento
errôneo do que seja a nossa posição. Não sei em que momento
houve esse curto-circuito com
a imagem que nós projetamos.
Não é bem o Itamaraty, é o governo brasileiro. Essa questão
de não-aceitação de metas, como definidas por Kyoto, não
são entendidas como uma postura defensiva. O Brasil tem
uma posição muito moderadora, em relação a países que são
muito mais radicais que nós,
como China e Índia.
FOLHA - A China deu mostras de
que está revendo suas posições...
SERRA - A China está anunciando aos poucos um programa
que parece ambicioso de combate às suas emissões. Mas o
problema da China é muito
mais complicado que o nosso. A
China, sim, pode dizer que a
adoção de metas puras e simples é um grande limitador do
crescimento econômico.
FOLHA - Mas essa questão da economia corta dos dois lados, não? Há
um risco cada vez mais real de perda
de mercados para quem não dançar
conforme a música da redução das
emissões de gás carbônico.
SERRA - A questão do desmatamento, para nós, não é só uma
questão de emissões. Nós precisamos conter o desmatamento da Amazônia não só porque
isso melhora nossa imagem na
questão do clima, mas porque o
IPCC mostra que a Amazônia
será uma vítima da mudança do
clima, mais do que causadora.
Um dos cenários do IPCC mostra que 20% da Amazônia pode
se savanizar, e isso causará uma
reação em cadeia. O sistema de
chuvas desta área aqui, o cerrado, depende das chuvas da
Amazônia. Se ela passa a ter um
clima parecido com este, isto
aqui vira uma caatinga.
FOLHA - Qual é a avaliação brasileira da aparente mudança de discurso
do governo americano?
SERRA - O discurso anterior era
de negação. Hoje há um reconhecimento do problema, após
os relatórios do IPCC. Ao mesmo tempo, você tem uma eleição nos EUA daqui a pouco; a
pressão está aumentando. É
preciso pagar para ver. Eles
anunciaram uma reunião entre
alguns países mas, até a véspera
da reunião do G8, não havia nenhuma menção ao processo das
Nações Unidas.
FOLHA - O Brasil participará dessa
reunião?
SERRA - Não sei. Se formos convidados, poderíamos participar, sabendo que aquele não é o
fórum e declarando que aquele
não é o fórum.
FOLHA - A secretária de Mudança
do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Thelma Krug, deu uma entrevista falando que o Brasil mais cedo ou mais tarde precisaria discutir a
opção nuclear. O sr. concorda?
SERRA - Eu não gostaria de entrar nesse debate. Mas estou
vendo que ele existe. Como embaixador extraordinário para
mudança do clima, eu posso dizer que a energia nuclear não
emite CO2. Na posição em que
eu estou, mais preocupante -o
que não é um cenário absurdo- é que a nossa matriz energética limpa passe a não ser tão
limpa se houver uma proliferação de usinas a carvão.
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