São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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AMÉRICA LATINA
Reação à onda neoliberal favorece candidaturas de grupos esquerdistas

A esquerda e o desafio das urnas

CLÓVIS ROSSI
enviado especial a Montevidéu

A vitória eleitoral do coronel Hugo Chávez na Venezuela tem um significado que vai além das excentricidades e eventuais desconfianças que ele desperta.
Dá até para dizer que Chávez tornou-se o primeiro esquerdista, ainda que seu esquerdismo seja difuso e mal definido até agora, a se eleger presidente na América Latina desde que Salvador Allende ganhou no Chile, no já remoto ano de 1970.
É bem um retrato do pêndulo político latino-americano: nos anos 70 e parte dos anos 80, uma onda revolucionária parecia varrer a região.
Na Argentina, em 1973, guerrilheiros saíam diretamente dos presídios políticos para postos governamentais, na efêmera gestão de Héctor Campora.
No Chile, assumia a Unidade Popular, coligação de esquerda. Na Bolívia, no Peru e no Equador, movimentos militares de coloração esquerdista tomavam o poder, ainda que por breve prazo.
Depois, veio a onda de ditaduras militares que tingiu o mapa latino-americano de verde-oliva.
O pêndulo moveu-se em seguida para a redemocratização, ampla, geral e irrestrita, a ponto de hoje apenas Cuba ser considerada uma ditadura, entre os 35 países latino-americanos e caribenhos.
Junto com a redemocratização veio a onda neoliberal, acoplada à estabilização das economias, ativo eleitoral de tal valor que permitiu a introdução da reeleição, antes um anátema na região.
Dele se valeram, para permanecer no poder, governantes identificados, corretamente ou não, como neoliberais (Fernando Henrique Cardoso no Brasil, Alberto Fujimori no Peru, Carlos Saúl Menem na Argentina).
Agora, o pêndulo se move para a esquerda. Chávez foi o primeiro, mas dificilmente será o único.
Só este ano, dois esquerdistas surgem nas pesquisas como favoritos para eleições presidenciais.
Um é o uruguaio Tabaré Vázquez (Frente Ampla). Vázquez deve ganhar o primeiro turno, mas dificilmente obterá a maioria absoluta. Terá de submeter-se a um segundo turno em que muito possivelmente será batido pelo colorado Jorge Battle.
Não importa. O Uruguai, desde a independência, é um condomínio de colorados e blancos. Que a esquerdista Frente Ampla fure o bipartidarismo já é um sinal importante de para onde se move o pêndulo.
O segundo esquerdista é o chileno Ricardo Lagos (Partido pela Democracia), favorito em todas as pesquisas.
É verdade que Lagos é o candidato da coalizão que está no poder há quase dez anos. Mas é igualmente verdade que é o mais esquerdista dos líderes da "Concertación", que, antes, elegeu dois democrata-cristãos (Patrício Aylwin e Eduardo Frei).
É eloqüente que tenha chegado a vez de alguém que não tem vergonha de se dizer "allendista".
Até na Argentina, os dois candidatos favoritos estão mais à esquerda que o atual presidente, Carlos Menem.
Um, Eduardo Duhalde, reergue a bandeira do peronismo, o mais clássico dos populismos latino-americanos. O outro, Fernando de la Rúa, pertence a um partido (a União Cívica Radical) de raízes fincadas na social-democracia, agora aliado a um grupo de independentes e ex-peronistas mais claramente de centro-esquerda.
No ano que vem, no México, pela primeira vez em 70 anos há boas possibilidades de que seja derrotado o candidato do PRI (Partido Revolucionário Institucional).
Ainda mais se se cristalizar a incipiente tendência a uma coligação entre as oposições, o PRD (Partido Revolucionário Democrático, cisão pela esquerda do PRI) e o PAN (Partido de Ação Nacional, em tese conservador).
O caso mexicano talvez seja um bom exemplo de como a esquerda está mudando para tornar-se mais palatável eleitoralmente (leia texto abaixo).
O candidato do PAN é Vicente Fox, teoricamente um conservador, mas, não obstante, participante ativo de todas as reuniões da esquerda latino-americana que vêm sendo organizadas pelo sociólogo mexicano Jorge Castañeda e pelo filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger.
Se o pêndulo move-se para a esquerda, a explicação mais razoável talvez não esteja nas bandeiras dela própria, mas na visível crise do modelo neoliberal, que é hegemônico nos anos 90.
Onde não há recessão (Brasil, Argentina, Chile, Venezuela), há desaceleração da economia (México).
Para que o pêndulo mantenha o prumo mais à esquerda, os partidos que mostram agora viabilidade eleitoral forte precisarão demonstrar que são capazes de, a um só tempo, manter a estabilidade econômica, recuperar o crescimento e ainda redistribuir melhor os seus frutos.
Do contrário, a única certeza é a de que o pêndulo continuará a mover-se e, por definição, retornará ao lado direito.


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