São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

REVOLUÇÃO NOS BÁLCÃS
Série de guerras fez milhões de vítimas nos anos 90
Milosevic cai mas deixa um rastro de destruição

RAYMOND WHITAKER
DO "THE INDEPENDENT"

A queda de Slobodan Milosevic deixa milhões de vítimas -as pessoas que perderam suas casas, suas famílias e suas comunidades na série de guerras que ele provocou na antiga Iugoslávia.
Vukovar (Croácia), em 1991, Srebrenica (Bósnia), em 1995, Racak (Kosovo), em 1999: ao longo da década e de uma extremidade à outra dos Bálcãs, sua ambição foi marcada por monumentos recobertos de sangue.
Sua queda se deu às mãos da última de suas vítimas: seu próprio povo. Os sérvios foram também suas primeiras vítimas.
Até o momento em que Milosevic enxergou a oportunidade de explorar os temores da minoria sérvia na Província de Kosovo, ele era apenas um funcionário do Partido Comunista na Sérvia, como outro qualquer.
Naquele momento, transformou-se em nacionalista e, na condição de presidente sérvio, partiu em sua campanha para erguer uma "grande Sérvia" a partir do que restara da Iugoslávia.
Os primeiros choques dessa cruzada se deram no norte, na Eslovênia. Os eslovenos, entretanto, conseguiram retirar-se da Iugoslávia em meados de 1991, praticamente sem derramamento de sangue, apesar das ameaças da liderança militar iugoslava.
A minoria sérvia na República não era grande o suficiente para formar uma quinta coluna a serviço de Belgrado, e Milosevic poupou suas forças para os conflitos mais próximos do coração do território sérvio. O primeiro destes não tardou a eclodir.

A campanha começa
Ainda em 1991, o Exército nacional iugoslavo, agindo ostensivamente em defesa da integridade territorial, combateu ao lado de milícias sérvias locais, contra os croatas, nas duas regiões da Croácia em que os sérvios formavam maioria: Krajina e o leste da Eslavônia.
Situada quase na fronteira com a Sérvia, Vukovar tornou-se o primeiro lugar nas guerras balcânicas dos anos 1990 cujo nome ficou marcado a fogo na consciência internacional, quando combateu as forças sérvias que a cercaram, durante 86 dias.
Em novembro de 1991, quando a cidade finalmente caiu, centenas de seus habitantes estavam mortos, em sua maioria civis -em um único massacre, cerca de 250 pessoas foram assassinadas-, e quase todas as suas construções estavam por terra.
Por mais que o conflito croata tenha sido chocante, acabou sendo relegado ao segundo plano pela guerra muito mais longa e sangrenta que estava prestes a começar na Bósnia, e, mais uma vez, era Slobodan Milosevic quem presidia sobre a tragédia a ponto de acontecer.
Radovan Karadzic, o psiquiatra que, com o apoio de Milosevic, emergiu como líder dos sérvios bósnios, avisou que qualquer passo da Bósnia em direção à declaração de independência significaria derramamento de sangue imediato, e, na primavera de 1992, as barricadas foram erguidas. Sarajevo se dividiu, e teve início um cerco que só seria levantado em 1995.
O conflito europeu mais sangrento desde 1945 opôs sérvios, croatas e muçulmanos uns aos outros, mas os muçulmanos, pelo menos, puderam se defender.

Massacre
Em 1995, os Estados Unidos deram uma mão, bombardeando os sérvios até conduzi-los à mesa de negociações. Mas alguns dos acontecimentos mais medonhos ainda estavam por vir.
Em Srebrenica, designada pela ONU "local seguro", tropas de manutenção da paz holandesas assistiram, impotentes, enquanto as forças sérvias bósnias dominaram o encrave, situado na metade da Bósnia sob controle sérvio, e massacraram cerca de 7.000 homens muçulmanos, em julho de 1995, na pior atrocidade isolada cometida em meio século na Europa.
(Na época do massacre, 75% dos moradores de Srebrenica eram muçulmanos; hoje, não há mais muçulmanos na cidade.)

Krajina
Pouco depois o Exército croata invadiu Krajina, retomando o território perdido quatro anos antes e expulsando para a Sérvia centenas de milhares de sérvios, cujas famílias viviam na região havia gerações.
Muitos foram reassentados em Kosovo, apenas para se descobrirem no meio de mais um conflito.
Ao final de 1995 a paz voltou à Bósnia, ao preço da partilha, e Milosevic conseguiu o reconhecimento do Ocidente por ter obrigado Karadzic e seu capanga militar, Ratko Mladic -ambos indiciados por crimes de guerra pelo Tribunal Internacional de Haia- a fechar um acordo.
No inverno de 1996-97, ele repeliu as tentativas da oposição sérvia de tirá-lo de seu cargo e usou seu poder para enriquecer sua família e seus associados.

Kosovo
Mas ainda restava a questão de Kosovo, onde a queda da Iugoslávia começou. A maioria de 90% de albaneses que constituíam sua população pressupunha que sua situação seria resolvida nos acordos políticos que tinham posto fim às guerras nas outras partes da antiga Iugoslávia, mas se viu ignorada.
Os líderes políticos que lhes tinham pedido paciência foram desacreditados, e surgiu uma força nova e mais militante, o Exército de Libertação de Kosovo (ELK).
O verão de 1998 foi marcado por represálias tão selvagens de Belgrado contra as provocações do ELK que a comunidade internacional, mais uma vez e a contragosto, foi forçada a intervir nos Bálcãs.
As sanções contra o regime de Milosevic não tinham ajudado em nada a impedir o conflito, e o envio de monitores internacionais desarmados a Kosovo tampouco tivera efeito.
Em janeiro de 1999, quando os monitores estrangeiros encontraram os corpos de mais de 40 camponeses albaneses massacrados numa encosta de montanha perto de Racak, teve início o mergulho em mais uma guerra.
A campanha de bombardeios da Otan (aliança militar ocidental) foi o sinal para uma reprise dos horrores vistos em outras partes da região na primeira metade da década de 1990 -casas incendiadas, estupros, massacres de civis inocentes e a "limpeza étnica" em escala ainda não vista em nenhum dos conflitos anteriores.
Daquela vez, porém, os resultados se inverteram, e quem acabou perdendo foram os sérvios de Kosovo.
A comunidade internacional se uniu contra Milosevic e expulsou seu Exército da Província em tempo para o Ano Novo de 1999-2000. Tirá-lo da Presidência, porém, foi uma questão inteiramente diferente. Era algo que só poderia ser feito pelos próprios sérvios e que, agora, eles finalmente conseguiram.


Tradução de Clara Allain




Texto Anterior: Sérvios fazem festa em São Paulo na noite da queda de Milosevic
Próximo Texto: Argentina: Saída de vice pode causar fim da Aliança
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.