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"Levará gerações para que Fidel se apague em cada cubano"
Acerto de contas com o fidelismo vai demorar, acredita Jon Lee Anderson; sobre o Iraque, jornalista diz que partição do país árabe levaria a guerra regional
DA ENVIADA A PORTO ALEGRE
Para o jornalista americano
Jon Lee Anderson, levará gerações para que os cubanos
aprendam a viver sem a marca
de Fidel, tão entronizada em
suas vidas que nem sempre eles
se dão conta disso. "Ele é como
um pai que viveu por tanto
tempo que você nem sabe mais
se o ama ou o odeia."
Leia, a seguir, os principais
trechos da entrevista que Anderson concedeu à Folha,
quando falou de Cuba, Iraque,
EUA e vaticinou um desfecho
nada reconfortante para o impasse nuclear no Irã.
(LC)
FOLHA - Comparado a Che Guevara, por quanto tempo o sr. acredita
que o peso de Fidel como ícone sobreviveria numa Cuba democrática?
JON LEE ANDERSON - Fidel envelheceu diante de nossos olhos e
teve negada a entrada nesse
plano mais espiritual ao qual
Che pertence por causa de sua
idade [Guevara foi morto aos
39 anos, Fidel tem 81]. Mas Fidel tem também uma presença
icônica extraordinária, embora
diferente. Ele representa tudo
que há de astuto nos cubanos e,
na psique popular latino-americana, o homem corajoso que
se levantou e mostrou os punhos para Washington. Todo
mundo o ama por isso, mesmo
que não concorde com ele politicamente. Levará gerações para que os cubanos acertem as
contas com o "fidelismo". Todo
cubano carrega um pouquinho
do Fidel em si e não tem nem
idéia de como se sente a respeito. A presença dele é tão profunda que é difícil para as pessoas compreenderem-na realmente.
FOLHA - Há hoje muita apatia em
Cuba. O sr. acredita que com a morte
de Fidel veremos os cubanos mais
vibrantes politicamente?
ANDERSON - É preciso haver
uma mudança drástica para
que isso se transmute em ação
social. E é preciso que haja um
patrono, acho. Enquanto Fidel
estiver vivo, não acredito que
acontecerá. E tendo a acreditar
que sob Raúl também não.
FOLHA - Há alguém com esse poder inspirador hoje?
ANDERSON - O carisma de Fidel
é como o sol, ofuscante. E, se eu
fosse um carismático líder no
Partido Comunista, ia dar um
jeito de esconder o meu carisma ao máximo. Enquanto Fidel
estiver vivo, será assim. Uma
vez que Raúl esteja abertamente no controle de tudo, poderemos ver alguma flexibilidade
social, mas não política.
FOLHA - O sr. acredita que a transição -ou sucessão - em curso tenha sido orquestrada por Fidel?
ANDERSON - Sim. A sucessão
pode ser ensaiada e ocorreu
quase sem tropeços, o que evitou a crise que poderia acontecer com a morte repentina de
Fidel. Agora os cubanos sabem
que Fidel vai morrer. Antes
ninguém sabia. O discurso oficial apenas aludia à idéia do
"fim biológico", nunca usava a
palavra morte. Ninguém sabe
como os cubanos reagirão à
morte de Fidel. Eu costumava
pensar que as pessoas iriam vagar atordoadas e, um dia, do nada, alguém num ônibus acordaria aos gritos para o fato de que
ele morreu. Aí todo mundo em
volta ia começar a acordar.
FOLHA - O sr. uma vez escreveu
que havia pontos em comum entre
Cuba e o Iraque. Quais?
ANDERSON - Ninguém pode ousar comparar a extensão da
crueldade de Saddam Hussein
no Iraque com o regime relativamente estrito de Fidel, e Cuba tem toda uma cultura de as
pessoas falarem muito -enquanto no Iraque ninguém
abria a boca. Mas, no sentido de
toda informação que entra passar pelo regime, regido por um
único homem, há um paralelo
interessante. A realidade criada
em regimes assim acaba sendo
semelhante na forma como as
pessoas levam sua vida em um
nível muito local, pois tudo que
há de relevante [para se falar]
sobre o poder do Estado é tabu,
é excluído da vida cotidiana.
FOLHA - Sobre o Iraque, os americanos realmente agravaram a discórdia entre as diferentes facções ou
apenas abriram uma caixa de Pandora mantida fechada pelo medo?
ANDERSON - Saddam matou ao
menos 100 mil xiitas no Iraque,
além de pelo menos outros 600
mil no Irã. Além de atacar os
curdos. Ele era a epítome do
nacionalismo sunita chauvinista. Ele foi o responsável pelas
rixas sectárias. Sim, os americanos abriram uma caixa de
Pandora, mas, em última análise, a responsabilidade recai sobre o regime sangrento de Saddam. Se você mata 1 milhão de
pessoas, algo acontece.
FOLHA - Há teóricos que acreditam
que uma solução possível para o Iraque seria dividi-lo em três partes
-curda, árabe xiita e árabe sunita.
O sr. concorda?
ANDERSON - Não. Eu já cheguei
a pensar nisso, como forma de
interromper a matança. Mas já
há um conflito de interesses
entre os EUA, o Irã, a Síria, a
Arábia Saudita e o próprio Iraque e, se for criado um Curdistão, um Xiistão e um Sunistão,
essa guerra por procuração pode abrir caminho para uma
guerra regional de fato. Acho
que é importante, no entanto,
que essas pessoas [no Iraque]
sejam separadas por um tempo. Muros não são necessariamente algo ruim, se podem salvar vidas. Não é a melhor solução, mas muros, como nós já vimos, uma hora caem.
FOLHA - Como é o sentimento nas
ruas hoje entre a população?
ANDERSON - É uma sociedade
profundamente traumatizada,
mas capaz de prosseguir com
suas funções diárias sob a proteção de uma vida cotidiana
quase surrealista. Na maior
parte do tempo, querem somente que as crianças estejam
a salvo e tenham um futuro. E
falam em sair. Muita gente está
deixando o país, quase 3 milhões já saíram. A maioria é de
pessoas que estudaram, de gente afluente. Se a guerra continuar, o Iraque vai se tornar um
país pobre em todos os sentidos, como o Camboja. A grande
conseqüência do massacre
[promovido pelo Khmer Vermelho] no Camboja é que ele
acabou com a população educada do país.
FOLHA - O sr. acredita que os EUA
atacarão o Irã?
ANDERSON - Eles podem. As armas nucleares estão lá. Eles podem não atacar, mas onde ficaria a lógica da contenção? Se
você tem um arsenal nuclear e
não quer que outro país tenha,
e esse país está produzindo as
armas, qual a lógica senão bombardeá-lo para evitar? Não estou dizendo que haverá uma
guerra nuclear, mas essa possibilidade uma hora vai ser confrontada. Eles vão pensar nisso.
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