São Paulo, segunda-feira, 08 de outubro de 2007

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"Levará gerações para que Fidel se apague em cada cubano"

Acerto de contas com o fidelismo vai demorar, acredita Jon Lee Anderson; sobre o Iraque, jornalista diz que partição do país árabe levaria a guerra regional

DA ENVIADA A PORTO ALEGRE

Para o jornalista americano Jon Lee Anderson, levará gerações para que os cubanos aprendam a viver sem a marca de Fidel, tão entronizada em suas vidas que nem sempre eles se dão conta disso. "Ele é como um pai que viveu por tanto tempo que você nem sabe mais se o ama ou o odeia."
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que Anderson concedeu à Folha, quando falou de Cuba, Iraque, EUA e vaticinou um desfecho nada reconfortante para o impasse nuclear no Irã. (LC)  

FOLHA - Comparado a Che Guevara, por quanto tempo o sr. acredita que o peso de Fidel como ícone sobreviveria numa Cuba democrática?
JON LEE ANDERSON
- Fidel envelheceu diante de nossos olhos e teve negada a entrada nesse plano mais espiritual ao qual Che pertence por causa de sua idade [Guevara foi morto aos 39 anos, Fidel tem 81]. Mas Fidel tem também uma presença icônica extraordinária, embora diferente. Ele representa tudo que há de astuto nos cubanos e, na psique popular latino-americana, o homem corajoso que se levantou e mostrou os punhos para Washington. Todo mundo o ama por isso, mesmo que não concorde com ele politicamente. Levará gerações para que os cubanos acertem as contas com o "fidelismo". Todo cubano carrega um pouquinho do Fidel em si e não tem nem idéia de como se sente a respeito. A presença dele é tão profunda que é difícil para as pessoas compreenderem-na realmente.

FOLHA - Há hoje muita apatia em Cuba. O sr. acredita que com a morte de Fidel veremos os cubanos mais vibrantes politicamente?
ANDERSON
- É preciso haver uma mudança drástica para que isso se transmute em ação social. E é preciso que haja um patrono, acho. Enquanto Fidel estiver vivo, não acredito que acontecerá. E tendo a acreditar que sob Raúl também não.

FOLHA - Há alguém com esse poder inspirador hoje?
ANDERSON
- O carisma de Fidel é como o sol, ofuscante. E, se eu fosse um carismático líder no Partido Comunista, ia dar um jeito de esconder o meu carisma ao máximo. Enquanto Fidel estiver vivo, será assim. Uma vez que Raúl esteja abertamente no controle de tudo, poderemos ver alguma flexibilidade social, mas não política.

FOLHA - O sr. acredita que a transição -ou sucessão - em curso tenha sido orquestrada por Fidel?
ANDERSON
- Sim. A sucessão pode ser ensaiada e ocorreu quase sem tropeços, o que evitou a crise que poderia acontecer com a morte repentina de Fidel. Agora os cubanos sabem que Fidel vai morrer. Antes ninguém sabia. O discurso oficial apenas aludia à idéia do "fim biológico", nunca usava a palavra morte. Ninguém sabe como os cubanos reagirão à morte de Fidel. Eu costumava pensar que as pessoas iriam vagar atordoadas e, um dia, do nada, alguém num ônibus acordaria aos gritos para o fato de que ele morreu. Aí todo mundo em volta ia começar a acordar.

FOLHA - O sr. uma vez escreveu que havia pontos em comum entre Cuba e o Iraque. Quais?
ANDERSON
- Ninguém pode ousar comparar a extensão da crueldade de Saddam Hussein no Iraque com o regime relativamente estrito de Fidel, e Cuba tem toda uma cultura de as pessoas falarem muito -enquanto no Iraque ninguém abria a boca. Mas, no sentido de toda informação que entra passar pelo regime, regido por um único homem, há um paralelo interessante. A realidade criada em regimes assim acaba sendo semelhante na forma como as pessoas levam sua vida em um nível muito local, pois tudo que há de relevante [para se falar] sobre o poder do Estado é tabu, é excluído da vida cotidiana.

FOLHA - Sobre o Iraque, os americanos realmente agravaram a discórdia entre as diferentes facções ou apenas abriram uma caixa de Pandora mantida fechada pelo medo?
ANDERSON
- Saddam matou ao menos 100 mil xiitas no Iraque, além de pelo menos outros 600 mil no Irã. Além de atacar os curdos. Ele era a epítome do nacionalismo sunita chauvinista. Ele foi o responsável pelas rixas sectárias. Sim, os americanos abriram uma caixa de Pandora, mas, em última análise, a responsabilidade recai sobre o regime sangrento de Saddam. Se você mata 1 milhão de pessoas, algo acontece.

FOLHA - Há teóricos que acreditam que uma solução possível para o Iraque seria dividi-lo em três partes -curda, árabe xiita e árabe sunita. O sr. concorda?
ANDERSON
- Não. Eu já cheguei a pensar nisso, como forma de interromper a matança. Mas já há um conflito de interesses entre os EUA, o Irã, a Síria, a Arábia Saudita e o próprio Iraque e, se for criado um Curdistão, um Xiistão e um Sunistão, essa guerra por procuração pode abrir caminho para uma guerra regional de fato. Acho que é importante, no entanto, que essas pessoas [no Iraque] sejam separadas por um tempo. Muros não são necessariamente algo ruim, se podem salvar vidas. Não é a melhor solução, mas muros, como nós já vimos, uma hora caem.

FOLHA - Como é o sentimento nas ruas hoje entre a população?
ANDERSON
- É uma sociedade profundamente traumatizada, mas capaz de prosseguir com suas funções diárias sob a proteção de uma vida cotidiana quase surrealista. Na maior parte do tempo, querem somente que as crianças estejam a salvo e tenham um futuro. E falam em sair. Muita gente está deixando o país, quase 3 milhões já saíram. A maioria é de pessoas que estudaram, de gente afluente. Se a guerra continuar, o Iraque vai se tornar um país pobre em todos os sentidos, como o Camboja. A grande conseqüência do massacre [promovido pelo Khmer Vermelho] no Camboja é que ele acabou com a população educada do país.

FOLHA - O sr. acredita que os EUA atacarão o Irã?
ANDERSON
- Eles podem. As armas nucleares estão lá. Eles podem não atacar, mas onde ficaria a lógica da contenção? Se você tem um arsenal nuclear e não quer que outro país tenha, e esse país está produzindo as armas, qual a lógica senão bombardeá-lo para evitar? Não estou dizendo que haverá uma guerra nuclear, mas essa possibilidade uma hora vai ser confrontada. Eles vão pensar nisso.


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