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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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Maior etnia sem Estado do mundo vê-se novamente em meio a interesses antagônicos e teme sofrer mais um revés

Risco de guerra volta a amedrontar curdos

EDUARDO SCOLESE
DA AGÊNCIA FOLHA

Enquanto utilizam todo o seu poder de barganha para inflar a coalizão que tentam formar em torno de uma ofensiva militar contra o ditador iraquiano, Saddam Hussein, os Estados Unidos estão sendo obrigados a apaziguar uma troca de ameaças entre dois antigos aliados no Oriente Médio: o governo turco e as lideranças curdas do Iraque.
Além de uma bilionária ajuda financeira em troca da utilização de suas bases militares, a Turquia está pedindo autorização aos norte-americanos para que suas tropas permaneçam no Iraque após uma eventual guerra.
A idéia do governo em Ancara (capital) é abafar qualquer tipo de movimentação dos curdos iraquianos em torno da criação de um Estado independente, o que poderia encorajar a minoria curda na Turquia a seguir o mesmo caminho.
Por outro lado, os curdos iraquianos já avisaram aos EUA que não permitirão a "intromissão" turca em seu território. Eles ainda querem que seus peshmergas (guerrilheiros) sejam armados pelos norte-americanos.
O atual clima de tensão, porém, contrasta drasticamente com uma parceria fechada em 1991 entre Ancara e os dois principais partidos curdos do Iraque, o KDP (Partido Democrático do Curdistão) e a PUK (União Patriótica do Curdistão).
Na ocasião, dias após o fim da Guerra do Golfo, o governo da Turquia prometeu suporte para uma região curda autônoma no norte iraquiano. Em troca, Massoud Barzani (KDP) e Jabal Talabani (PUK) aceitaram dar segurança ao Exército turco para invadir o Iraque em busca de bases do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que luta por maior autonomia curda na Turquia.
Hoje, entretanto, Ancara assume publicamente o temor de que um suposto movimento de independência no país vizinho fortaleça o desejo de autonomia dos 13 milhões de curdos que vivem no sudeste da Turquia.
Entre 1984 e 1998, curdos do PKK e tropas turcas travaram uma sangrenta batalha que causou 30 mil mortes.
Nos últimos anos, para não prejudicar ainda mais sua aceitação na União Européia, Ancara aumentou os direitos dos curdos, liberando, por exemplo, o aprendizado de seu idioma.

Temor curdo
Enquanto isso, dizendo-se unidos após a sangrenta guerra civil que travaram em meados dos anos 90, os curdos iraquianos fizeram questão de dizer na semana passada que não sonham com a criação de um Estado independente, e sim com autonomia e representatividade após uma eventual queda de Saddam Hussein.
"Os curdos do Iraque nunca demandaram um Estado independente, embora nós hoje usufruamos de uma gestão própria", disse à Agência Folha o assessor de Relações Internacionais do KDP, Fawzi Hariri.
A preocupação curda não se resume à ameaça turca. Justificado por sua própria história recheada de reveses e arrependimentos, outro temor é ficar sem respaldo do Ocidente após o confronto.
A dúvida atual recai sobre um questionamento óbvio: em caso de queda de Saddam, como esperar que os Estados Unidos e o Reino Unido dêem aos curdos autonomia em uma região rica em petróleo e passagem de rios como Tigres e Eufrates? Os curdos não esquecem o apoio dos EUA a Saddam na Guerra Irã-Iraque (1980-88). Sobre os britânicos, a história registra justamente contra os curdos o primeiro ataque da Royal Air Force contra uma população civil, em 1919.
Entre os reveses, o mais recente ocorreu após a Guerra do Golfo. Com medo de uma vingança de Bagdá e abandonados pelo então presidente dos EUA, George Bush, os curdos iniciaram um gigantesco êxodo rumo às montanhas turcas e iranianas. A tragédia só teve fim meses depois, com a criação das chamadas zonas de exclusão aérea.
Na mesma época, o acordo com Ancara ruiu. Os turcos abandonaram o barco e deixaram o KDP e o PUK à deriva e ainda rompidos com os curdos da Turquia.
Outra decisão estratégica que gerou reveses aos curdos iraquianos aconteceu durante a Guerra Irã-Iraque. Durante o conflito, eles foram financiados por Teerã, como forma de manter uma oposição a Saddam dentro do país e ao mesmo tempo fortalecer as ações de guerra do aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da Revolução Islâmica no Irã em 1979.
Em oito anos de batalha, as empolgadas forças curdas se uniram em diversas oportunidades ao Exército iraniano para promover incursões militares contra as tropas de Saddam. Do outro lado, porém, havia os EUA fornecendo armas e munições ao Iraque, que diretamente financiava o poder de fogo dos curdos socialistas do Irã, opositores do regime islâmico.
Ao final da guerra, as desmoralizadas lideranças de KDP e PUK viram milhares de curdos iraquianos morrerem durante a vingança de Saddam Hussein por meio de gases tóxicos.
Historicamente, as formas curdas de negociação têm a seguinte base: quando o governo -sendo ele Bagdá, Teerã ou Ancara- está em uma posição de reconhecimento de suas causas, os curdos oferecem alianças e baixam suas armas. Mas quando sentem a fraqueza do regime central, eles mantêm a ofensiva até que haja um contra-ataque.
Hoje, no Curdistão iraquiano, a esperança é de um alinhamento com o Ocidente sem riscos, para tirar da memória as fugas em massa, deportações, aprisionamentos, execuções e genocídios.



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